top of page
Buscar
Foto do escritorFernando Liguori

A MAGIA DA QUIMBANDA


 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

 

O que segue são as minhas respostas para uma entrevista no YouTube via Itália, canal da La Societa ‘dello Zolfo (@la_societa_dello_zolfo), dia seis de junho de 2024, disponível na íntegra no canal. O objetivo da entrevista foi apresentar a Quimbanda para ocultistas italianos (e europeus de modo geral). Como as perguntas são relevantes também para um público brasileiro, decidi fazer uma versão escrita de algumas respostas, completando a entrevista para o YouTube com detalhes que não me aprofundei ao vivo.

 

1. O que é Quimbanda? Uma religião ou sistema mágico que utiliza espíritos dentro dela?

 

A Quimbanda é um culto afro-diaspórico brasileiro, que converge a miscigenação mágico-religiosa de três culturas: africana (via escravos bantos e yorùbás), brasileira (via povos ameríndios) e europeia (via bruxas degredadas, exilados políticos, criminosos e colonizadores). A Quimbanda nasce dentro desse caudaloso caldeirão de miscigenação cultural, o que acabou por definir, por outro lado, a identidade mágica do Brasil e do brasileiro. Por esse motivo a Quimbanda é o sistema mágico que melhor define o que Jake Stratton-Kent chamou de a nova síntese da magia. Tema abordado na Revista Nganga No. 10.

 

Muito embora a Quimbanda receba seu nome da cultura banto, o que se entende por kimbanda na África não tem nada a ver com a Quimbanda no Brasil. Na África, kimbanda se trata de um ofício sacerdotal, um indivíduo que exerce uma função social, muito próximo da ideia de xamã, curandeiro e pajé. O kimbanda trata-se de um curador, um rezador, e sua arte é conhecida como mbanda, que significa magia ou cura. No Brasil, desde o período colonial até a década de 1950, período este que chamamos de primeiro momento da Quimbanda no Brasil, kimbanda também era o indivíduo, o feiticeiro que trabalhava com um espírito tutelar, um morto deificado. A partir da década de 1940, kimbanda deixa de ser um indivíduo para se tornar um sistema religioso de magia, quando nasce a Quimbanda.

 

A partir da síntese de Aluísio Fontenelle, um ocultista espírita e umbandista brasileiro, a Quimbanda nasce como um sistema de magia sincretizando os Exus mais conhecidos da Macumba (e Umbanda) na época com os espíritos do Grimorium Verum, quando Exu se cristaliza definitivamente no imaginário e folclore brasileiro como Diabo.

 

Na criação do sistema mágico da Quimbanda, Fontenelle foi profundamente influenciado pelas concepções mágicas de Eliphas Levi, trazendo a maioria das ideias de seu Dogma e Ritual de Alma Magia, para Quimbanda. Mas não para por aí! A cultura mágica da França no fim do Séc. XIX, no período que ficou conhecido como o renascer da magia, também impactou a identidade mágica brasileira. A presença de inúmeras lojas maçônicas, a profunda adesão as ideias do Romantismo sobre o Diabo, e variadas doutrinas do ocultismo francês influenciaram a formação da Umbanda, da Quimbanda, da Jurema, do Santo Daime etc. em meados do Séc. XX.

 

No que concerne a Quimbanda ser um sistema religioso ou um sistema mágico, ela é tanto uma religião quanto um sistema de magia que utiliza a ação mágica de espíritos: mortos (égún), mortos deificados (divinizados), e encantados (elementais) da natureza. Eu publiquei um texto, A Quimbanda como Sistema Religioso, disponível na Revista Nganga No. 10, onde explico que a Quimbanda é religião, tanto sob a perspectiva do homem do Mundo Antigo, quanto sob a perspectiva do homem contemporâneo. Ela contém todos os elementos que fazem um culto religioso ser considerado uma religião: cosmologia, cosmogonia, teologia, soteriologia e escatologia.

 

2. Quando a Quimbanda nasceu? É uma derivação da Macumba?

 

Para responder a essa pergunta, primeiro preciso esclarecer: eu trabalho com história, que é diferente de idealismo histórico. A história trabalha com verificação de fatos; o idealismo histórico trabalha com suposições, às vezes idealizadas politicamente, e às vezes fantasiosas, utópicas. Dizer, por exemplo, que a Quimbanda começa quando o europeu pisou no Brasil, trata-se de idealismo histórico. Isso é tanto informação que não pode ser verificada por fontes históricas confiáveis, quanto uma opinião, um achismo, sobre o que o autor gostaria que tivesse ocorrido. No meu trabalho procuro me ater as fontes verificáveis na linha do tempo, fundamentalmente se o tema é sobre a origem de alguma coisa.

 

Como um sistema mágico-religioso, a Quimbanda nasce entre as décadas de 1940 e 1950, através da engenhosidade de dois médiuns umbandistas: Lourenço Braga (década de 1940) e Aluísio Fontenelle (década de 1950). Lourenço Braga era um umbandista conceituado na época, tendo palestrado sobre a Quimbanda como sistema no Primeiro Congresso de Umbanda, neste período. É ele quem lança as bases da Lei de Quimbanda. Aluísio Fontenelle, uma década depois, dá continuidade ao trabalho iniciado por Lourenço Braga, sistematizando inicialmente a Quimbanda como a conhecemos hoje. É Fontenelle que provê, de verdade, a estética diabólica do culto.

 

Aluísio Fontenelle era da mesma safra de intelectuais umbandistas a qual pertencia Lourenço Braga, safra esta que na época empreendia uma salubrização ou embranquecimento da Umbanda. Essa história começa assim: antes de haver a separação entre Umbanda e Quimbanda, o que havia era a Macumba, que trabalhava com muitos elementos fetichistas africanos, como o sacrifício, possessões ou incorporações, e o uso de oráculos. Essas práticas fetichistas africanas ofendiam a população, pelo menos as classes mais altas do Rio de Janeiro, capital do Brasil na época, sendo a Macumba, portanto, considerada um culto da população menos privilegiada, em sua maioria negros, criminosos e prostitutas. Os espíritas kardecistas tiveram a ideia de salubrizar a Macumba, na intenção de adequá-la as classes mais privilegiadas da sociedade carioca. Para tal, eliminaram todos os elementos fetichistas africanos e o que sobrou eles chamaram de Umbanda. No entanto, esses elementos fetichistas crioulos expurgados da Macumba foram preservados em um outro culto que se formava, a Quimbanda. É assim que nasce a separação da Umbanda e Quimbanda a partir da matriz da Macumba, que passava a ser conhecida doravante como Quimbanda apenas. Eu fiz uma introdução bem rica sobre o tema na Revista Nganga No. 8.

 

Interessante dar ênfase a um processo natural: a literatura de um culto só nasce muito tempo depois do culto se estabelecer, e não antes disso. Braga e Fontenelle são os primeiros intelectuais que pensaram e delinearam a estrutura inicial da Quimbanda como sistema religioso de magia. A Lei de Quimbanda apresentada por Braga na década de 1940 com suas Sete Linhas é aperfeiçoada e modificada por Fontenelle na década de 1950, que inaugura a ideia de reinos na Quimbanda, descrevendo os Exus associados a dois reinos: o Reino das Encruzilhadas e o Reino do Cemitério. É seguro dizer que Braga e Fontenelle colocaram no papel àquilo que já vivenciavam ou, pelo menos conheciam em termos práticos, nos seus dias no contexto dos terreiros.

 

3. Os espíritos da Quimbanda são divindades ou são mortos? Ou ambos?

 

Os espíritos da Quimbanda são divindades, no sentido de serem mortos deificados (ou glorificados, divinizados). Como mortos deificados, são como os antigos Heróis gregos, ou os Chefes Secretos do sistema da Astrum Argentum, ou os Mestres Ascensionados do teosofismo (não confundir com teosofia), ou os santos católicos. No contexto da teurgia de Jâmblico ou do Hermetismo alexandrino, são os deuses terrestres, quer dizer, as divindades corporificadas no reino da geração, sendo inteligências sublunares. Todos os mitologemas de divindades ctônicas como Hécate, Júpiter Plutônio, Hermes Ctônio, Hades, Osíris, Inanna etc., e que representam os poderes da terra, podem ser associados arquetipicamente ao trabalho dos Exus e a magia da Quimbanda. Dessa forma, a Quimbanda é um culto lunar ou ctoniano a divindades terrestres, de natureza catabática. A teologia da Quimbanda é lunar: a Lua está no ápice do Céu, enquanto que o Sol reverenciado é àquele que Reina no Submundo.

 

Mas a Quimbanda também é tanto necromancia, porque lida diretamente com mortos de todo tipo, deificados ou não, quanto nigromancia, porque associa o trabalho dos mortos ao trabalho de demônios, espíritos terrestres dos grimórios. A Quimbanda é, portanto, uma prática de goécia, neste caso, goécia brasileira. Na Revista Nganga No. 10 eu me debrucei sobre o assunto, e apresento a Quimbanda como a genuína goécia tradicional brasileira.

 

A Quimbanda opera com a fórmula mágica universal do espírito tutelar, representado miticamente como o Sagrado Anjo Guardião de Abramelin, o diabo pessoal de Fausto, o espírito familiar da bruxa etc. Na Quimbanda os espíritos são ancestrais tutelares. Um Exu na vida de um kimbanda (praticante de Quimbanda) tem o mesmo lugar e valor do sagrado Anjo Guardião na vida de um thelemita.

 

Essa fórmula mágica é universal porque se trata da busca fundamental de todo aspirante a mago ou feiticeiro, que pode ser definida de: i. estudo e busca individual como preparo para a chegada do mestre; ii. o encontro com o mestre que o ensinará o segredo da magia; iii. de posse do segredo da magia, oferecer seus serviços mágicos; iv. tornar-se um mestre da arte da magia, transmitindo seu segredo aos novos aspirantes. Essa é a jornada de um kimbanda dentro da estrutura de desenvolvimento magístico e mediúnico do culto.

 

4. Como a cosmogonia é dividida na Quimbanda, eu sei que existem várias linhas desses espíritos e uma linha principal no topo da hierarquia. Você pode descrever pelo menos um casal de Exu e Pombagira com seus caracteres e os pedidos que geralmente são feitos a eles para nos dar uma ideia de que tipo de espíritos eles são?

 

Aluísio Fontenelle estabelece em sua síntese de Quimbanda o conceito de reinos, inaugurando dois deles: o Reino das Encruzilhadas e o Reino do Cemitério. A partir desse pontapé inicial, a Quimbanda começa a organizar sua estrutura a partir dessa ideia de reinos, algumas vertentes trabalhando só com dois reinos, como a Quimbanda Malê, que podemos dizer ser a expressão mais fiel da síntese de Fontenelle, outras com nove reinos, como é o caso das vertentes Nàgô e Mussurumin, e outras com sete reinos, como a moderna Quimbanda Luciferiana.

 

A cosmogonia na Quimbanda segue, portanto, essa ideia, que vou sintetizar a partir de um artigo publicado na Revista Nganga No. 5, chamado Cosmogonia de Quimbanda Nàgô. A estruturação dos reinos segue tanto o desenvolvimento do planeta quanto o desenvolvimento da consciência humana se adaptando ao planeta:

 

A criação do mundo é feita por um ser invisível, por muitos chamados de Nzambi-mpungu, transliterado para o português como Zambi ou Zambiapongo. Esse ser criador de tudo que existe, é inatingível. Estando além da criação, ainda assim, permeando toda ela. Porém de forma indireta, por meio das forças por ele criadas, para que cuidassem de sua criação.

Desta forma, no entendimento da Quimbanda Nàgô, Deus existe! Mas está muito longe e não rendemos culto a ele, sendo impossível admoestá-lo.

Sendo assim, a criação do mundo, para a Quimbanda se dá baseada na criação de seus reinos, que, para a família de Quimbanda Nàgô, são nove: Reino da Terra, Reino das Águas, Reino das Matas, Reino Africano, Reino das Almas, Reino das Encruzilhadas, Reino do Oriente, Reino da Lira e Reino das Trevas.

A cosmogonia estará muito atrelada a nossa própria vivência e ao nosso planeta Terra, dessa forma, o entendimento é restrito a esse orbe.

No princípio dos tempos, após Nzambi-mpungu determinar que houvesse a criação, o planeta Terra era uma esfera de fogo incandescente, girando no espaço, em torno do Sol. Por meio dos seus movimentos, essa esfera de fogo foi se esfriando até se solidificar, dando assim, por origem, o Reino da Terra, o primeiro reino de Quimbanda.

Nesse resfriamento substâncias se vaporizaram e criaram a atmosfera e, no encontro entre os elementos naturais, dá-se uma precipitação em todo o orbe por longura de dias, criando as chuvas. As chuvas escorreram pela terra, formando os lagos, os riachos, os rios, os mares, os oceanos e todos os corpos de água deste planeta. Assim com todo esse corpo líquido formado, origina-se o Reino das Águas.

Com a existência de água, organelas são formadas e começam a evoluir, dando origem às primeiras formas primitivas de vida, como os fitoplanctons, os musgos, a vegetação e toda sorte de árvores, flores e frutos. Com a flora desenvolvida, os organismos mais simples encontram capacidade de se desenvolverem, criando assim as primeiras formas de vida microbianas, bacterianas e, por consequente, todos os animais que habitavam esse mundo. Assim se forma o Reino das Matas.

Dentro das matas surge um animal diferente, dotado de intelecto, capaz de criar ferramentas e se aperfeiçoar na obtenção de alimento e na sua própria sobrevivência. Esses indivíduos, começam a surgir onde hoje é o continente africano. Sendo assim, o Homem surge do Reino Africano, que possui uma estreita relação com o Reino das Matas.

O homem aprende que a morte é ilusória, sendo visitado por seus ancestrais e pelos seres divinos. Dessa forma, se conectando ao plano astral e espiritual. Por meio da interação com aqueles que já se foram do plano material, cria-se o Reino das Almas.

Com seu intelecto avançando e com a sabedoria advinda dos mortos, o homem obtém mais comida, abrigo e evolui, começando a crescer e se multiplicar, gerando diversas possibilidades para toda a humanidade, assim é gerado o Reino da Encruzilhada, onde mais de um caminho se encontra.

A encruzilhada é o encontro dos caminhos, mas a capacidade de trilhar esses caminhos só se desenvolve com o próximo reino, o Reino do Oriente. O homem aprende a se movimentar e expandir, cada vez mais para longe. Cria rotas de comércio, indo e voltando, trocando bens e criando o conceito de troca ou de dinheiro.

Com essa expansão, desentendimentos e guerras ocorrem pela posse de lugares, direitos, poderes e pessoas. Assim, temos criado o Reino das Trevas, onde o homem compreende que pode usar os poderes ocultos da feitiçaria, para se defender e para atacar.

Com a civilização constituída, música, filosofia, teatro e todo tipo de cultura e entretenimento, se tornam parte da vida do homem. Esses interesses afloram em toda humanidade e, cada vez mais, são ferramentas para a expressão das ideias dos homens. Nesse momento, surge a política, as cidades, a urbanização e os campos de deleites e prazeres nas zonas noturnas, portuárias e marginais. Este é o Reino da Lira se formando, onde encontramos todos os tipos de artes e boemia.

Com os nove reinos formados, a Quimbanda se completa, as almas ocupam seus postos em cada um dos reinos, conforme suas aspirações e naturezas. Elas voltam para nosso meio, fazendo uso da mediunidade, para nos trazer aconselhamento e proteção. Retornam ao mundo dos mortos, onde atuam como dirigentes de grandes ordens de espíritos. Desse modo, se dá o intercâmbio entre as naturezas de homens e espíritos, que permeiam toda a humanidade.

Esse é o surgimento dos Reinos da Quimbanda, dentro da visão da Quimbanda Nàgô. Um entendimento muito mais filosófico e atrelado à evolução do planeta e da humanidade, do que simplesmente definir os pontos de força da natureza.

 

Dentro destes reinos se distribuí a hierarquia dos Exus e Pombagiras, que herda profunda influência da hierarquia infernal do Grimorium Verum. Eu falei dessa relação entre a hierarquia de espíritos na Quimbanda e na demonologia europeia, a partir das influências neoplatônicas de Jâmblico, na Revista Nganga No. 5. No topo da hierarquia se encontra o Chefe Império Maioral, o Diabo, Absoluto na Quimbanda, constituído de uma Trindade Infernal ou Trindade do Oposto: Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth. Abaixo destes estão os Exus primordiais, i.e. os Chefes-Generais das Nações (ou vertentes) e, sob estes, uma miríade de Exus falangeiros distribuídos em linhas ou povos, a depender da vertente. Algumas vertentes sincretizam diretamente os Exus com os espíritos (demônios) do Grimorium Verum, outras o fazem indiretamente. Na Quimbanda Nâgô esses espíritos estão sob a autoridade dos Exus, da mesma forma que uma deidade ctoniana comanda uma miríade de espíritos da natureza ou mortos. Na Quimbanda Mussurumin os demônios estão também sob a autoridade dos Exus, mas indiretamente, quer dizer, em um trabalho a parte conhecido como Cabalá Europeia, adjacente ao trabalho com os Exus. Na Quimbanda Malê os espíritos são os próprios demônios (na verdade djins), travestidos de Exus, sendo totalmente fiel a estrutura delineada por Fontenelle.

 

Dois Exemplos de Exus:

 

EXU PANTERA NEGRA

Demônio associado: Clauneck

Palavra-chave: Totens, sabedoria, ancestralidade, regência, medicina, feitiçaria.

Positivo: Atua trazendo conhecimentos esotéricos e medicinais, são grandes líderes e feiticeiros. Atuam como combatentes à espíritos negativos.

Negativo: Podem causar a perda de tudo, promovem guerra, conseguem envenenar lentamente os indivíduos alvos.

Firmeza: Vela Preta-e-Vermelha e Verde-e-Preto, normalmente água ou whisky e charutos de boa qualidade.

Oferenda: Padê composto de farinha de mandioca com cachaça, com carne suína (javali de preferência) frita em azeite de dendê, com milho torrado no azeite de dendê e cebolas roxas por cima em rodelas. Regando tudo com azeite de dendê. Acrescente também a firmeza, sendo sete o número chave, sete copos com água ou whisky, sete charutos e sete velas pretas-e-vermelhas ou outras que o Exu aceite.

 

POMBAGIRA RAINHA DAS 7 ENCRUZILHADAS

Demônio associado: Astaroth

Palavra-chave: Caminhos, possibilidades, acordos

Positivo: Caminhos abertos

Negativo: Caminhos fechados

Firmeza: Vela preta-e-vermelha, Marafo Amarelo ou Whisky estilo Tennessee como o Jack Daniels e charutos de boa qualidade, com capa clara.

Oferenda: Padê de farinha de mandioca misturada com marafo branco ou amarelo, sete bistecas de porco e sete bifes bovinos selados no azeite de dendê. Coloca-se batatas inglesas assadas cortadas em rodelas em cima da farofa e rega-se tudo com azeite de dendê. Acrescente também a firmeza, sendo sete o número chave, sete copos com whisky, sete charutos e sete velas pretas-e-vermelhas.

 

5. Como começa uma jornada na Quimbanda?

 

Existe um ditado na Quimbanda que diz assim: o segredo da Quimbanda é o segredo. A Quimbanda é um culto brasileiro de mistérios, tal qual eram os antigos cultos de mistérios na Grécia. Exu Pantera Negra, uma vez indagado sobre os mistérios guardados pela Quimbanda, disse: mistério é um fundamento que só o silêncio sabe dizer. Este silêncio, no entanto, não faz referência a palavra falada, mas ao contrário disso, trata-se do segredo religioso. Os mistérios da Quimbanda são os segredos religiosos, os fundamentos que jamais são revelados aos profanos, i.e. os não iniciados no culto.

 

Como um culto brasileiro de mistérios, a Quimbanda exige iniciação. Esta iniciação confere ao iniciado, a partir de então um kimbanda, acesso e comunhão com os Gangas, as divindades da Quimbanda, em tempo queridas ou temidas, a depender do tipo de acesso e ancestralidade de cada um. Na Grécia antiga, considerava-se que um iniciado nos Mistérios era mudo para o mundo. O substantivo mystéria – e outros cognatos como myêin (iniciar) e myêisthai (ser iniciado) – deriva da raiz *mu – (presente no latim mutus, que derivou no português mudo) – que significa fechar. O iniciado nos Mistérios era àquele que mantinha os lábios fechados, portanto, mudo para o mundo. De igual modo é a Quimbanda, cujos mistérios são mantidos em segredo por seus iniciados.

 

A iniciação na Quimbanda, por outro lado, é catabática. Seus mistérios são àqueles do Submundo, tal qual os antigos cultos familiares da cultura greco-romana e os mistérios órficos, onde a catábase exigia a purificação da alma para entrada no Hades. A iniciação na Quimbanda, portanto, constitui na abertura dos portões do Inferno – o Reinado do Chefe Império Maioral, o Diabo – para alma que é iniciada. A Revista Nganga No. 10 aborda introdutoriamente este tema.

 

Outro ditado da Quimbanda é: a Quimbanda é tradição e tradição se transfere por transmissão. Isso significa que a Quimbanda trata-se de uma força mágica transmitida através de um ritual de Iniciação. A premissa fundamental é de que no escopo da tradição, há indivíduos capazes, os tátas e mametos (i.e. os mestres pai e mãe das famílias de Quimbanda), treinados no ofício de transmitir a corrente mágica da Quimbanda, versados na arte da feitiçaria e na corporificação dos Gangas da Quimbanda. O termo iniciação acima aparece com letra maiúscula para indicar que a transmissão não ocorre somente por meio do ritual de iniciação, mas fundamentalmente por meio da relação iniciática que se estabelece entre o mestre e seu discípulo. Se podemos classificar em uma palavra a qualidade ou o tipo de àṣẹ transmitido pela Quimbanda Nàgô, o termo ideal para designar essa qualidade é progresso. Táta Kilumbu diz: a Quimbanda Nàgô é uma Quimbanda de progresso. Os fundamentos da Quimbanda Nàgô têm como finalidade fundamental levar progresso para a vida de seus adeptos.

 

Como o termo indica, é na iniciação que a vida de kimbanda começa. A parir da iniciação ocorre uma evolução gradual na hierarquia do culto, acompanhada de desenvolvimento mediúnico equivalente. Uma jornada que pode ser dividida em quatro etapas (graus) mais ou menos universais, como a fórmula mágica do espírito tutelar: Noviço (batizado), Kimbanda (iniciado), Nganga (sacerdote) e Táta-Nganga (mestre).

 

6. Toda pessoa tem um Exu ou uma Pombagira? Isso é descoberto pelo Táta? Depois de aproximadamente quanto tempo?

 

Podemos dizer que no Brasil, de modo geral a grande maioria das pessoas possui sim Exu e Pombagira. Mas há indivíduos que não possuem, por inúmeros fatores conectados a ancestralidade.

 

Quando uma pessoa solicita admissão ao culto, o que a Quimbanda faz é jogar uma luz por sobre sua ancestralidade, buscando dentro dela um Exu e uma Pombagira, pelo menos. Na Quimbanda, portanto, os Exus estão de verdade associados a ancestralidade de cada um; mas há exceções, porque àquele indivíduo que não possui em sua ancestralidade um Exu ou Pombagira, qualquer outro Ganga dos Reinos de Quimbanda pode assumir a sua tutela. O táta-nganga, portanto, tem as qualificações para averiguar profundamente as raízes da ancestralidade daqueles que solicitam admissão a Quimbanda, encontrando ou indicando o Exu tutelar dos aspirantes a guerra do Diabo.

 

Uma vez que a Quimbanda opera com a fórmula mágica universal do espírito tutelar, o primeiro passo é descobrir e construir as moradas físicas, i.e. os fundamentos, dos Exus de Coroa nos noviços. Isso significa que ao ser iniciado na Quimbanda, o adepto, agora um kimbanda, recebe imediatamente o fundamento de seu Exu tutelar para com ele começar a se desenvolver na estrutura do culto. A partir desse momento, com o fundamento de seu Exu tutelar, o kimbanda começa a trilhar o caminho de seu desenvolvimento mediúnico, sem o qual ele não progride no culto. O desenvolvimento mediúnico na Quimbanda não tem absolutamente nada a ver pelo que se entende desse termo no contexto das mais variadas umbandas. Não há giras de desenvolvimento na Quimbanda tal qual existem nas umbandas. Todo o processo de desenvolvimento mediúnico ocorre por meio da execução dos diversos fundamentos do culto, principalmente a ação purificatória dos orôs, os ritos de sacrifício animal em honra aos Gangas.

 

O indivíduo que aspira adentrar a Quimbanda, pode fazê-lo por muitos motivos. Todos esses motivos são legítimos se no seu cerne existe o desejo ardente, fidedigno, verdadeiro, de cultuar os Gangas. Dessa forma, não faz sentido admitir um adepto na corrente sem que este não saiba quem é seu Exu tutelar e não tenha mecanismos para exercer o seu culto. O que a Quimbanda faz é oferecer um sistema seguro através do qual o kimbanda verdadeiramente se comunicará e se conectará com seu Exu tutelar. Isso depende de um estreitamento de laços, do desenvolvimento de uma relação íntima, que começa no batismo, entre o kimbanda e seu Exu tutelar.

 

7. Existe uma iniciação na Quimbanda? E quantos graus há na estrutura religiosa/iniciatória antes de se tornar um Tata? Existem diferentes vertentes? Por exemplo, a sua é chamada Quimbanda Nàgô, certo?

 

Na resposta 5 acima falei que a jornada de um kimbanda se inicia através de um rito iniciatório, dirigido por um táta-nganga na presença de outros iniciados no culto. E que a Iniciação segue a fórmula mágica do espírito tutelar, universalmente dividida em quatro etapas: noviço, adepto ou iniciado, sacerdote e mestre.

 

Existem sim diferentes vertentes de Quimbanda. Essas vertentes, também chamadas de ramas, são classificadas por nós no que chamamos de três ondas de manifestação das vertentes. No texto Iniciação na Quimbanda Nàgô esclareço com detalhes:

 

A Quimbanda é um culto ctônico-nigromântico brasileiro; trata-se da genuína feitiçaria nigromântica nascida e desenvolvida em território brasileiro a partir da ancestralidade miscigenada de três povos ou culturas, isoladas e segregadas no contexto da diáspora nas Américas: os africanos (bantos e yorùbás), os europeus e os aborígenes ameríndios, em dois momentos ou fases distintas: i. do período colonial até 1950, a primeira fase e; ii. de 1950 até os dias de hoje, a segunda fase. A Quimbanda nasce, portanto, do entrecruzamento mágico da religiosidade e ancestralidade dessas três correntes no que se definiu como cultura afro-brasileira.

 

Após a síntese de Aluízio Fontenelle inicia-se a segunda fase da Quimbanda no Brasil, marcada pelo nascimento de inúmeras vertentes, que surgiram também em três momentos e contextos culturais diferentes.

 

Vertentes de Primeira Onda (1950-1970):

As chamadas vertentes tradicionais são àquelas que derivam do tronco tradicional de Quimbanda, e são derivadas diretas da síntese promulgada por Aluízio Fontenelle na década de 1950, quando os Exus da Macumba carioca foram «definitivamente» sincretizados com os demônios (i.e. espíritos ctônicos) do Grimorium Verum, um manual franco-italiano de feitiçaria fáustico-diabólica do Séc. XVIII. São as vertentes de primeira onda as mais antigas e, portanto, as genuinamente tradicionais: Quimbanda Nàgô, Quimbanda Mussurumin, Quimbanda Malê, Quimbanda de Almas etc.

 

Vertentes de Segunda Onda (1970-1990):

Com a expansão das vertentes tradicionais nascidas da Macumba carioca na região Sudeste do Brasil, começaram a aparecer as vertentes derivadas dos Candomblés baianos e o Batuque gaúcho. São as vertentes de segunda onda: Quimbanda de Angola e Almas, Quimbanda de Cruzeiro e Almas, Quimbanda de Mussifin, Quimbanda de Angola etc.

 

Vertentes de Terceira Onda (2000-2020):

São as vertentes novas, que flertam com a magia-psiúrgica moderna, derivada direta do renascer da magia que ocorreu a partir da escola inglesa de magia em 1875, e tradições reconstrucionistas contemporâneas como o luciferianismo, thelema e o satanismo brasileiro que operava nas penitenciárias de São Paulo na década de 1990. São as vertentes de terceira onda: Quimbanda Xambá, Quimbanda Luciferiana, Quimbanda Kongo, Quimbanda Kongo-Luciferiana etc.

 

8. Uma pessoa pode ter mais de um Exu trabalhando ou ela trabalha apenas com um?

 

A fórmula mágica do espírito tutelar em sua universalidade implica que o mago tenha um espírito tutelar e, através dele, por meio de seus poderes, acessar uma miríade de espíritos servidores. Em O Testamento de Salomão, o espírito tutelar convocado foi Ornias e através dele, Salomão teve acesso a muitos outros. Nos Papiros Mágicos Gregos o feiticeiro através do paredros, o espírito tutelar, acessa outros espíritos. Em A Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, é o Sagrado Anho Guardião que confere ao mago o poder dobre os espíritos da terra. Não é diferente na Quimbanda: por meio do Exu tutelar, o kimbanda tem acesso a uma legião de Gangas.

 

O kimbanda, portanto, começa com um Exu, o tutelar e, a partir dele, acessa outros Gangas. Isso possui mecânicas muito técnicas dentro da Quimbanda, envolvendo os Exus de coroa, os Exus de legião, e as suas respectivas moradas de poder. O oráculo da Quimbanda Nàgô, a Cabalá de Exu, recebido no sacerdócio, dá acesso a todos os Gangas dos Reinos da Quimbanda.

 

A Quimbanda Mussurumin, por meio de uma linha de trabalho conhecida como Cabalá Francesa ou Cabalá Europeia, possui uma tecnologia oracular chamada de Alàgbà de Exu, onde o kimbanda tem acesso não só aos Gangas dos Reinos da Quimbanda, mas a qualquer espírito de qualquer sistema ou grimório de magia. No terceiro volume do Daemonium menciono:

 

A Cabalá Francesa na Quimbanda Mussurumin consiste no trabalho prático com a magia cerimonial em seus diversos sistemas, antigos ou modernos, derivados dos grimórios ou de escolas de iniciação, adaptados ao sistema prático de macumba da Quimbanda, a gosto do operador. Esse é um trabalho particular da Quimbanda Mussurumin, que diferente das vertentes tradicionais Nàgô e Malê, não sincretiza demônios diretamente com os Exus. Todo o trabalho com esses demônios e outros espíritos (anjos cabalísticos ou enoquianos, espíritos olímpicos, genii-loci encantados ou mortos diversos etc.), no contexto da magia cerimonial europeia de modo geral, é executado a parte, fora dos rituais tradicionais de atuação dos Exus e Pombagiras (giras, toques e orôs). Para tal fim são construídos dois templos ou duas áreas ritualísticas distintas dentro de um mesmo templo, uma destinada aos rituais tradicionais da Quimbanda, outra para realização das cerimônias de Cabalá Francesa.

 

9. Qual a importância da divinação na Quimbanda?

 

Todas as tecnologias mágicas que a Quimbanda possui e disponibiliza têm funções específicas; no entanto, nós podemos dizer que a função fundamental das tecnologias mágicas de um culto de feitiçaria ctônica é soteriológica, i.e. elas auxiliam promover a catabáse e a deificação. Leia o texto O Sacrifício como Ferramenta de Deificação. Não é diferente com o oráculo. Veja o texto O Oráculo do Sacerdote.

 

O oráculo é uma ferramenta de conexão com os Gangas da Quimbanda. Através dele todas as questões que envolvem a mecânica do culto são inferidas e administradas. Quando necessário, as técnicas e tecnologias são atualizadas também via oráculo. O oráculo é, portanto, uma ferramenta de acesso a todos os reinos e povos da Quimbanda. No meu livro Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula, me concentro em demonstrar a universalidade das técnicas de magia. Assim como na teurgia do platonismo tardio do fim da Antiguidade, a divinação na Quimbanda é uma oportunidade para trazer à terra o divino; em outras palavras, para fazer penetrar na terra a luz do divino, quando os deuses são acessados por meio dos oráculos. A divinação oracular corporifica a força do Exu tutelar na vida do kimbanda; através desse processo o kimbanda passa a tratar cada evento no Cosmos como um trato e estreitamento entre sua alma e a voz daemônica do Exu tutelar.

 

O oráculo, desde o momento da Iniciação na Quimbanda, é a principal ferramenta mágica de comunicação com o Exu tutelar.

 

10. Por que os demônios são sincretizados em alguns textos com o Exu? É a mesma coisa que aconteceu no Vodu com os Santos? Ou seja, eles têm características em comum e, portanto, são associados?

 

A Quimbanda e sua teologia é fruto de um intenso sincretismo cultural que começou muito antes da diáspora africana nas Américas, mas que continuou a se desenvolver durante e perdura até os dias de hoje. Sobre isso um etnólogo brasileiro escreveu na década de 1930: O comércio de africanos desde o século XV colocou africanos e europeus em contato direto uns com os outros. Europeus católicos, europeus protestantes. Na própria população (no Brasil) encontramos nativos, muçulmanos, judeus e uma série de outros. E assim, o desorganizado tráfico negreiro luso-brasileiro reuniu, num mesmo lugar, africanos das mais diversas províncias, o que possibilitou uma fusão de mitologias à medida que novas eram erigidas e outras eram esquecidas.[1]

 

No meu texto Macumba, Exu & Quimbanda, disponível no site, faço uma breve introdução a demonização de Èṣú òrìṣà, seu translado atlântico e assimilação na cultura afro-brasileira, e sua metamorfose no Exu-Diabo da Quimbanda. Para explicar como os Gangas estão associados aos espíritos (demônios) ctônicos, telúricos e aéreos dos grimórios, é necessário primeiro compreender esse processo de demonização. Para um aprofundamento ainda maior, indico o estudo de dois outros artigos: As Origens da Demonologia de Aluízio Fontenelle e A Incursão Diabólica na Quimbanda, ambos disponíveis no site.

 

Como falei na resposta 3 acima, a teologia da Quimbanda é lunar. Os espíritos da Quimbanda são inteligências terrestres, quer dizer, são espíritos que habitam os três éteres sublunares: Inferno (ctoniano), Terra (telúrico) Céu (aéreo). A Quimbanda é uma corrente mágica lunar tal qual eram os cultos ctônicos do Mundo Antigo. Isso significa dizer que sua teologia e cosmovisão é noturna. Por diversas vezes tenho utilizado o termo sublunar associado hora ao sistema de magia, hora ao ambiente mágico, hora aos espíritos da Quimbanda. Na Antiguidade o reino sublunar era também chamado de Reino dos Quatro Elementos, porque tudo o que envolve a realização da magia no pensamento daquele período estava diretamente associado a Natureza, ao reino da geração. No pensamento ocidental desde antes da era cristã e bem dentro dela, considerou-se que o reino sublunar abrangia toda a extensão de mudança da Natureza. É neste reino sublunar que se encontram todos os espíritos demoníacos dos grimórios, o mesmo habitat dos Gangas da Quimbanda. Toda teologia da Quimbanda envolve as correntes noturnas do Cosmos, tendo a Lua no ápice do Céu e o Sol nas profundezas do Inferno. Essas concepções chegaram a Quimbanda através do Grimorium Verum, que as herdou da Antiguidade.

 

O que possibilita a fusão, conexão ou relação entre os Gangas da Quimbanda e os espíritos (demônios) dos grimórios, tecnicamente e para além do sincretismo popular e folclórico, é o reino sublunar, que se divide em sete níveis que refletem virtudes planetárias distintas, no entanto, das relações astrais tradicionais; são virtudes ctonianas. Isso é demonstrado, por exemplo, nos ciclos de mitos de antigas deidades que possuem núcleos ou recessões míticas terrestres, i.e. sublunares. É por isso que deuses como Hermes, Hélio ou Zeus têm versões ctônicas. É necessário compreender isso nos termos das correspondências planetárias também: abaixo do orbe da Lua todas as correspondências planetárias são terrestres, não astrais; são poderes sublunares conectados a geração, a terra, não aos astros diretamente no Céu.

 

Por exemplo, a primeira organização dos Reinos da Quimbanda em um agrupamento de sete faixas de vibração aparece pela primeira vez na obra Reino de Kimbanda do uruguaio Osvaldo Omotobàtálá, de 2008. Em seu trabalho Omotobàtálá atribui aos reinos conexões planetárias, e muitos que seguiram a sua estrutura repetiram suas atribuições ou fizeram pequenos ajustes. A partir dessas atribuições planetárias, muitos caíram em erro ao pensarem que as influências planetárias sobre os reinos eram astrais, quando, de fato, elas são ctonianas.

 

É somente na síntese de Aluísio Fontenelle, portanto, que a Quimbanda ganha definitivamente uma associação direta dos Exus com os éteres sublunares e os espíritos dos grimórios a eles associados. Essa compreensão só começa com Fontenelle. Quando repito enfaticamente que é somente na síntese de Fontenelle que Exu é cristalizado definitivamente como Diabo no imaginário cultural brasileiro (para muito além do que se compreende como afro-brasileiro), o motivo fundamental é essa associação que proveu, iconograficamente, os símbolos hieráticos demoníacos que os Gangas assumiram na Quimbanda.

 

Mas Fontenelle, de fato, não compreendeu profundamente a teologia da goécia noturna do Grimorium Verum e sua organização dos Gangas sincretizados com as inteligências terrestres deste grimório apresenta incoerências. A partir disso começou um problema: assim como ocorreu no trabalho de Omotobàtálá citado acima, muitos repetiram a tabulação de Fontenelle e outros, tentaram estabelecer tabulações próprias, mas basearam-se nos mesmos equívocos de Fontenelle, que leva em conta somente a conexão aparente entre os espíritos. Outro problema, ainda maior, envolve essas tabulações: muito embora possam ser estabelecidas relações corretas entre os Gangas e os demônios nas tabelas de correspondências, uma parte importante da equação tem sido omitida, que é o médium e sua relação pessoal com o Exu tutelar.

 

São três indivíduos: o médium, o Exu e o demônio. Todos têm de estar em sincronia direta uns com os outros. Por causa disso, na família Cova de Cipriano Feiticeiro, Exu Tranca-Ruas de Embaré ensinou a estabelecer a conexão entre os Gangas e os demônios a partir do médium, e não a partir da conexão aparente dos espíritos, como se propõe nas tabulações populares. O método é muito similar àquele da tradição salomônica em que o mago, através de suas características astrais natais, obtém um diabo pessoal, i.e. um demônio tutelar dos grimórios.

 

E por conta de entendermos que essa equação é perigosa, deixamos essa associação entre os Gangas e os demônios apenas para àqueles que se tornam Mestres (táta-nganga) de Quimbanda. O objetivo dessa associação, por outro lado, é simples: prover mais força ao trabalho que o Exu faz na vida do médium.




NOTA:

[1] Edison Carneiro. Religiões Negras: Notas de Etnographia Religiosa. Civilização Brasileira, 1936, pp. 88.

363 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Comments


bottom of page