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A CABALÁ CRIOULA

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

 

Este é um livro de cabalá crioula. Ele foi escrito por um feiticeiro da cabalá crioula para leitores feiticeiros da cabalá crioula. O conceito de cabalá crioula foi cunhado por mim em 2016 e se desenvolveu desde então. Inicialmente ele se referiu a um corpo de conhecimentos esotéricos, mágicos e místicos enraizado na tradição mágica e ancestral afro-diaspórica das Américas. Esse conceito propõe uma estrutura de mistérios e ensinamentos secretos transmitidos de forma oral e prática através de gerações, consolidando-se como uma sabedoria oculta única, moldada pelas interações culturais e espirituais entre os povos africanos, europeus e ameríndios no contexto da diáspora nas Américas. Por um lado, trata-se de um conceito guarda-chuva para as culturas mágicas da nova síntese da magia[1] que tratei no terceiro volume do Daemonium como a Quimbanda, Umbanda e Jurema no Brasil, o Vodu no Haiti, o Palo Monte em Cuba, a Santeria nos Estados Unidos etc. Toda sorte de cultos, tradições e religiões afro-diaspóricas crioulas, quer dizer, miscigenadas culturalmente e religiosamente a partir de três troncos ancestrais: africano, europeu e sociedades aborígenes das Américas no Sul, Central e do Norte. Por outro lado, o conceito pode também indicar uma prática ocultista pessoal de feitiçaria ctoniana ancestral baseada na cabalá francesa da Quimbanda Mussurumin, que também tratei no terceiro volume do Daemonium. O grigori ou espírito patrono deste trabalho prático de cabalá crioula é Exu Cipriano Feiticeiro.[2]

 

Todas as tradições crioulas citadas acima são, portanto, marcadas pela fusão religiosa e cultural de três troncos ancestrais: o africano, representado por suas práticas ctônicas, fetichistas, vitalistas e animistas em rituais e saberes mágico-ancestrais; o europeu, que trouxe a influência dos grimórios, da alquimia, das astrologia e da magia cerimonial; e o ameríndio, que incorporou o poder das ervas, a conexão com as forças da natureza e os espíritos totêmicos dos ancestrais das terras das Américas. Essa miscigenação resultou em sistemas ricos e dinâmicos de práticas espirituais da nova síntese da magia, que valorizam o segredo, a iniciação e a vivência direta do mistério. Isso é cabalá crioula.

 

A cabalá crioula destaca-se por sua flexibilidade, adaptabilidade e poder de síntese, representando uma resposta mágica e espiritual às condições de opressão, resistência e resiliência que caracterizam a experiência da diáspora. Mais do que um conjunto de rituais ou crenças, ela é uma filosofia prática de transformação pessoal e conexão com o sagrado, fundamentada na ancestralidade e na celebração da diversidade cultural. É acima de tudo um testemunho da força espiritual dos povos crioulos, uma sabedoria viva que transcende fronteiras, resgatando e renovando o poder do mistério no mundo contemporâneo.

 


A cabalá crioula celebra a miscigenação cultural e o sincretismo mágico. Baseia-se na preservação e adaptação de práticas e saberes ocultos, incorporando elementos de diversas tradições para criar uma abordagem única, que transcende classificações religiosas ou culturais específicas.

 

O termo cabalá é apropriado para designar a transmissão de saberes secretos, adquiridos por meio de iniciação, prática espiritual e experiência direta com os mistérios do mundo dos espíritos. O Termo crioula refere-se à fusão de práticas e símbolos das tradições africanas, europeias e ameríndias, que, ao longo dos séculos, formaram um sistema mágico singular e dinâmico. E assim como a palavra cabalá sugere recebimento, a cabalá crioula enfatiza o caráter iniciático de seus ensinamentos, transmitidos através de linhagens, famílias espirituais ou mestres e discípulos.

 

Não se trata de um sistema apenas teórico ou filosófico, mas de práticas que conectam o indivíduo ao mundo dos espíritos e às forças da natureza para transformação pessoal, progresso, proteção e manifestação de poder pessoal na forma Ocultismo prático. Como uma prática pessoal de feitiçaria ctônica, a cabalá crioula possui uma abordagem mais fluida e adaptativa, refletindo as realidades das comunidades afro-diaspóricas que em essência permaneceram fetichistas, animistas e totêmicas, onde as forças da natureza representam espíritos ligados aos elementos naturais como água, fogo, terra e ar em toda manifestação corpórea e incorpórea. A cabalá crioula celebra os mistérios ancestrais reconhecendo a sabedoria transmitida pelos espíritos ancestrais, que atuam como guias espirituais portadores de poder que ancoram e catalisam as forças mágicas do culto ou ritual. É ainda caracterizada pela combinação de símbolos, rituais e práticas que refletem a interação com as culturas das quais bebe seus segredos.

 

Um dos aforismos mais importantes que norteiam este livro é: a verdadeira força da magia está conectada as raízes de nossa terra e cultura. Muitos indagam: qual é o sistema mais poderoso de magia? A resposta é: àquele que está conectado as raízes de sua terra e cultura, as suas raízes ancestrais diretas e indiretas. A cabalá crioula busca não apenas decifrar os mistérios do mundo espiritual e os segredos da magia, mas também capacitar os indivíduos a se reconectarem com suas raízes e com as forças invisíveis que moldam a realidade de sua cultura, proporcionando ferramentas mágicas para a compreensão profunda do ser e o alinhamento com as forças e movimentos do Cosmos. Na cabalá crioula a feitiçaria é uma ferramenta para lidar com os desafios pessoais, sociais e culturais, valorizando as raízes ancestrais, resgatando conhecimentos e práticas que foram marginalizados ou esquecidos, unindo-os com as ciências ocultas modernas: magia cerimonial, alquimia, astrologia etc. A cabalá crioula compartilha do mesmo espírito sincrético e miscigenador que eclodiu na feitiçaria dos Papiros Mágicos Gregos, no platonismo teúrgico de Jâmblico (245-325)[3] e Proclo (412-485),[4] e no tantrismo śaiva da Caxemina nas mãos de Abhinavagupta (975-1025).[5] Compartilhando do mesmo espírito, a cabalá crioula converge e cria pontes entre todos esses sistemas, demonstrando a universalidade das técnicas de magia. Esse é outro dos aforismos importantes que norteiam este livro: as técnicas de magia e feitiçaria são universais, elas mudam pouca coisa de uma cultura para outra e, por causa disso, podem ser identificadas e atualizadas dentro de sistemas operacionais nas mais diversas e distantes culturas.

 

A cabalá crioula é uma celebração da riqueza cultural e espiritual das tradições afro-diaspóricas, integrando saberes diversos em um sistema esotérico que reflete a história, a resistência e a criatividade das comunidades que a preservaram. Distante de qualquer relação com o judaísmo ou tradições semitas, esse conceito redefine o termo cabalá como um receptáculo de conhecimento oculto miscigenado, um testemunho da capacidade humana de transformar adversidades em sabedoria e espiritualidade.

 

O livro Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula será lançado em 2025.






NOTAS:

[1] A nova síntese da magia é um conceito que descreve a fusão dinâmica entre práticas esotéricas ocidentais e tradições mágicas afro-diaspóricas, criando um sistema integrado e renovado que transcende as divisões culturais e históricas de suas fontes originais. Fundamentada na tradição dos grimórios europeus, como o Grimorium Verum ou O Livro de São Cipriano e outros textos demonológicos da magia salomônica, essa síntese incorpora elementos ctônicos e necromânticos das práticas afro-brasileiras, em especial no contexto da Quimbanda, ao lado de técnicas extraídas do xamanismo ameríndio. Ela não apenas resgata a feitiçaria ancestral das culturas africanas e europeias, mas também a reinterpreta sob uma perspectiva contemporânea, conectando saberes antigos a contextos modernos.

A nova síntese da magia caracteriza-se pela valorização do contato direto com o mundo dos espíritos, a integração do animismo e a manipulação ritualística de forças naturais e praeter-humanas, envolvendo pactos, oferendas e oráculos. É um modelo que desafia o positivismo e o racionalismo ao oferecer uma visão encantada e pragmática do Cosmos, onde a prática mágica é tanto um ato de resistência cultural quanto uma forma de transcendência espiritual. Ela reflete a interação viva entre culturas, reforçando o papel da ancestralidade e da magia como ferramentas de autoconhecimento, poder e transformação. Ao mesmo tempo, atualiza a magia ocidental ao incorporar metodologias africanas e ameríndias, ressignificando o esoterismo como uma prática plural e transdisciplinar. Essa síntese, portanto, não é apenas uma continuidade, mas uma reinvenção do mágico e do sagrado no mundo.

[2] Veja Fernando Liguori. Wanga: o Segredo do Diabo. Clube de Autores, 2024.

[3] Jâmblico, filósofo e místico da Antiguidade tardia, nasceu por volta de 245 d.E.C. em Cálcis, na Síria, e é amplamente reconhecido como o principal sistematizador da teurgia no contexto do platonismo teúrgico. Discípulo de Porfírio (234-304) e seguidor das ideias de Platão (428-348 a.E.C.), Jâmblico desenvolveu uma interpretação profundamente espiritual da filosofia platônica, defendendo a teurgia como um meio indispensável de alcançar a comunhão com o divino.

Sua obra mais influente, De Mysteriis, foi escrita como uma resposta às críticas de Porfírio, que questionava a eficácia e legitimidade dos rituais teúrgicos. Nessa obra, Jâmblico argumenta que os rituais são necessários para elevar a alma, pois conectam o praticante às esferas superiores de luz e perfeição. Ele enfatiza que a teurgia não é apenas uma prática simbólica, mas um método real e eficaz para transformar a matéria em veículo do divino e purificar a alma. Trata-se de um exercício soteriológico e considera-se que ele seja o inventor da tradição do ritual, que acabaria por culminar na magia cerimonial moderna.

Jâmblico também destacou a importância dos nomes bárbaros de evocação – palavras de poder que transcendem as limitações da linguagem humana comum – e do uso de símbolos, amuletos e oferendas em rituais teúrgicos. Ele acreditava que esses elementos, longe de serem supersticiosos, eram instrumentos essenciais para canalizar as forças espirituais e estabelecer uma ligação direta com os deuses.

Morto por volta de 325 d.E.C., Jâmblico deixou um legado duradouro que influenciou profundamente a filosofia e a espiritualidade ocidentais. Seu trabalho estabeleceu a teurgia como uma prática central no platonismo teúrgico, representando a culminação do próprio platonismo, e inspirou pensadores posteriores, como Proclo, na continuidade dessa tradição mística e filosófica.

[4] Proclo foi um dos mais destacados filósofos do platonismo teúrgico e um dos últimos grandes sistematizadores dessa tradição na Academia de Atenas. Nascido em Constantinopla, foi educado em Alexandria, onde recebeu formação em retórica, matemática e filosofia. Posteriormente, mudou-se para Atenas, onde tornou-se discípulo de Plutarco de Atenas (350-430) e Síriano (morto em 437 d.E.C.), ascendendo à posição de escolarca (líder) da Academia. Sua obra reflete uma síntese monumental do pensamento platônico, enriquecida pela incorporação de elementos de teurgia, uma prática ritualística voltada para a comunhão direta com o divino.

Proclo escreveu extensivamente, destacando-se seus comentários sobre os diálogos de Platão e sua obra Os Elementos de Teologia, que sistematiza o pensamento metafísico platônico. Ele acreditava que a filosofia e a teurgia eram complementares: a filosofia fornecia a base racional para compreender o Cosmos e o divino, enquanto a teurgia permitia que o indivíduo se unisse espiritualmente ao divino através de rituais. Defensor de uma cosmologia hierárquica, ele via o universo como um sistema ordenado de emanações, desde o Uno até o mundo material. Proclo também defendia a preservação dos antigos cultos helênicos em face do avanço do cristianismo. Sua influência foi imensa, ecoando na tradição filosófica bizantina, na escolástica medieval e no Renascimento. Proclo faleceu em 485 d.E.C. em Atenas, deixando um legado intelectual que consolidou o platonismo teúrgico como uma das mais profundas expressões do pensamento antigo.

[5] Abhinavagupta foi um dos mais proeminentes filósofos, místicos e teóricos estéticos da tradição tântrica do Śaivismo da Caxemira. Nascido na região da Caxemira, em uma família erudita profundamente envolvida na prática espiritual e no estudo das escrituras, ele destacou-se por integrar filosofia, teologia, estética e prática espiritual em um sistema coeso e inovador. Abhinavagupta é amplamente reconhecido por suas contribuições ao Pratyabhijñā, uma escola filosófica que enfatiza o reconhecimento da identidade entre o indivíduo e a consciência universal (Śiva). Seus escritos, como o Tantrāloka e o Abhinavabhāratī (um comentário seminal sobre o Nāṭyaśāstra), demonstram uma visão abrangente e profunda da experiência espiritual, combinando práticas esotéricas do tantra com uma análise filosófica rigorosa. Ele também foi um esteta notável, desenvolvendo a teoria rasa, que explora a experiência estética como um meio de elevação espiritual. Abhinavagupta é celebrado como um mestre iluminado que uniu o pensamento filosófico e a prática devocional, deixando um legado que continua a influenciar o pensamento indiano até hoje.




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