



KALUNGA
Teurgia & Cabalá Crioula
Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula, sendo a Doxografia Goética Vol. II, aprofunda uma das teses mais ousadas e fecundas dos estudos contemporâneos sobre teurgia, hermetismo e religiões afro-diaspóricas no contexto do esoterismo ocidental e da nova síntese da magia: a de que as técnicas da magia são universais, ontológicas, e variam surpreendentemente pouco entre culturas, ao passo que mitos, linguagens e iconografias se modificam para expressar, localmente, uma mesma infraestrutura metafísica. Esta obra conduz o leitor através de uma comparação inédita entre os sistemas teúrgicos mediterrâneos — Oráculos Caldeus, Hermetismo Alexandrino, Teurgia platônica — e as tradições crioulas do Atlântico Negro, especialmente a Quimbanda, demonstrando que ambas compartilham uma mesma arquitetura ritual: construção de corpos sagrados, animação de imagens, sacrifício, purificação, corporificação divina e travessia entre mundos. O livro revela que a Quimbanda, longe de ser simples feitiçaria popular, é uma forma plena de teurgia crioula: uma ontologia operativa que reconhece no corpo, no sangue, no fundamento e na palavra ritual as vias pelas quais a presença espiritual se manifesta no mundo.
A obra se destaca, igualmente, por uma crítica historiográfica rigorosa às categorias que moldaram o imaginário ocidental sobre magia. Desmonta, com base em filologia, antropologia e história das religiões, a dicotomia artificial entre teurgia e goécia, demonstrando que ela não pertence às práticas antigas, mas à ideologia tardia das elites platônicas e da teologia cristã que buscavam hierarquizar experiências rituais populares. Ao retomar os testemunhos de Jâmblico, Proclo, Damáscio e dos Oráculos Caldeus, o livro mostra que as operações consideradas teúrgicas — iluminação, anábase, telestikē — coexistiam estruturalmente com práticas chamadas goécia: necromancia, manipulação de potências ctônicas, animação de imagens. O Vol. II, portanto, dá continuidade ao trabalho do Vol. I, purificando o olhar do leitor contemporâneo e mostrando que a Quimbanda brasileira conserva, sob forma crioula e ctônica, a mesma ciência hierática do Mediterrâneo antigo. Nesse processo, o livro estabelece a Quimbanda como herdeira legítima — não genealógica, mas estrutural — da goēteia antiga e da teurgia hermética.
Por fim, Kalunga formula a contribuição conceitual mais ousada de seu autor: a de que cabalá crioula — longe de designar um sistema sincrético ou imitação da cabalá judaica — é uma categoria epistemológica que descreve a capacidade afro-diaspórica de reorganizar símbolos, potências e técnicas rituais transcontinentais dentro da cosmologia africana da kalunga. É a travessia enquanto princípio metafísico que permite ao livro aproximar o berço alexandrino da teurgia e o terreiro afro-brasileiro, mostrando que ambos operam com fetiches preparados e consagrados, sacrifícios e oferendas, ancestrais e daimones, e com uma concepção do Cosmos como campo vibratório permeado de vida. O resultado é uma obra que ultrapassa fronteiras disciplinares, oferecendo ao leitor uma filosofia da magia comparada, fundamentada na erudição filológica e na experiência sacerdotal, e estabelecendo Kalunga como um dos estudos mais ambiciosos já produzidos sobre a convergência entre o esoterismo clássico e o pensamento crioulo afro-diaspórico.


KALUNGA
A imagem de capa deste volume não é decorativa, mas uma declaração epistemológica que condensa tensões históricas e filosóficas do Atlântico Negro. A figura flamejante do Maioral, erguendo-se da kalunga e empunhando a dikenga, não evoca uma África idealizada, mas o lugar real onde a Quimbanda se constitui: o espaço da travessia, no qual cosmologias banto se encontram com demonologias europeias e imaginários ibéricos. A dikenga, em mãos do Maioral, não afirma uma pureza africana, mas torna explícito que a Quimbanda é um produto crioulo — nascida do choque entre sistemas rituais, da ressignificação de símbolos, e da capacidade afro-diaspórica de inscrever o mundo mediterrânico em categorias africanas.
Este gesto confronta dois equívocos complementares. Contra o africanismo higienizador, que busca expulsar da Quimbanda qualquer rastro europeu — ignorando que sua sistematização moderna, desde Fontenelle, se apoiou deliberadamente na iconografia fáustica e cipriânica —, a capa recorda que não existe Quimbanda pura porque nunca existiu África pura no Atlântico. Contra o eurocentrismo teológico, que supõe que o Diabo europeu se imporia às tradições afro-brasileiras como corpo estranho, a capa demonstra a operação contrária: o Diabo é desocidentalizado ao atravessar a kalunga e torna-se o Chefe da Quimbanda. O que no Ocidente é demonologia, na Quimbanda se torna teologia crioula.
A fusão entre dikenga e Maioral exprime, em síntese visual, a tese fundamental deste livro: as técnicas da magia são universais e ontológicas, variando pouco entre culturas, ao passo que os mitos, linguagens e iconografias mudam e se atualizam. A Quimbanda demonstra essa universalidade ao unir a feitiçaria ctôniana africana à demonologia europeia, tal como a teurgia antiga unia receptáculos materiais às potências superiores. A capa torna visível o argumento que atravessa todo este volume: a cabalá crioula não nasce da Europa nem da África, mas da travessia — da capacidade afro-diaspórica de reorganizar materiais rituais transcontinentais dentro da ontologia africana da kalunga, produzindo uma teurgia crioula irredutível a qualquer ideal moderno de pureza cultural.

KALUNGA: TEURGIA & CABALÁ CRIOULA

TUDO É KALUNGA
A localização do reino dos mortos era desconhecida. Acreditava-se que eles residiam no Submundo abaixo das florestas e dos rios. Esses locais eram zonas de poder, portais de conexão com os mortos, de modo que qualquer rio ou oceano, qualquer área arborizada e qualquer espaço subterrâneo, tratava-se de um acesso ao reino dos mortos. Essa ideia congolesa, de que o reino dos mortos está em toda parte, influenciou profundamente o entendimento dos reinos na Quimbanda: se tudo é kalunga, na Quimbanda ela tornou-se uma geografia oculta de poder mágico, fracionada em reinos, classificados segundo a qualidade de seu moyo, e organizados de modo a alocar os Povos de Exu.


AS TÉCNICAS DE MAGIA SÃO UNIVERSAIS
A tese central deste livro sustenta que as técnicas de magia — invocação, sacrifício, consagrações, animação ritual, construção de receptáculos e fetiches mágicos, purificação, anábase e catábase — não são produtos contingentes de culturas particulares, mas expressões convergentes de um mesmo princípio ontológico de mediação entre níveis de realidade. Em termos filosóficos, trata-se de reconhecer que toda tradição ritual que articula a relação entre homens, ancestrais e potências divinas opera com um conjunto limitado e estruturalmente estável de tecnologias ontológicas: manipular e ordenar a materia magica, ativar a presença espiritual, corporificar o sagrado e atravessar limiares. Essas operações variam em linguagem, mito e iconografia, mas não em sua lógica profunda: sejam elas formuladas na teurgia platônica como symbola e sunthēmata, nos rituais herméticos como agalma e hupodochē, na cultura religiosa banto como nkisi ou na Quimbanda como fundamentos de Exu, todas respondem ao mesmo impulso metafísico — criar condições materiais e espirituais para que a presença divina transite entre mundos. A universalidade dessas técnicas não implica uniformidade cultural, mas revela a estrutura comum da experiência humana do sagrado: um esforço contínuo de corporificação, contacto e travessia, pelo qual o Cosmos é compreendido como tecido de forças vivas e a matéria como veículo legítimo da ação divina. É essa arquitetura universal da mediação que permite comparar, com rigor e sem reducionismo, práticas teúrgicas mediterrâneas e tradições afro-diaspóricas, mostrando que a magia, antes de ser uma coleção de crenças, é uma ontologia operativa compartilhada pela humanidade.

O Asclépio afirma que o Egito faz deuses porque detém a ciência ritual dos symbola e sunthēmata — i.e. porque conhece os sinais ontológicos que os deuses deixam inscritos na matéria e domina as técnicas pelas quais esses sinais podem ser ativados e recombinados. Essa afirmação, frequentemente lida como hipérbole religiosa, é, na verdade, um enunciado técnico da arte hierática egípcia: a fabricação de um agalma não consiste em criar uma imagem metafórica, mas em preparar uma porção de matéria segundo uma gramática simbólica pré-estabelecida, de modo que ela se torne hupodochē — um receptáculo ontologicamente apto a receber a descida (eisodos) da potência divina. A teurgia hermética repousa precisamente sobre esse princípio: a corporificação da presença espiritual, sobrenatural ou daemônica, na qual o pneuma divino é atraído e fixado em uma imagem ou corpo preparado. Como observa Proclo, as estátuas, quando devidamente consagradas, tornam-se participantes da vida divina, porque os sunthēmata nelas inscritos restabelecem o vínculo com a fonte noética que lhes deu origem. O Asclépio não descreve, pois, uma idolatria ingênua, mas uma ontologia ritual na qual o divino se torna operativo apenas quando corporificado.
Essa estrutura hierática — preparar um corpo, ativá-lo ritualmente e assentá-lo como morada do poder divino — não desaparece com o avanço do cristianismo. Ela atravessa o Mediterrâneo, sobrevive nos grimórios e reemerge, sob novas formas e linguagens, nas tradições afro-diaspóricas das Américas. Na Quimbanda, essa estrutura opera com precisão técnica análoga: o táta-nganga fabrica um assentamento de poder, um corpo teléstico combinando materiais dotados de valor ontológico — ferros, ossos, pólvora, ervas, sangue, terras específicas — que funcionam como symbola capazes de convocar e fixar, no plano da geração, uma inteligência terrestre ou, na linguagem do culto, um diabo. O que emerge desse processo não é uma metáfora ou representação do Ganga, mas uma forma corporificada de presença, um ente real cuja ação se funda na combinação de matéria preparada, rito apropriado e inteligências terrestres corporificadas. Em outras palavras, assim como o sacerdote hermético produz theoi epichthónioi (deuses terrestres) mediante técnicas telésticas, o táta-nganga da Quimbanda produz Espíritos Ganga — não como projeções, mas como deidades ontologicamente instituídas pelo rito.
A persistência dessa teurgia entre hermetismo e Quimbanda não se explica por transmissão histórica direta, mas por uma isomorfia estrutural inerente às tecnologias rituais de mediação entre mundos. Tanto no Egito hermético quanto no Atlântico Negro crioulo, o divino não habita o mundo por abstração, mas mediante corpos, e estes corpos não são dados: são construídos. A fabricação de um agalma e a construção de um fundamento obedecem ao mesmo princípio ontológico: ambos são máquinas de presença, dispositivos rituais capazes de articular, através de materiais adequados e rituais codificados, a corporificação de uma divindade terrestre e sua atuação efetiva no plano humano. A teurgia — mediterrânica ou crioula — é sempre uma engenharia: trata-se de produzir, com precisão técnica, a condição para que o divino atravesse os limiares ontológicos e se manifeste no corpo, na matéria e na comunidade que o invoca.
