Este é o relato de uma operação teúrgica bem sucedida conhecida pelo nome de Ritual de Aplacamento que ocorreu no dia 30 de dezembro de 2017 na cidade de Santos Dumont, Minas Gerais, onde um kakodaimon[1] que se apresentou como Belithor (BLThVR)[2] atacou e fez se acidentar minha mãe.
Após a Cerimônia do Solstício de Verão onde os Irmãos do Colegiado da Luz Hermética[3] invocaram o Espírito do Verão e celebraram a cura do daimon viciado,[4] nós recebemos um Probacionista da Ordem, André Antunes. André ficou conosco até o dia 30, sábado pela manha. Na noite anterior, nós realizamos um rito de teurgia no qual invocamos a Deusa Lakṣmi através dos procedimentos da magia tāntrika hindu, que envolve uma prática ritualística chamada de pūjā, que consiste de uma adoração, sacrifício, oblações e fumigações. Os elementos essenciais que constituem um rito teúrgico são o Fogo, a Água e a Adaga. Estes três elementos são encontrados nos rituais teúrgicos tanto da Tradição Esotérica Ocidental quanto da Tradição Esotérica Oriental.
Os parâmetros para um rito teúrgico de adoração a Deusa Lakṣmi nos termos da magia tāntrika hindu eu descrevi em outro lugar.[5] Aqui basta citar apenas duas experiências pessoais ocorridas durante este ritual e que se mostraram reveladoras posteriormente. A primeira ocorreu logo após uma cadeia mágica ao redor do altar que erigimos para Deusa Lakṣmi. Segundos após a execução da cadeia mágica – por conta do trabalho de empilhamento de gnose[6] – experimentei uma epifania que se revelou como uma visão: o altar tornou-se um lótus brilhante sobre o qual descia uma coluna luminosa de força. Essa coluna de força imantava todas as oferendas sobre o altar que, na visão, tomou proporções gigantescas, como relatei aos participantes. Na visão, eles também estavam presentes, imantados pela energia luminosa que se espalhava pelo ambiente desde o centro da coluna. Nesse exato momento eu escutei um sussurro em meu ouvido direito: bitorrr. Pelo menos foi isso que eu entendi. Eu não fazia ideia, mas meu daimon pessoal naquele momento estava murmurando o nome da criatura que iria atacar minha mãe. A lembrança desse fato foi, posteriormente, fundamental para que eu descobrisse o nome do kakodaimon e o fizesse revelar sua assinatura astral.
A outra experiência relevante neste ritual ocorreu logo no fim, quando em adoração inflamada a Deusa Lakṣmi, tive uma visão de minha mãe, chorando. Confesso que fiquei bem assustado com aquela visão e, embora tivesse feito um esforço para bani-la de minha mente, ela me acompanhou até a hora em que fui para cama.
No dia seguinte, dei uma aula sobre o contato com o daimon pessoal para André e Priscila, minha esposa. Logo a saída de André, recebi uma ligação de um vizinho de minha mãe, contando o ocorrido do atropelamento dela. Naquele momento eu me lembrei da visão e tudo se encaixou, embora tivesse esquecido do sussurro em meu ouvido direito.
Imediatamente comecei a preparar meu material teúrgico-sacerdotal, pois sabia que teria de fazer uma operação de teurgia para livrar minha mãe desse assombro, me apoderando e fazendo dele um guardião. Essa é a abordagem que o feiticeiro da Antiguidade tinha para com os kakodaimones. A magia moderna desenvolveu o que hoje conhecemos como rituais de banimento. Isso não era conhecido ou praticado na feitiçaria da Antiguidade, pelo menos não da maneira como a magia moderna compreende. Na verdade, quando o feiticeiro do passado limpava o ambiente de sua operação, tomava banho e vestia um robe consagrado ou lavava as mãos com Água Lustral, compreendia-se que tanto o feiticeiro quanto o ambiente estavam purificados. A intenção não era, como muitos magos modernos têm praticado, banir as forças hostis dos kakodaimones, mas ao contrário, se apropriar delas e fazê-las guardiões protetores ou torná-las servidores.[7] Um exemplo de tal prática arcaica são os demônios colocados ao lado de fora dos templos budistas para servirem de guardiões. Na verdade, demônios foram utilizados para construir templos tanto no Ocidente quanto no Oriente.
A apropriação de um kakodaimon, observe com atenção, não se trata de sugá-lo para dentro de um cristal. Este método chama-se encarceramento do kakodaimon, que fará de tudo para ser libertado. Também não se trata de venerá-lo como uma deidade. Nenhum daimon, seja aghato-daimon ou kakodaimon etc., deve ser adorado como um deus. E na verdade, desde a Grécia Antiga, nunca existiu um culto aos daimones. Essa é uma prática equivocada que tem sido executada e ensinada por magistas modernos e que na Antiguidade, foi considerada desrespeitosa para com os deuses. Por último, a apropriação de um kakodaimon estabelece com ele um juramento, não pacto, voto ou aliança[8] de comércio, como apresentado nos grimórios medievais de magia e nas tradições crioulas. A apropriação do kakodaimon começa reconhecendo o lugar, o papel e a função dele como um intermediário entre a legião dos vivos e os deuses. O teurgo que diariamente oferece oblações e fumigações aos deuses tem poderosos auxiliares para comandar qualquer daimon da natureza. Sob a autoridade de seu próprio daimon pessoal, qualquer teurgo pode conjurar e se apropriar de um daimon, fazendo dele um espírito guardião ou servidor.
O processo de apropriação de um kakodaimon consiste em estabelecer uma relação através de oferendas e sacrifícios a ele. Esse processo cria uma conexão entre o kakodaimon e o teurgo, que então poderá conduzi-lo por um caminho mais saudável e benéfico a todos. Eu tenho a prática que me apropriar de alguns kakodaimones para me auxiliarem em trabalhos mágicos. Este é o caso, por exemplo, de um daimon da goécia conhecido como Zapar, de natureza venusiana, o qual ganhou um assentamento em meu templo:
Através deste procedimento, os teurgos do passado reconstituíam a ordem emulando o próprio Absoluto na manutenção da ordem natural do Cosmos. Este Ritual de Aplacamento, como é conhecido, tem muito mais potência quando o teurgo já possui conexões fortes estabelecidas com seu daimon pessoal. E ao bem da verdade, ninguém se torna um teurgo até que tenha contato com seu daimon pessoal. É nessa tradição que o grimório de Abramelin se baseia ao convocar o Sagrado Anjo Guardião para comandar os príncipes do mundo, quer dizer, os kakodaimones da natureza. No entanto, caso o estudante ainda não tenha intimidade e conexão com seu daimon pessoal, o Ritual de Aplacamento pode ser utilizado para cura da personalidade: cada defeito de caráter, assim como cada virtude, é regido por um daimon.[9] Apropriar-se de um ou mais kakodaimones, livra o teurgo de suas picadas venenosas, deixando-o apto a adestrar seu comportamento, mudando padrões equivocados em ações sadias, alinhadas a ordem natural do Cosmos. Traços perniciosos na personalidade como ciúmes, mesquinharia, medo, aversões ou até mesmo luxúria desmedida podem ser domados e transmutados através do Ritual de Aplacamento de um kakodaimon.
A pergunta que fica é: como identificar um kakodaimon que tem trazido mazelas para o dia-a-dia? É simples: os teurgos da Antiguidade não se incomodavam em saber o nome, estrito senso, de um kakodaimon ou genii-loci.[10] Jâmblico, por exemplo, em seu Sobre os Mistérios dos Egípcios, Caldeus e Assírios, menciona um kakodaimon que provoca pesadelos assustadores, nomeando-o como Phobetor, que significa assustador. Qualquer daimon está sob o comando de uma deidade e o teurgo pode nomeá-lo com o nome da própria deidade, caso queira, ou com o nome de algum dos poderes da deidade. Seja como for, Hécate, a Senhora da Noite, é a mãe-líder-rainha de todos os daimones e, portanto, todos respondem a ela. Quando o teurgo invoca Hécate no Ritual de Aplacamento, qualquer kakodaimon é imediatamente paralisado. Esse é o termo utilizado por Porfírio de Tiro (233-305 d.C.) ao comentar Jâmblico.[11]
De acordo com os Oráculos Caldeus, Hécate é a rainha de todos os daimones. Como tal, ela é a personificação de todos os poderes da Natureza e da Matéria. Ao se encontrar com a Alma humana através de rituais, preces e invocações, Hécate se manifesta em acordo as condições internas de quem a invoca. Para àqueles chafurdados no corpo, ela se manifesta como necessidade; para àqueles imersos a uma vida de erros, Hécate se manifesta como tentações demoníacas; para os renegados, ela se manifesta como maldição; para àqueles que honram os ancestrais, como graça; para àqueles que a invocam pela sua verdadeira natureza, Hécate se manifesta como guia e protetora. Hécate é, portanto, um espelho da Alma encarnada, refletindo a experiência da Alma na matéria e sua condição interna. Nos Oráculos Caldeus:
Fragmento 88: A Natureza nos faz acreditar que os daimones são puros, crias bondosas da Matéria (Hécate) que são úteis.
Fragmento 93: Das fissuras (buracos) na terra saltam cães (daimones) ctonianos que nunca se mostram verdadeiros aos mortais.
Fragmento 153: Eles (quer dizer, os daimones) encantam as almas, tirando-as para sempre do caminho dos ritos sagrados (teurgia).
Os daimones também personificam os poderes da matéria, uma influência centrífuga na Alma, trazendo-a dos Reinos Celestiais a sua encarnação na matéria (corpo). Jâmblico descreve os daimones como agentes do demiurgo e como poderes que atraem a Alma até a matéria. Essa ambivalência ocorre por este poder centrífugo dos daimones. Como agentes do demiurgo na processão dos deuses, é a tarefa deles exteriorizar aspectos específicos do divino, disseminando sua presença divina na matéria. Nesse processo, eles atraem as Almas até o corpo.
Através dos ritos de teurgia a Alma é liberta dessa força centrífuga lhe impingida pelos daimones e gradualmente começa a participar da unidade fundamental do cosmos. Ao participar do rito teúrgico a Alma compartilha da continuidade que se estende dos deuses a matéria e nesse processo os daimones que antes atraiam a Alma a matéria, passam a empreender um papel importante na participação dela na continuidade da unidade cósmica.
A Matéria (Hécate) funciona como um indicador da condição espiritual da Alma. Isso significa que a matéria é maligna apenas em proporção aos apegos da Alma a existência material. A matéria é apenas uma extensão da Alma e seus poderes podem ser utilizados para sua experiência na unidade cósmica.
Para este ritual eu preparei oferendas para o kakodaimon que eu iria me apropriar, uma poção de incenso lunar de mirra e estoraque para Hécate e outra poção de incenso para o meu daimon pessoal, cuja fórmula ele me revelou. Levei comigo também Água Lustral já preparada e devidamente consagrada. Com essa Água Lustral eu limpei o ambiente, ofereci oblações ao genii-loci do local de trabalho e magnetizei o Corpo de Luz de minha mãe. Também levei um braseiro para colocar carvão ativado e uma adaga mágica para ritos teúrgicos. Para proteção pessoal, levei uma pantacléia em meu pescoço, contendo a assinatura astral de meu daimon pessoal, uma invocação de proteção me revelada por ele e enxofre.
Momentos antes do ritual, um fato curioso ocorreu: quando eu cheguei no quarto do hospital onde minha mãe estava internada, havia um enfermeiro de meia idade tentando pegar uma veia dela na intenção de introduzir um acesso para soro e medicamentos. Ele já havia tentado umas cinco vezes e ela estava com o braço roxo das veias que ele deixou estourar. Assim que eu cheguei ele olhou diretamente para minha pantacléia, esbugalhou os olhos, começou a suar e a entrar em uma espécie de transe, como se alguma entidade estivesse por perto tentando lhe incorporar. Ele saiu meio tonto do quarto do hospital e logo chegou outra enfermeira para terminar o que ele não havia conseguido. Achei tudo meio estranho e saí do quarto, esperando vê-lo pelos corredores.
Alguns minutos bastaram e ele passou, com uma das mãos para trás, quase que incorporando, eu penso, um Preto Velho. Me aproximei e disse: Boa noite. Com licença. O senhor trabalha em algum centro? Grogue, ele olhou-me nos olhos, os dele arregalados, e disse: Não! Virou as costas e continuou andando, na verdade, cambaleando.
Eu entrei no quarto e coloquei um agasalho de frio, cobrindo a pantacléia em meu pescoço. A enfermeira ainda tentava o acesso a minha mãe, então decidi sair do quarto e esperar um pouco mais do lado de fora. Passaram-se alguns minutos quando o enfermeiro voltou e perguntou: O que era àquilo no seu pescoço? Uma guia? Ao perguntar, ele estava normal, sem nenhuma alteração. Ele não trabalhava em nenhum centro e sabia o que era guia? Muito estranho! Então abri o agasalho e mostrei a ele minha pantacléia: É disso que você está falando? Ao fitar minha pantacléia, ele se alterou completamente de novo e cambaleou as pernas. Eu perguntei: Está ardendo os olhos aí? Sem responder, virou as costas novamente e saiu andando, quando entrou na enfermaria e disse a uma colega de trabalho: Não disse a você? Bom, resolvi deixar quieto. A noite era longa e eu precisava me preparar. Quando a enfermeira saiu do quarto, esperei minha mãe adormecer e comecei a preparar o local.
Ao lado da cama dela, utilizei a mesa de cabeceira como um altar. Ali coloquei o braseiro, um pote de prata para Água Lustral e a adaga da arte. O ritual começou a meia noite, quando consagrei a Ayahuasca e o Rapé de Jurema, e seguiu nestes termos:
Passo 1: lavei as mãos com a Água Lustral e fiz uma invocação a Zeus-Hélio. Elevei, portanto, minha consciência ao Pai Divinal e fiz uma oração, oferecendo a Água Lustral como libação.
Passo 2: após lavar as mãos, utilizei a Água Lustral no ambiente, purificando-o com o encantamento: hekas, hekas, este bebeloi.
Passo 3: salpiquei o braseiro com o incenso de meu daimon pessoal, recitando uma invocação pessoal que ele me revelou sempre que o quisesse por perto em uma operação de teurgia.
Passo 4: em seguida, salpiquei o incenso de Hécate no braseiro e fiz uma invocação a Senhora das Encruzilhadas, magias e bruxarias noturnas, rainha de todos os daimones. Dos inúmeros epítetos da Deusa Negra, trabalhei com Apotropaia, quer dizer, Hécate como àquela que afasta os danos e as mazelas causadas por kakodaimones e também como Soteira, Hécate a salvadora de seus devotos.
Passo 5: convoquei o genii-loci do Hospital sob a autoridade e auspícios espirituais de Asclépio, deus da medicina e da cura. Nesta convocação, lhe ofereci frutas e incenso. Convoquei também o daimon da hora de trabalho.
Passo 6: com a autoridade de meu daimon pessoal, sob a égide de Hécate, rainha dos daimones e com a autorização do genii-loci do hospital, executei o seguinte encantamento bárbaro para apropriação do kakodaimon que causou o acidente de minha mãe:
ACHTHIŌPHIPH ERESCHIGAL
NEBOUTOSOU ALĒTH SATHŌTH
SABAŌTH SABAŌTH
Ao realizar este encantamento exaustivamente, eu pude ver o kakodaimon em fúria ao lado da cama do hospital. Ele tinha cabeça e pés de pássaro, mas tronco de homem. Neste momento, coloquei a mão esquerda em minha pantacléia e segurei firme a adaga, apontando-lhe. Ao fazer este procedimento, me lembrei do nome bitorrr que havia escutado no pūjā para Lakṣmi e intuitivamente, comecei a lhe chamar por este nome. Ao fazê-lo, a fúria do kakodaimon foi completamente aplacada, de maneira lenta. Eu continuava a repetir a convocação exaustivamente e quando senti que já havia conseguido acalmá-lo, escutei no ouvido direito seu nome: Belithor, quando sua assinatura astral me foi revelada em visão.
Pronto! Eu já possuía tudo o que precisava para me apropriar completamente da força e poder de Belithor. De posse dessas informações, iniciei o aplacamento dele, colocando-o aos meus serviços, como protetor de minha mãe.
Até este momento, minha mãe que se contorcia muito na cama, se acalmou e a partir dali, dormiu bem a noite toda. Pela manha, todo o coágulo de sangue saiu no travesseiro dela e não foi preciso operá-la no dia seguinte para drená-lo. Os médicos acharam um milagre. O dreno do sangue estava marcado par as 7:00 da manha.
Passo 7: iniciei o aplacamento de Belithor com uma conjuração, travando com ele um juramento de serviço em nome de Hécate e de meu daimon pessoal.
Passo 8: finalizei o aplacamento de Belithor oferecendo oblações e incenso a Hécate.
Passo 9: iniciei um processo de pajelança em minha mãe, limpando e ungindo seu Corpo de Luz com incenso, Água Lustral e passes magnéticos, finalizando com a benzedura de Hécate Stropos.
Passo 10: encerrei a cerimônia com o selamento do Corpo de Luz de minha mãe e uma prece de agradecimento a Hécate, Asclépio e ao meu daimon pessoal.
Eu darei detalhes sobre o Ritual de Aplacamento dos kakodaimones nas lições do CFO, onde delineio práticas ritualísticas para invocação do daimon pessoal, convocação de geniis-loci etc., bem como técnicas utilizadas nos rituais de teurgia. Este ritual pode ser usado para aplacar a fúria de toda sorte possível de kakodaimones. Jâmblico cita outro kakodaimon, Lytta, que rege a loucura e os acessos de raiva e ódio. Por meio de seu aplacamento, um estado sereno de mente pode ser conquistado. Isso, nos termos de Jâmblico, restaura a ordem natural e confere saúde ao teúrgo, que tem mais paz interior para adorar e fazer sacrifícios aos deuses.
Após este evento, no outro dia, minha mãe foi liberada e nos dirigimos a sua casa. Agora ela passa bem e está vagarosamente retomando as tarefas.
Toda essa experiência me afastou definitivamente de thelema e da magia moderna. Caso eu tivesse feito qualquer procedimento thelêmico como rituaizinhos de banimento modernos, sigilos para servidores artificiais típicos da magia do caos etc., minha mãe teria feito a passagem. Foi pelos procedimentos da teurgia, rapidamente resumidos nesse relato, que eu consegui me apropriar do kakodaimon que antes havia feito mal a minha mãe.
Os magos da magia moderna estão condenados ao fracasso, não por falta de capacidade ou talento, mas por inconsistência do próprio sistema. Aleister Crowley é conhecido como o pai da magia moderna. E muito embora muitos discordem, ele assim o é porque a sua definição de magia influenciou todos os magistas da tradição moderna da magia. Na visão de Crowley a magia se trata das projeções das forças da mente ou como ele nomeia, a vontade para mudar a estrutura da realidade, quer dizer, causar taumaturgia na natureza. Quando ele assim o faz, determina que a magia trata-se de uma ação humana, dependente exclusiva das intenções do mago. No entanto, isso não é magia de fato. Como iremos explorar nos textos selecionados para essa edição, qualquer definição válida de magia envolve o tráfego com criaturas espirituais, espíritos diversos do Corpo de Deus. Isso significa que é por meio dos espíritos de todas as coisas que a magia opera. Estes espíritos, daimones de todos os tipos, foram chamados de demônios na recessão escatológica cristã. Assim, a partir de Aleister Crowley a vontade humana passou a determinar a natureza da magia, não os espíritos ou como postularia Agrippa, as virtudes de todas as coisas.
Então o que Crowley fez foi tentar reinventar a roda ressignificando a magia segundo suas concepções particulares e visão de mundo idealista. Como Papus (1865-1916) já havia definido[12] antes de Crowley, a projeção das forças da mente trata-se de psicurgia, não magia. A escola francesa de magia, da qual os grandes ícones são Eliphas Levi (1810-1875), Papus, Stanislas de Guaita (1861-1897) e Saint-Yves D’alveydre (1842-1909), estabelece uma distinção muito clara entre magia e psicurgia. A escola inglesa, por outro lado, cujos ícones são Aleister Crowley e McGregor Mathers (1854-1918), não estabelece essa distinção, chamando de magia o que na verdade trata-se de psicurgia.
Tanto é verdade que psicurgia não é magia que a magia não precisa das forças da mente do mago para funcionar. Se eu colocar o testemunho (endereço mágico) de alguém (um cliente) sobre um altar consagrado as virtudes de Mercúrio, com sunthēmatas apropriadas a Mercúrio, no dia e hora corretos, isso já é o sufuciente para que o cliente possa receber em sua alma as virtudes da medicina planetária de Mercúrio. A mente humana não está envolvida em nada nesse processo. As virtudes mercuriais das sunthēmatas atrairão para alma do cliente, por meio de seu testemunho, as virtudes da energia planetária de Mercúrio. Como bem estabelecido no ensaio Magia & a Intenção Dirigida, presente nesta edição, existe valor fundamental na projeção unidirecionada das forças da mente, mas isso não define de fato a natureza da magia.
Os primeiros a notarem essa inconsistência no sistema da magia moderna são aqueles ocultistas que se interessam pelos efeitos tangíveis da magia, quer dizer, a taumaturgia ou milagre, não os efeitos psicológicos típicos da psicurgia. Gradativamente estes ocultistas têm migrado das interpretações moderna e pós-moderna da magia, buscando encontrar na magia da Antiguidade ou Idade Média resultados reais do exercício da Arte dos Magi. Lisiewski[13] chama de old school a prática da magia como orientada pelos grimórios medievais. Embora eu não concorde com muitas de suas alegações e às vezes sua postura preconceituosa cristã, seus esforços em demonstrar como a magia dos grimórios é mais eficaz que os sistemas modernos é notável. Nos ensaios que compõem essa edição, grande esforço foi feito para demonstrar que o mago da Antiguidade tinha uma visão muito distinta da magia daquela que os magos de hoje têm.
É comum acreditar que através dos incontáveis graus de papel das sociedades secretas e ordens modernas é possível aprender magia. Mas essa crença tem se mostrado infundada. Todos os dias ocultistas debandam de fraternidades diversas para frequentarem choupanas de cabala crioula ou encontrarem um mago que de verdade lhes ensine o verdadeiro Arcano da magia. Diferente de sua versão moderna diletante e desorientada, o mago da Antiguidade tinha uma meta muito bem traçada:
Iniciação e desenvolvimento magístico através de estudos, viagens e práticas espirituais. O estudante se prepara para a chegada do mestre.
O encontro com o mestre, um mago experiente que guiará o estudante, ensinando-lhe o verdadeiro arcano da magia.
De posse do verdadeiro Arcano da magia, o estudante conjura seu espírito assistente, com o qual estabelece um pacto de amizade.
Este espírito assistente instrui o estudante, agora um mago, nos segredos ocultos da magia.
De posse dos segredos ocultos da magia, o mago pode oferecer seus serviços e cobrar por eles.
Destes cinco pontos um tomo inteiro pode ser redigido. Alguns dos ensaios desta edição exploram estes pontos, com alguma ênfase na doutrina do espírito ou daimon assistente. Esse foi o protótipo ou a ideia gênese do conceito que hoje conhecemos como Sagrado Anjo Guardião. Embora esse tema tenha sido explorado com certa profundidade, deixamos questões fundamentais ainda para explorarmos na próxima edição, como a discução das duas interpretações ou visões do Sagrado Anjo Guardião: é ele uma criatura objetiva do Corpo de Deus ou um aspecto elevado da consciência humana? Essa e outras questões acerca do anjo ou daimom pessoal exploraremos no futuro.
Alguns dos ensaios desta edição foram escritos para os antigos alunos do C.L.H., que funcionou por um tempo como uma academia neoplatônica de iniciação. Este projeto foi encerrado oficialmente no início de 2019, mas todo o seu programa de estudo foi transferido para o segundo ano do CFO.
Espero que gostem deste trabalho. Bom estudo aos leitores. Que uma visão mais ampla da tradição da magia se abra a todos.
Fernando de Ligório
Solstício de Inverno, 2019.
NOTAS:
[1] Os daimones, mensageiros que estabelecem a conexão entre os homens e os deuses, são classificados como aghato-daimones, criaturas espirituais benéficas e os kakodaimones, criaturas espirituais maléficas. Essas criaturas espirituais malignas são os protótipos dos demônios cristãos e dos 72 Gênios da Goécia. O bem e o mal são perspectivas dualistas que, em verdade, não se aplicam a verdadeira natureza dos daimones. Que alguns deles são avessos a consciência humana, está muito claro através das anotações de inúmeros magos que com eles travam comércio. Qualquer daimon responde aos comandos de uma criatura superior, como uma deidade ou o daimon pessoal do conjurador.
[2] Belithor soma 247, o número de ZMR, melodia de encantamento. Essa palavra compartilha raízes com ZMZM, som, ZMZVM, zumbido, ZMIRVTh, feitiço ou encantamento. Isso está em total acordo com a descrição que minha mãe fez sobre o ocorrido. Ela conta que estava caminhando quando começou a escutar um zumbido que a levou para o meio da rua, onde foi atropelada por uma motocicleta. Quando lúcida, dois dias após o acidente, ela confirma ter sido atraída para rua. Na cerimônia de apropriação de Belithor, ele primeiro se apresentou como um zumbido de um enxame de abelhas. É interessante notar que 247 também é o número de RAVM (Raum), o 40° daimon da goécia, regido pelo primeiro decanato de Touro e que aparece no totem de um corvo.
[3] O Colegiado da Luz Hermética (C.L.H.) foi um desenvolvimento posterior da SETh, onde comecei a tentar criar um sistema de feitiçaria thelêmica, já em desacordo com a maioria das ideias de Crowley. Não deu certo essa primeira versão e após os eventos relatados aqui, o C.L.H. tornbou-se uma academia neoplatônica de iniciação. Alguns textos desta edição foram distribuídos inicialmente entre os membros desta academia neoplatônica de iniciação.
[4] O daimon viciado é uma expressão que denota o daimon pessoal na fase em que o estudante ainda labuta sobre o Ordálio da Esfinge, quer dizer, o controle de sua quadratura pessoal. O desenvolvimento desse tema não está presente em nenhum dos textos desta edição. Deixaremos para o próximo número.
[5] Veja LakṢmi Upāsana na Revista Sothis No. 11. Clube de Autores.
[6] Este termo, empilhamento de gnose, refere-se às inúmeras técnicas de produção de gnose utilizadas dentro de um ritual, aumentando gradativamente o potencial da experiência mística.
[7] Na teurgia clássica neoplatônica, diferente da feitiçaria, o teurgo expulsa daimones hostis.
[8] A doutrina do pacto com o diabo da escatologia cristã é a ideia degradada ou a demonização dos pactos (votos, alianças ou juramentos) que o mago da Antiguidade estabelecia com seus espíritos assistentes. Esse tema é tratado em detalhes nessa edição.
[9] Na cultura tântrica, identifica-se como śaktis. Energias – ou poderes – encadeadas ou desencadeadas da personalidade com as quais o tāntrika opera em seus ritos de teurgia.
[10] Os genii-loci são os daimones conectados aos lugares e zonas de poder.
[11] Veja Fritz Graf, Magic in the Ancient World.
[12] Papus, ABC do Ocultismo.
[13] Joseph C. Lisiewski, Howlings from the Pit.
Comments