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O SAGRADO DIABO GUARDIÃO

  • Foto do escritor: Fernando Liguori
    Fernando Liguori
  • há 2 dias
  • 27 min de leitura

Revista Nganga, No. 13

 

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

 

Seção . I .

A Função do Daimōn Pessoal na Quimbanda

 

Deve-se compreender que o termo daimōn poderia ser empregado para designar um poder divino, e não um deus pessoal. Assim, δαίμων seria o poder divino enquanto θεός seria o deus pessoal. Esse poder divino é entendido como uma espécie de poder sobrenatural e controlador que rege o destino, a sorte ou o acaso. Destarte, poder-se-ia usar intercambiavelmente a expressão κατὰ δαίμονα (de acordo com daimōn) ou τύχῃ (pela sorte ou por acaso). Em Aves, Aristófanes emprega daimōn com o mesmo sentido de sorte, acaso ou destino: σὺ δέ μοι κατὰ δαίμονα καὶ τινα συντυχίαν ἀγαθὴν ἥκεις ἐμοὶ σωτήρ (tu tens vindo a ser, pelo destino e por uma boa sorte, um salvador para mim). Note que o emprego de daimōn pressupõe um sentido de destino e de sorte juntamente com συντυχία (incidente, ocorrência, chance, acaso, acidente, feliz evento). A relação do daimōn com o destino não é algo sem propósito. Esse significado se fundamenta na ideia do daimōn como uma entidade ou poder que controla ou rege individualmente o destino de cada pessoa. O daimōn expressa a ideia de dar uma herdade, de lotear algo, de distribuir a fortuna ou a sorte.

No entanto, os gregos antigos também tinham uma concepção do daimōn como uma entidade personificada, ou seja, uma espécie de gênio do bem ou do mal que protegia uma família ou uma pessoa. No contexto dos cultos domésticos e municipais da Grécia Antiga, os daimōnes eram espíritos dos mortos, seres divinos ou divinizados, deidades, espíritos guardiões, gênios, e por extensão, guardiões do destino, divindades que exercem influências sobre o destino dos homens (representação do destino). Os daimōnes poderiam atuar ambiguamente, proporcionando o bem ou o mal de acordo com a devoção (ou de acordo com o destino) de alguém.[1]

 

Em preparação para a escrita de meu novo livro, Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula,[2] comecei a divulgar no meu canal do YouTube e em algumas postagens do site goēteia, a função que o daimōn pessoal possui na Quimbanda. De praxe, recebi perguntas sobre a natureza deste conhecimento na Quimbanda. Então é necessário primeiro esclarecer que não existe no corpo da Quimbanda qualquer referência ao daimōn pessoal como o compreendemos no platonismo tardio,[3] ou mesmo a sua recessão moderna, o Sagrado Anjo Guardião derivado do platonismo cristão de O Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago,[4] que tanto influenciou a prática da magia no Ocidente contemporâneo.

 

Existem dois bordões que uso comumente: a Quimbanda soma, no sentido em que ela vitaliza a sua prática de magia, e a Quimbanda aproveita o que você tem, no sentido em que muito embora seja um sistema fechado e não tenha a necessidade de inserções externas, a Quimbanda pode aproveitar seu conhecimento prévio, seja na área da alquimia, da astrologia ou da magia cerimonial.[5] Todos os processos da alquimia estão presentes na feitiçaria da Quimbanda; qualquer conhecimento de alquimia vitalizará e potencializará estes processos alquímicos no exercício da magia na Quimbanda.[6] De igual modo, a Quimbanda possui noções astrológicas – para isso basta ver o Brasão Imperial de Maioral – e qualquer conhecimento de astrologia, o conhecimento dos tempos de poder, das lunações e seus reflexos cíclicos na Natureza ou a sinfonia cósmica dos astros, agregará potência no exercício da magia na Quimbanda.[7] Assim, o conhecimento acerca do daimōn pessoal que vem do platonismo teúrgico melhorará o entendimento acerca da deificação catabática da alma na Quimbanda e a superação do destino, a recepção das virtudes do Exu tutelar na alma e o próprio acesso ao mundo espiritual através de uma visão daemônica do Cosmos.[8] É o daimōn pessoal o agente capaz de fazer uma alma corporificada a ver e a se comunicar com os espíritos, a compreender e a reverenciar o Sagrado.

 

Aqueles que acompanham meu trabalho desde os primeiros volumes do Daemonium sabem que dediquei os últimos anos ao estudo e à comunicação ritual com o daimōn pessoal, cuja função espiritual constitui o eixo de uma teologia mágica profundamente enraizada no platonismo tardio e na hermenêutica dos mistérios. Essa busca culmina, agora, na formulação de uma doutrina operativa para a Quimbanda, onde a presença do daimōn pessoal revela-se como fundamento ontológico para a deificação da alma. Na feitiçaria ctônica da Quimbanda, tal processo não se limita à elevação extática, mas implica a descida e incorporação do poder divino no corpo e na vida. Sem o auxílio e a mediação do daimōn — esta consciência intersticial que vincula o destino à possibilidade da transcendência — o caminho de deificação permanece fechado. Assim, é pela arte mágica do conhecimento & conversação com o daimōn que se abre o portal para a transfiguração espiritual do kimbanda em Exu.

 

A partir dessas investigações, venho elaborando um capítulo para meu novo livro, Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula, dedicado à função do daimōn pessoal no platonismo teúrgico de Jâmblico (245–325 d.E.C.),[9] em diálogo com a tradição hermética e sua ressignificação na feitiçaria ctônica da Quimbanda. Nesse novo capítulo, pretendo também revisar e expandir o ritual para o conhecimento & conversação com o daimōn pessoal que publiquei originalmente no Daemonium: Curso de Filosofia Oculta (Clube de Autores, 2019), articulando tanto os procedimentos da teurgia platônica quanto os métodos próprios da cabalá crioula.[10] No presente ensaio, entretanto, ofereço apenas um compêndio introdutório sobre o papel do daimōn pessoal no contexto da Quimbanda. Para isso, tomamos como ponto de partida a doutrina de Jâmblico, e é por meio dele que traçamos a ponte que nos conduz ao Inferno sagrado da Quimbanda.

 

Este ensaio, porém, oferece apenas um esboço introdutório sobre a função espiritual do daimōn na Quimbanda. Para tanto, partimos da cosmologia de Jâmblico e, por seu viés iniciático, avançamos até as margens do Inferno brasileiro.

 

Se devo revelar-te a verdade sobre o teu daimōn pessoal, devo salientar que essa entidade não é transmitida apenas por meio de uma região celestial ou de um elemento do mundo visível. Na verdade, o daimōn é distribuído por todo o cosmos e em toda a diversidade de vida presente nele, bem como em todas as formas de corpo que servem como veículos para as almas que descem à geração. Cada parte de nós recebe um lote individual, atribuído com base em um princípio autorizador singular.

Este daimōn, portanto, serve-nos de modelo mesmo antes das almas descerem à geração. Uma vez que uma alma tenha escolhido um daimōn como seu guia, ele imediatamente se posiciona sobre ela como o realizador dos vários níveis de vida da alma, e quando a alma desce ao corpo, ele a liga ao corpo, e supervisiona o ser vivo composto que surge dele, e regula pessoalmente as particularidades da vida da alma; e todos os nossos raciocínios nós seguimos graças aos primeiros princípios que ele nos comunica, e realizamos as ações que ele coloca em nossa mente. Esse daimōn continua a dirigir a vida dos homens até o ponto em que, mediante a teurgia sagrada, estabelecemos um deus como supervisor e líder da nossa alma; pois, nesse momento, ele ou se retira em deferência ao princípio superior, ou renuncia ao seu papel administrativo, ou se subordina de forma a contribuir em favor da direção da alma pelo deus, ou de alguma outra maneira passa a servi-lo como mestre.[11]

 

Essa passagem não apenas confirma a origem astral do daimōn pessoal, como também ilumina sua função essencial no processo de deificação da alma. Como desenvolvo em Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula, a abordagem teúrgica de Jâmblico em De Mysteriis é fundamentalmente hermética: sua concepção da arte hierática da teurgia se apoia em muitos dos princípios que encontramos no Corpus Hermeticum, sobretudo no que diz respeito à estrutura do Cosmos e à jornada da alma. Ao associar o daimōn pessoal à descida — ou queda — da alma no reino da geração (genesis), Jâmblico retoma o modelo hermético segundo o qual a alma, ao atravessar as esferas planetárias, adquire sucessivas vestes ou invólucros astrais. Esses envoltórios pneumáticos, que condicionam sua atuação no mundo sublunar, precisam ser posteriormente purificados no caminho ascendente (anábasis) através da prática da teurgia.

 

Em Jâmblico, o daimōn pessoal não é mera consequência das conjunções astrais fixadas na carta natal, mas a própria síntese da herança espiritual que a alma carrega do Cosmos enquanto totalidade viva. Sua origem é anterior ao nascimento terreno e representa uma condensação individualizada das influências cósmicas absorvidas pela alma ao longo de sua descida à geração. À medida que a alma se move pelas esferas planetárias, ela incorpora virtudes e paixões transmitidas pelos deuses astrais — não como adereços externos, mas como camadas ontológicas de seu próprio ser. O daimōn pessoal emerge, assim, como o operador dessa herança ancestral astral, concentrando nela as determinações do destino individual, ou moira,[12] que Jâmblico compreende como o lote espiritual que cada alma recebe ao ingressar na existência sublunar.

 

Essa compreensão ecoa diretamente as doutrinas herméticas sobre a descida do Homem ao mundo da geração, como vemos na leitura de Vinicius Pimentel:

 

Tendo sido criado à imagem e semelhança do Nous Soberano, o Homem decide participar do processo criativo do cosmos sob a anuência de Poimandres, ele entra na esfera de criação, recebendo então o poder criativo, passa a receber parte do poder dos seus irmãos, os sete administradores para pôr em ação seu projeto. Estando dotado do poder criativo e do poder dos sete, o homem rompe a barreira da esfera criativa para em breve se projetar para fora do mundo celeste em direção ao mundo material. Esses poderes dados pelos sete governadores são tratados de diferentes formas ao longo da Hermética, tendo sobre os homens um efeito duplo, podendo serem descritos como sete vícios que aprisionam o homem na materialidade, como sete virtudes que permitem ao homem a subida ou como sete características essenciais a sobrevivência do homem material aqui no cosmos.[13]

 

Esse mesmo paradigma, segundo o professor David Pessoa de Lira, fundamenta a demonologia hermética:

 

O astralismo influenciou as compreensões herméticas sobre a heimarmenē [o destino]. Os autores herméticos geralmente afirmavam que o homem adquiriu as sete paixões ou afeições da alma quando ele desceu até o nível ou o mundo sublunar, tomando cada paixão de cada um dos deuses astrais (dos astros). Outro exemplo sobre a influência do astralismo é a visão de que o Zodíaco gera ou produz doze tormentos de paixões. A demonologia hermética se fundamenta justamente nesse tipo impasse moral. Os daimones exercem a influência sobre os homens naquilo que corresponde às irracionalidades humanas e não na sua parte racional.[14]

[...] Os daimones eram como agentes dos deuses astrais que se ligavam às pessoas na hora do nascimento. Ou seja, eles eram executores dos destinos estabelecidos pelos deuses astrais. Às vezes, eles se confundiam com o próprio destino estabelecido pelos astros. Os deuses astrais regiam o destino por meio dos daimones.[15]

 

O daimōn pessoal, portanto, não apenas conecta a alma à ordem divina, mas é também o transmissor das potências celestes que moldam o itinerário individual da alma no Cosmos — tanto como provação quanto como vocação.

 

Antes de tratar diretamente da função do daimōn pessoal, Jâmblico introduz uma premissa central herdada da tradição hermética: a natureza dupla do ser humano. Essa doutrina da duplicidade ontológica, amplamente exposta no Corpus Hermeticum, sustenta que o homem participa simultaneamente do mundo inteligível e do mundo gerado, sendo uma síntese de mortalidade e imortalidade, de matéria e espírito, de Cosmos e Nous. Como encontramos na passagem clássica:

 

E por isso, entre todos os animais da terra, o homem é duplo: mortal pelo corpo, mas imortal pelo homem essencial. Pois, sendo imortal e tendo autoridade sobre todas as coisas, ele sofre as coisas mortais, sujeito a heimarmene. Elevando-se, pois, acima da harmonia, ele se tornou um servo harmonioso. E sendo andrógino, ele vem de um pai andrógino e, sem dormir, vem de um que não dorme.[16]

 

A partir dessa concepção, Jâmblico elabora sua doutrina das duas almas, alinhando o platonismo teúrgico à cosmologia hermética. Segundo ele, o ser humano é composto por duas almas distintas: uma que provém do Intelecto Supremo (Nous), participando diretamente do poder demiúrgico e sendo identificada como o daimōn noético; e outra que deriva das esferas astrais, responsável pela conexão com o mundo da geração — esta última é o que chamamos de daimōn pessoal. Como o autor afirma:

 

Conforme esses escritos revelam [i.e. a Hermética], a essência humana manifesta-se por meio de duas almas distintas. De um lado, uma dessas almas origina-se do inteligível primordial e partilha do poder do Demiurgo; no entanto, a outra alma nos é conferida pela esfera dos corpos celestes, e nela reside a alma que vislumbra o Divino. Assim, a alma que nos é transmitida pelas esferas celestiais e astrais adapta-se aos ciclos desses reinos; todavia, a que nos é proporcionada diretamente do Inteligível primordial transcende o ciclo da geração, possibilitando-nos alcançar a libertação do destino e a elevação aos deuses inteligíveis. Portanto, é por intermédio de uma alma como essa que a parte do ritual teúrgico associada à ascensão ao não-gerado atinge o seu propósito supremo.[17]

 

Essa doutrina estabelece que a alma superior, noética, é a centelha do Nous no homem, sendo a via de acesso à imortalidade e à teurgia libertadora; já a alma inferior — astral e passional — está sujeita ao ciclo da geração, ao movimento dos astros e à heimarmenē, i.e. o destino vinculado à encarnação. No Corpus Hermeticum,[18] essa alma inferior é ainda qualificada como o daimōn vingador, pois é ela quem vincula o ser humano às paixões e às consequências morais de suas ações. É a sua ligação com o corpo e com as forças telúricas que introduz a alma na esfera da necessidade e da fatalidade — elementos que apenas a via teúrgica pode transmutar.

 

O daimōn pessoal, segundo a doutrina teúrgica de Jâmblico, constitui o ponto de convergência entre as influências cósmicas e supracósmicas que moldam o destino singular de cada alma. Ele não é apenas o reflexo de forças astrais, mas o mediador inteligente da vida espiritual no mundo da geração, funcionando como o agente que administra o propósito divino da encarnação da alma. Ao escolher seu daimōn como guia antes da descida, a alma estabelece um vínculo irrevogável: o daimōn torna-se seu intérprete, vigia e orientador, ajustando sua atuação conforme o estado espiritual particular da alma no momento de sua imersão no plano material.

 

Jâmblico distingue três categorias de almas corporificadas, e é em função dessa classificação que se delineia a ação do daimōn pessoal: há aquelas almas puras que descem voluntariamente à geração para operar a salvação, purificação ou elevação do próprio mundo sublunar; há almas ainda vinculadas às paixões, que reencarnam para o exercício e aperfeiçoamento de sua disposição interior; e, por fim, há almas compelidas à descida como punição ou expiação. Nos dois primeiros casos, o daimōn atua como guia pedagógico, conduzindo a alma pela via da correção e da virtude; no primeiro, mais raro, como o de Sócrates ou Plotino (204–270 d.E.C.), ele apenas supervisiona o cumprimento do destino autoconferido. Em todos os casos, o daimōn é quem distribui o quinhão de destino — o lógos — de acordo com os influxos astrais que a alma acolheu ao atravessar as esferas planetárias, mas também é ele quem guarda a lembrança dos princípios inteligíveis que transcendem tais influências, permitindo que, mediante o exercício da teurgia, a alma possa se libertar dos grilhões de heimarmenē e retornar à sua fonte divina.

 

Em termos mais precisos, o daimōn pessoal atua como mediador entre a alma encarnada e o conjunto das realidades espirituais, tanto as inteligências urânicas e celestiais quanto os poderes ctonianos e telúricos. Essa mediação não se limita a uma ascensão espiritual aos princípios inteligíveis — como na anábase proposta por Jâmblico —, mas também se manifesta nos contextos catabáticos das tradições de feitiçaria, como ocorre na Quimbanda. Embora a teurgia jâmblica se oriente verticalmente para os deuses celestiais, a função do daimōn pessoal como ponte entre os mundos permanece essencial nos cultos ctônicos, onde o contato e o pacto com espíritos subterrâneos também exige um mediador ontológico entre os níveis da existência.

 

Esse princípio é claramente enunciado no Asclépio latino, onde a distinção entre deuses celestes e terrestres demonstra que o intercâmbio espiritual não se limita ao plano superior:

 

E não penses, ó Asclépio, que os efeitos dos deuses terrenos são talvez vãos: os deuses celestiais habitam os mais altos céus, cada um cumprindo e guardando a ordem que recebeu; mas os nossos [i.e. as inteligências terrestres], por sua vez, cuidam individualmente de certas coisas, predizendo algumas por meio de sortes e divinação, providenciando outras e ajudando de acordo com o necessário, como se fossem amigáveis por uma espécie de parentesco humano. Assim, os deuses celestiais dominam os seguidores da doutrina universal, enquanto os terrenos se ocupam de coisas particulares.[19]

 

A citação reforça o papel dos deuses telúricos como administradores do destino individual, função perfeitamente compatível com a descrição jâmblica do daimōn como distribuidor da moira da alma. Essa convergência entre a Hermética e a teurgia jâmblica permite compreender por que, mesmo em contextos afro-diaspóricos de feitiçaria ctoniana como a Quimbanda no Brasil, o daimōn pessoal permanece um operador central no trânsito entre os mundos, característica indelével da fórmula mágica universal do espírito tutelar.

 

O daimōn pessoal, tal como concebido no platonismo teúrgico, representa uma formulação filosófica e iniciática altamente refinada da antiga doutrina mágica do espírito tutelar — aquela mesma que venho desenvolvendo ao longo das edições do Daemonium como base universal para o entendimento da comunicação espiritual entre o homem e os espíritos. Sua função central como intermediário entre a alma e os mundos invisíveis — sejam eles celestes (urânicos) ou ctônicos — e seus habitantes, é o que o torna plenamente aplicável à prática da feitiçaria ctônica na Quimbanda. Nesse contexto, o daimōn pessoal é compreendido como o mediador interno e singular que permite ao kimbanda estabelecer comunhão com os Gangas do culto, espíritos que se manifestam nas esferas inferiores da criação (i.e. reino sub-lunar) e cujas potências só podem ser evocadas mediante um elo espiritual autêntico. Assim, a figura do daimōn pessoal não é apenas compatível com a estrutura mágica da Quimbanda — ela é condição ontológica para a efetividade da relação mágico-espiritual com os Gangas, pois realiza, à sua maneira, aquilo que a teurgia platônica intentava com os deuses: uma ponte entre a alma encarnada e os poderes invisíveis. Nesse sentido, o daimōn pessoal opera como uma racionalização iniciática da função tradicional do Exu tutelar, permitindo atualizar, dentro da linguagem filosófica, os fundamentos práticos da comunicação com o mundo dos espíritos.

 

A segunda parte da citação de Jâmblico sobre o daimōn pessoal remete diretamente ao processo de deificação da alma, pois é esse ente intermediário que constitui o elo substancial entre as almas encarnadas e os deuses inteligíveis. Segundo Jâmblico, é o daimōn que transmite à parte racional da alma (o logos) os princípios eternos do Intelecto (nous), funcionando como mediador teúrgico da iluminação. Isso confere ao daimōn um papel epistemológico de suma importância: ele é, para Jâmblico, a solução esotérica para o problema da origem dos primeiros princípios do pensamento — o que Aristóteles denominou ta prōta, e os estóicos identificaram como prolēpseis, ou preconcepções naturais. O daimōn é, nesse sentido, tanto o motor das escolhas humanas quanto o canal pelo qual a Inteligência Superior se traduz em razão. Essa doutrina encontra raízes no Timeu de Platão (427-348 a.E.C.), onde o daimōn divinamente designado incita a alma encarnada à sua vocação anabática por afinidade natural com o Cosmos, sendo descrita como uma planta celeste.[20] No entanto, deve-se distinguir entre o nous (ou daimōn noético) e o daimōn pessoal: enquanto o primeiro pertence ao mundo inteligível e eterno, é o segundo — o daimōn pessoal — quem realmente dirige a alma encarnada dentro do domínio da geração, como enfatizaram Jâmblico e Proclo (412-485 d.E.C.) em suas obras.

 

O papel central do daimōn pessoal como supervisor da alma corporificada consiste em orientar seus pensamentos e ações na direção dos sunthēmata — os sinais sagrados que revelam a presença dos deuses no Cosmos. Em De Mysteriis, Jâmblico atribui aos daimones a função primordial de princípios ordenadores que colaboram com a realização da providência divina. Essa função é especialmente perceptível no contexto da divinação. Enquanto a tradição platônica anterior compreendia os daimones como veículos da inspiração divina que emanava dos deuses e se comunicava às almas corporificadas, Jâmblico modifica essa estrutura ao reservar a divinação inspirada diretamente aos próprios deuses,[21] relegando aos daimones uma atuação mais evidente nos mecanismos da divinação indutiva[22] — i.e. aquela realizada por meio de sinais naturais ou de sua mediação espiritual. Ainda assim, mesmo dentro dessa hierarquia, o daimōn pessoal permanece como um elo essencial: é ele quem traduz os influxos divinos, conduzidos por sinais ou inspirações, à consciência da alma encarnada, funcionando como ponte viva entre o mundo inteligível e o mundo da geração.

 

Uma vez estabelecida a comunicação entre o mundo humano e o divino por meio da mediação do daimōn pessoal, este pode, em um determinado ponto da ascensão anímica, ceder seu ofício de guia espiritual ao deus particular que o rege. Proclo afirma que tanto a alma quanto seu daimōn pessoal se encontram ontologicamente subordinados às divindades celestiais das quais procedem, sendo estas responsáveis pela estruturação cósmica de suas naturezas e destinos. Quanto mais a alma se conforma com a essência de seu daimōn, mais intensamente ela participa das emanações espirituais que fluem da divindade patronal à qual ambos pertencem. Nesse processo de reconexão com sua origem divina, a alma pode deliberadamente escolher moldar sua vida conforme os princípios do deus que preside sua seira espiritual.[23]

 

A mesma doutrina é atestada em Olimpiodoro, segundo que a alma que está de acordo com sua natureza essencial escolhe o modo de vida correspondente à série à qual pertence: a vida de um soldado se pertence à série de Ares, a vida de um advogado se pertence à série de Hermes e uma vida de médico ou vidente se está de acordo com a série solar de Apolo.[24]

 

Essa estrutura tem implicações decisivas para a prática mágica. Na teurgia, por exemplo, um daimōn pessoal vinculado à potência celeste de Vênus age como mediador entre a alma e essa esfera venusiana, fazendo com que o teurgo compartilhe — conforme a disposição de sua alma — ora das virtudes, ora das paixões associadas a essa influência astral. A alma, por sua vez, pode manifestar comportamentos e tendências marcadamente venusianas, transmitidas pela atuação de seu daimōn pessoal. Um feiticeiro sob essa regência será naturalmente inclinado ao magnetismo, à sedução, à lascívia, mas também à arte, à beleza e à harmonia. Transportando esse entendimento para o universo da Quimbanda, diríamos que tal indivíduo possuiria um forte àṣẹ para operações de magia amorosa — como amarrações, adoçamentos e seduções. No entanto, mais fundamental ainda: é o daimōn pessoal quem estabelece e sustenta, nos bastidores da alma, a ligação com o Exu tutelar do kimbanda. Após a iniciação, quando o fundamento do Exu é assentado, o daimōn pessoal é ritualmente subordinado ao Exu e passa a operar como canal e receptáculo de sua força. A partir desse pacto, é através do daimōn que o kimbanda passa a receber, como um cálice transbordante, a potência viva do Exu tutelar, que inunda seus caminhos, sua alma e sua feitiçaria.

 

A partir desse ponto, o kimbanda inicia sua jornada de deificação catabática — ou seja, uma ascensão pela via da descida às profundezas. Sua iniciação na Quimbanda o conduz até os portões do Inferno, e é a partir daí que seu Exu tutelar passa a guiá-lo pelas camadas abissais do Submundo, domínio do Chefe Império Maioral, o Diabo. O processo de deificação da alma na Quimbanda ocorre mediante a recepção progressiva da potência do Exu tutelar no âmago da alma do iniciado. Por isso se afirma que todo kimbanda, no curso pleno de sua trajetória mágica, se tornará um Exu — incorporando em sua linha de trabalho a natureza e o poder espiritual de seu próprio guia ancestral.

 

Ainda que o conceito de daimōn pessoal não apareça explicitamente nas tradições da Quimbanda, sua compreensão — especialmente à luz da teurgia platônica — enriquece substancialmente a prática mágica. Ele permite estruturar e aprofundar o entendimento do vínculo entre o kimbanda e seu Exu tutelar, tanto no que diz respeito ao processo iniciático de deificação da alma quanto na especialização prática nas diversas áreas de atuação da magia: como trabalhos de amor, saúde, vitória, justiça ou prosperidade material. Integrar essa chave de leitura ao universo da Quimbanda é lançar luz sobre seus fundamentos arquetípicos e espirituais mais profundos.

 

 

Seção . I I .

O Sagrado Diabo Guardião

 

Chegamos agora a um ponto de inflexão doutrinária do qual não se pode retroceder — especialmente se nos dirigimos ao leitor ocultista que compreende a seriedade iniciática da doutrina do daimōn pessoal. É necessário reconhecer que, na estrutura da Quimbanda moderna, não há espaço — nem necessidade — para a figura tradicional do Sagrado Anjo Guardião, como foi concebida no Ocultismo cristão ou reinterpretada nas correntes modernas como Thelema a partir do daimōn pessoal do platonismo tardio. Isso, no entanto, não representa limitação alguma. O que importa é a função: e essa função permanece. Pois é esse espírito — o daimōn pessoal — que atua como elo oculto, operador mágico e mediador invisível entre o kimbanda e o seu Exu tutelar. Independentemente de o iniciado reconhecer ou não essa estrutura metafísica, a verdade operativa permanece: sem o daimōn pessoal não há comunhão verdadeira com a linhagem mágico-ancestral que rege seu destino.

 

Na Quimbanda, entretanto, o imaginário simbólico e a iconografia espiritual não se alinham aos paradigmas angelicais ou celestiais. Desde a formulação sistemática promovida por Aluízio Fontenelle (1913–1952), a Quimbanda assumiu integralmente uma estética infernal, demoníaca e diabólica. Dentro dessa tradição, falar de anjos é não apenas inadequado — por sua conotação cristã e moralista —, mas também anacrônico, quando inserido no corpo doutrinário da feitiçaria diabólica brasileira. É por isso que, na Quimbanda, o que em outras tradições poderia ser chamado de anjo guardião, aqui se revela como o Sagrado Diabo Guardião: uma instância da consciência espiritual que, por sua natureza ambígua e mediadora, conecta a alma do kimbanda ao Reino Infernal, traduzindo os desígnios do Exu tutelar em intuições, impulsos e revelações. Trata-se, pois, de uma versão infernalizada da figura do espírito tutelar — fiel à cosmologia mágica da Quimbanda e plenamente compatível com a doutrina do daimōn pessoal enquanto operador iniciático do destino e da deificação.

 

A utilização da palavra anjo em expressões como Sagrado Anjo Guardião (S.A.G.) não deve ser interpretada segundo os significados historicamente estabelecidos pelo cristianismo, nem pelas concepções angélicas herdadas da Septuaginta ou das teologias patrísticas. Quando Aleister Crowley adota esse termo a partir do Livro da Magia Sagrada de Abramelin, não o faz com a intenção de manter o conceito de anjo enquanto entidade celeste, moralizada e submissa a um Deus transcendente. Ao contrário, como demonstrado no Daemonium: Curso de Filosofia Oculta, o S.A.G. em Thelema representa uma recessão moderna da fórmula mágica arcaica do espírito tutelar, cuja origem remonta ao daimōn pessoal do platonismo teúrgico. No universo de Thelema, anjo é sinônimo funcional de espírito intermediário, que pode ser descrito também como gênio, daimōn, espírito familiar, ajudante espiritual ou até mesmo diabo pessoal. O próprio Aiwass — identificado por Crowley como seu S.A.G. — não possui traços iconográficos ou teológicos compatíveis com um anjo no sentido cristão; trata-se, na verdade, de uma inteligência praeter-humana que pode ser classificado mais adequadamente como um daimōn teúrgico ou mesmo um Chefe Secreto, segundo as categorias da A∴A∴ (Astrum Argentum).

 

Na Quimbanda, portanto, onde o imaginário simbólico é infernal e a estrutura mágico-religiosa está centrada nos Exus e Pombagiras — espíritos ctonianos e de natureza ambígua —, a terminologia angelical não apenas se mostra anacrônica, mas doutrinariamente inadequada. A figura que, em outros sistemas, exerce o papel de espírito tutelar ou S.A.G., manifesta-se aqui como o Sagrado Diabo Guardião: um espírito de natureza intermediária, que conecta a alma do kimbanda ao seu Exu tutelar. Após a iniciação, esse daimōn pessoal é ritualmente subordinado ao Exu, assumindo funções operativas dentro da hierarquia infernal da Quimbanda. Assim, enquanto na teurgia platônica e hermética o daimōn pessoal é alinhado ao nous como expressão da Verdadeira Vontade, na Quimbanda ele é vinculado telurgicamente ao àṣẹ e ao destino mágico transmitido pelo Exu — realizando uma forma afro-brasileira da mesma fórmula mágica ancestral.

 

A partir das práticas rituais da cabalá crioula — i.e. a sistematização das tradições mágicas afro-brasileiras em diálogo com os fundamentos herméticos e teúrgicos da Antiguidade —, torna-se plenamente possível e operativamente eficaz o assentamento do Sagrado Diabo Guardião. Trata-se do espírito pessoal ou daimōn, alinhado e subordinado ritualmente à autoridade do Exu tutelar do kimbanda, segundo a doutrina da nova síntese da magia,[25] que integra elementos da magia cerimonial europeia e da feitiçaria afro-diaspórica nas Américas.

 

Esse assentamento não é meramente simbólico ou devocional, mas constitui uma materialização telúrica do vínculo espiritual entre o kimbanda e seu espírito tutelar intermediário. Através dessa operação, o Sagrado Diabo Guardião passa a habitar um ponto fixo, dotado de força (àṣẹ) e estrutura mágica, por meio do qual se estabelece um canal permanente de comunicação com os planos invisíveis. Ele se torna, assim, o mensageiro pessoal do Exu, operando como um espírito auxiliar no cumprimento da Vontade mágica do iniciado, ajudando-o a interpretar sinais, realizar encantamentos, e manter a disciplina do caminho catabático de deificação da alma. Essa prática consagra definitivamente o daimōn pessoal à hierarquia infernal da Quimbanda, realizando a integração entre o destino astrológico individual e o pacto telúrico com os Exus — i.e. uma teurgia encarnada nos termos da cultura afro-brasileira.

 

 

 

Táta Nganga Kamuxinzela

Cova de Cipriano Feiticeiro

 

 


NOTAS:

[1] David Pessoa de Lira. A Demonologia no Ambiente do Novo Testamento: Uma Análise Ideológico-Conceptual da Palavra daimōn no Corpus Hermeticum. Protestantismo em Revista, v. 25, 2011, p 91.

[2] No prelo. O livro articulará, pela primeira vez de forma sistemática, o platonismo tardio, a teurgia hermética e os fundamentos de uma cabalá afro-diaspórica sincrética. Trata-se de uma obra de Ocultismo que aprofunda o conceito de cabalá crioula — já introduzido nos volumes anteriores da série Daemonium — como um sistema de magia e sabedoria oculta forjado a partir da síntese entre práticas africanas ctônicas, influências europeias esotéricas (como a alquimia e os grimórios) e saberes ameríndios ancestrais. O livro propõe ainda uma revisão e ampliação do ritual de Conhecimento & Conversação com o daimōn pessoal, estabelecendo pontes entre a teurgia de Jâmblico, o hermetismo alexandrino e os arcanos da feitiçaria brasileira.

[3] Por platonismo tardio me refiro ao neoplatonismo, termo que prefiro não utilizar. Hoje já existe certo consenso entre acadêmicos de que o termo é muito mal-empregado, e outras terminações como platonismo tardio ou platonismo teúrgico são bem melhores. Veja Gregory Shaw. Hellenic Tantra: The Theurgic Platonism of Iamblichus. Angelico Press, 2024.

[4] O Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago é um grimório atribuído ao rabino cabalista Abraham von Worms, supostamente escrito no Séc. XV, mas cuja forma mais conhecida deriva da tradução inglesa realizada por Samuel Liddell MacGregor Mathers (1854-1918) em 1898. A obra foi fundamental na tradição mágica ocidental moderna, especialmente na doutrina da Thelema, por estabelecer como objetivo central da prática mística do Conhecimento e Conversação com o Sagrado Anjo Guardião. Embora contenha traços da cabalá prática judaico-alemã (especialmente da corrente conhecida como Hekhalot), sua estrutura é fortemente cristianizada e marcada por traços da magia renascentista e da mística germânica. Na tradição ocidental moderna, o Sagrado Anjo Guardião foi reinterpretado por Aleister Crowley (1875–1947) como o próprio Eu Superior, e no fim de sua vida, em uma entidade objetiva, convertendo o sistema de Abramelin em um rito central da prática thelêmica, especialmente a partir do Liber Samekh. Veja Fernando Liguori. Em Nome da Besta (Vol.), Clube de Autores, 2017; Corrente 93, Clube de Autores, 2017; Daemonium: Curso de Filosofia Oculta, Clube de Autores, 2019.

[5] A relação entre a Quimbanda e as ciências ocultas — tais como a astrologia, alquimia, cabalá e magia cerimonial — não é derivada de injunções externas ou sincretismos superficiais, mas resulta de uma convergência ontológica entre sistemas operativos voltados à manipulação dos éteres sublunares e à atuação dos mortos deificados. Como demonstrado em Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023) e Wanga: o Segredo do Diabo (Clube de Autores, 2024), a Quimbanda brasileira, embora baseada na cosmovisão banto e fundamentada na cabalá crioula, desenvolveu um sistema mágico plenamente autônomo e complexo, capaz de dialogar com os grimórios europeus e o hermetismo tradicional sem perder sua soberania espiritual. No Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2022), por exemplo, evidencia-se que a estrutura hierárquica dos Gangas ecoa diretamente os esquemas demonológicos da tradição salomônica, como no Grimorium Verum ou na Chave de Salomão. Assim, longe de uma apropriação acrítica, a Quimbanda assimila, metaboliza e reconfigura os saberes ocultistas com sua própria gnōsis, conforme o princípio afirmado acima: a Quimbanda soma e a Quimbanda aproveita o que você tem, pois já opera, por sua própria natureza, na lógica da goécia (grega antiga e salomônica), da necromancia e nigromancia, da magia demoníaca medieval e magia natural renascentista, sem depender delas para legitimar-se.

[6] Essa afirmação deve ser compreendida não como uma analogia superficial, mas como o reconhecimento de uma isomorfia operativa entre a tradição alquímica ocidental e os processos iniciáticos e rituais da Quimbanda. A feitiçaria tradicional brasileira está profundamente enraizada em uma lógica de transmutação da matéria vital – onde elementos vegetais, animais, minerais e espirituais sofrem purificações, dissoluções, combustões e sublimações análogas às operações clássicas da Magnum Opus. O exemplo do omieró, cujo preparo envolve a morte ritual da matéria vegetal e sua renascença como néctar encantado (ambrosia), revela que a Quimbanda realiza, em seus próprios termos, o processo de coobação alquímica, convertendo substância profana em veículo de poder espiritual. A Pedra Filosofal da Quimbanda não é metáfora, mas substância operativa: o produto final de uma operação mágica que, ao elevar o estado vibratório da matéria, a torna receptáculo do àṣẹ, princípio vital afro-diaspórico análogo à virtus alquímica. A alquimia, nesse contexto, é compreendida como Arte Régia porque rege a transmutação do feiticeiro tanto quanto de suas ferramentas. Para um verdadeiro kimbanda, todas as operações mágicas são operações alquímicas.

[7] A astrologia na Quimbanda não deve ser confundida com um sistema interpretativo ou adivinhatório nos moldes da astrologia ocidental moderna, mas sim compreendida como um saber oculto operativo que estrutura os ritmos, signos e correspondências simbólicas do trabalho com os Exus e Pombagiras. Em Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia (Clube de Autores, 2024), demonstro que o culto ao Chefe Império Maioral — cuja iconografia heráldica contém signos planetários, zodiacais e alquímicos — pressupõe uma astrologia prática implícita, centrada nas relações entre os ciclos lunares e os momentos de poder ritual. Os signos celestes funcionam como marcas do àṣẹ temporal, orientando a escolha dos dias propícios, das conjunções benéficas ou adversas, das portas entre os mundos. A noção de astrologia na Quimbanda, portanto, não opera por sistemas exógenos, mas emerge organicamente do culto: a lua sangrando no cemitério, Marte em dia de despacho, Mercúrio nas encruzilhadas. Todo feiticeiro atento ao tempo sabe que o céu comanda a terra, e os Exus sabem lê-lo.

[8] A expressão visão daemônica do Cosmos designa uma cosmovisão em que os fenômenos naturais, espirituais e psíquicos são mediados por entidades daemônicas — i.e. inteligências intermediárias entre o mundo invisível e o sensível. No Daemonium: Curso de Filosofia Oculta (Clube de Autores, 2019), essa visão é estruturada como uma metafísica operativa da magia, onde o mundo não é compreendido por categorias morais (bem/mal), mas sim por potências, frequências e inteligências daemônicas que conectam a alma ao destino e ao mundo dos mortos. Essa perspectiva desloca o eixo religioso para uma compreensão mágica e metafísica do real, na qual a comunicação com os Exus e Pombagiras se dá por ressonância espiritual, por identificação vibratória e por àṣẹ compartilhado — sendo o daimōn pessoal o centro vivo dessa mediação. Trata-se de uma visão integral do mundo como um teatro animado de forças, no qual a alma só enxerga o Sagrado ao aprender a ver como os espíritos veem: daemonicamente.

[9] Jâmblico foi um filósofo platônico sírio nascido em Calcis, na Celessíria (atual Qinnasrin, Síria), discípulo de Porfírio (234-305 d.E.C.) e uma das figuras centrais no desenvolvimento do platonismo teúrgico tardio. Rompendo com certas reservas do mestre quanto à prática teúrgica, Jâmblico sistematizou uma teologia dos rituais mágicos como expressão legítima e necessária da união da alma com os deuses. Sua obra mais conhecida, De Mysteriis Aegyptiorum (ou simplesmente De Mysteriis), responde às críticas de Porfírio à teurgia e estabelece a distinção radical entre os níveis do divino, os modos de atuação espiritual e a hierarquia das entidades cósmicas — como deuses, daimones, heróis e almas. Para Jâmblico, o daimōn pessoal é o elo central entre a alma individual e o Cosmos, e seu culto é essencial ao processo de retorno (epistrophê) da alma à sua origem divina.

No contexto do esoterismo ocidental e do Ocultismo moderno, a influência de Jâmblico é duradoura e decisiva. Suas doutrinas foram retomadas pelos renascentistas hermeticistas como Ficino (1433-1499) e Pico della Mirandola (1463-1494), influenciando a tradição da teurgia cristã, os grimórios cerimoniais e, mais tarde, a teosofia ocidental e a magia da Aurora Dourada. Como observa Wouter J. Hanegraaff, Jâmblico representa a integração mais sofisticada entre filosofia platônica e religião prática, convertendo o ritual em epistemologia sagrada (Hermetic Spirituality, Cambridge, 2022, p. 90–92). Sua valorização da iniciação, dos ritos, dos nomes divinos e das correspondências como caminhos de elevação espiritual ressoa intensamente com a estrutura simbólica do Ocultismo moderno, tornando-o um dos pilares invisíveis da tradição esotérica do Ocidente.

[10] O conceito de Cabalá Crioula, cunhado por mim em 2016, designa um sistema esotérico miscigenado de feitiçaria ctônica e magia operativa, enraizado na experiência histórica e espiritual das diásporas afro-atlânticas. A expressão associa a noção tradicional de kabbalah — enquanto transmissão iniciática de saberes ocultos — a uma matriz crioula marcada pela fusão entre práticas africanas ancestrais (animistas, fetichistas, necromânticas), elementos da magia cerimonial europeia (grimórios, astrologia, alquimia) e cosmologias ameríndias (espíritos totêmicos e medicina vegetal). Na Cabalá Crioula, tais elementos não se justapõem arbitrariamente, mas se integram numa lógica operativa própria, onde o conhecimento é transmitido por linhagens espirituais, espíritos patronos (como Exu Cipriano Feiticeiro, cf. Wanga: o Segredo do Diabo, Clube de Autores, 2024) e experiências rituais diretas. Distante de qualquer vínculo com o judaísmo ou as tradições semitas, a Cabalá Crioula constitui um corpo mágico autônomo, comparável — em espírito e estrutura — à teurgia platônica de Jâmblico, ao tantrismo śaiva da Caxemira e à feitiçaria prática dos Papiros Mágicos Gregos. Trata-se de uma tradição de resistência e criação, forjada no fogo da alteridade e orientada para a deificação da alma por meio da prática mágica.

[11] Jâmblico. De Mysteriis. Livro IX, Verso 6. Polar, 2024, pp. 349-50.

[12] O termo moira (μοῖρα), na tradição grega arcaica, designava inicialmente a parte ou porção que cabe a cada ser vivo segundo a ordem do Cosmos — i.e. seu destino. Com o tempo, passou a indicar o próprio princípio do destino, governado pelas divindades chamadas Moirai (Parcas em latim), que regulavam o fio da vida de todos os seres. No contexto do platonismo tardio, especialmente em Jâmblico, moira é reinterpretada como o lote espiritual que a alma recebe ao descer ao mundo sublunar, constituindo-se como o conjunto de influências astrais, potenciais e desafios específicos que delineiam sua trajetória iniciática. O daimōn pessoal, nesse quadro, é o executor e administrador dessa moira, funcionando como intermediário entre as potências cósmicas e o sujeito encarnado, e orientando-o — se devidamente cultuado — em direção à anábasis, ou ascensão espiritual.

[13] Vinícius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética. Edição do autor.

[14] David Pessoa de Lira. A Demonologia no Ambiente do Novo Testamento: Uma Análise Ideológico-Conceptual da Palavra daimōn no Corpus Hermeticum. Protestantismo em Revista, v. 25, 2011, p 95.

[15] Ibidem.

[16] Corpus Hermeticum, Livro I, Verso 15. Tradução de Vinícius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética. Edição do autor.

[17] Jâmblico. De Mysteriis. Livro VIII, Verso 6. Polar, 2024, pp. 338.

[18] Corpus Hermeticum, Livro I, Versos 22-23. Tradução de Vinícius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética. Edição do autor.

[19] Asclépio latino, 38b. Tradução em Vinícius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética. Edição do autor.

[20] Platão. Timeu, 90A.

[21] Jâmblico. De Mysteriis. Livro III, Verso 7. Polar, 2024.

[22] Jâmblico. De Mysteriis. Livro III, Verso 15. Polar, 2024.

[23] O termo seira (σειρά), presente na filosofia teúrgica de Jâmblico, refere-se a uma cadeia divina à qual a alma está ontologicamente vinculada. Cada seira corresponde a uma série espiritual presidida por um deus específico, e todos os seres subordinados a esse deus – incluindo daimones, almas humanas e outras inteligências – compartilham uma natureza comum e funções correspondentes dentro da ordem cósmica. Tal estrutura hierárquica fundamenta a prática teúrgica: a ascensão espiritual (anábase) deve ocorrer dentro da seira própria, e qualquer tentativa de culto ou invocação a deuses de outras séries pode gerar desarmonia ou resultar em ineficácia mágica. Jâmblico rejeita o ecletismo religioso por considerá-lo desprovido de fundamentação ontológica e perigoso à alma.

Transposto ao contexto da Quimbanda afro-brasileira – especialmente em sua formulação contemporânea, o conceito de seira encontra paralelo na estrutura das linhas ancestrais mágicas e espirituais às quais o iniciado é ritualmente incorporado por meio de seu Exu ou Pombagira tutelar. O Exu, assentado ritualmente no mundo material, atua como senhor da seira do iniciado, assumindo o governo de seu destino e reorganizando, no processo iniciático, as potências de seu daimōn pessoal. Assim como no platonismo teúrgico o retorno ao divino se dá exclusivamente dentro da seira apropriada, também na Quimbanda a deificação da alma se efetiva apenas quando o praticante permanece fiel à linha espiritual viva que o acolheu. Essa analogia revela uma profunda convergência entre a teurgia platônica e a estrutura tradicional da Quimbanda, ambas assentadas sobre o princípio iniciático da filiação espiritual legítima.

[24] Akindynos Kaniamos. The Personal Daimōn in Iamblichus’ De Mysteriis: Astral Origins, Ritual and Divinization.

[25] Veja Revista Nganga, No. 10.

 
 
 

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