Imagem de Romário Romis: Cipriano Feiticeiro.
Desenho encomendado e realizado para Cova de São Cipriano.
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
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Nota: este texto foi escrito originalmente em 2018 e tratava-se da Seção 1 de um texto maior, chamado de O Espírito de São Cipriano. Para publicação aqui fiz apenas algumas correções. O conteúdo, de todo modo, permanece íntegro.
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Cipriano foi um estudante, uma pessoa talentosa e sensitiva, mas que frequentou a Escola Negra da Noruega e foi obrigado pelo Diabo a usar seu conhecimento e seus poderes maravilhosos para fazer o mal. Isso o afligiu pelo resto de sua vida, uma vez que ele era sincero e piedoso; assim, na intenção de remediar o mal, ele escreveu um livro no qual primeiro demonstrou como o mal é feito e, então, como ele é desfeito. O livro começa com uma explicação sobre o que é feitiçaria e uma advertência contra o seu uso. Ele foi dividido em três partes nomeadas Cipriano, Doutor Fausto e Jacó Ramel. As duas últimas partes foram escritas em caracteres persas ou árabes, ou sinais ocultos. O livro ensina bênçãos, conjurações, sabedoria e tudo o que foi escrito no quinto livro de Moisés [...]. Aquele que adquirir um livro de São Cipriano nunca faltará dinheiro; ele poderá ler o Diabo por si mesmo e para longe de si mesmo; e ninguém poderá prejudicá-lo, nem mesmo o Diabo. Mas todo aquele que possuir o livro não poderá se livrar dele, seja vendendo, queimando ou o enterrando; o livro sempre retornará ao seu dono. E se não for possível livrar-se dele antes da morte, as coisas ficarão péssimas. A única maneira de fazê-lo é escrever seu nome com sangue na primeira página e colocá-lo sobre uma pedra oculta dentro de uma igreja com quatro moedas de prata.[1]
A citação acima de J.M. Thiele, que remonta a tradição cipriânica escandinava, descreve, quem sabe, o Espírito de São Cipriano desenhado na arte de Romario Romis, Cipriano Feiticeiro para a Cova de São Cipriano (acima), que retrata minha primeira visão de São Cipriano no ritual de iniciação a feitiçaria cipriânica que participei ainda jovem, em 1996.[2] Olhando nos olhos de São Cipriano como um espírito mercurial, o reflexo que temos é o feiticeiro (goēs) ou o mago (magoi) que habita em cada um de nós; ele é, portanto, um espelho mágico para nossa própria condição interior, típico de deidades limiares como Hécate, mãe e rainha de todos os daimones na teurgia dos caldeus. São Cipriano é uma deidade limiar, entre mundos; seja qual for a fonte de nossa magia, da terra (goēteia) ou do céu (theourgia), seja qual for a direção que damos a ela, Cipriano Feiticeiro não nos julgará. Como uma alma deificada nos planos internos, São Cipriano é meio-demônio e meio-santo, meio-pagão e meio-cristão, meio-feiticeiro e meio-bispo, neutralizando assim qualquer inclinação moral ou ética na prática da magia.
Como patrono dos feiticeiros, Cipriano é um professor que nos ensina a caminhar sobre as próprias pernas. Ele se apresenta como um fino cavalheiro, sem nos machucar ou prometer nos proteger, concedendo-nos aquilo que pedimos, merecendo ou não, estando preparados ou não. Na tradição cipriânica da magia nós temos de aprender rápido e por nós mesmos, pois todas as consequências de nossas escolhas mágicas são de nossa inteira responsabilidade. Cipriano Feiticeiro nos abre a porta que desejarmos, sejam coisas ditas ou secretamente desejadas, até que estejamos soterrados sobre as consequências de tudo o que almejarmos. Como uma deidade tutelar ele age como o gênio da lâmpada que nos serve quando o convocamos. E essa é a típica relação que o feiticeiro de todas as eras se propõe a estabelecer com espíritos diversos, a lógica por trás da goécia, da teurgia e, sobretudo, do Conhecimento & Conversação com o Sagrado Anjo Guardião.
São Cipriano encarna o típico mago hermético dos primeiros séculos, um feiticeiro acima do bem ou mal que criou um poderoso talismã tão ambivalente quanto ele mesmo: O Livro de São Cipriano. Este é um grimório de feitiçaria que une as forças do bem e do mal, a magia branca e a magia negra, a teurgia e a goécia. Como Cipriano Feiticeiro, seu grimório responde a nossa natureza interior, sem nos julgar ou nos punir. O Espírito de São Cipriano reside no livro; ele responde e acompanha todo feiticeiro que diligentemente o convoca, estabelece com ele um pacto e lhe pede instrução acerca da Arte dos Magi. O Livro de São Cipriano e São Cipriano são um só Espírito. Como tal, ele tem sido considerado um talismã e pedra fundamental da tradição cipriânica. No relato do monge alemão Jonas Sufurino na edição espanhola[3] de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, sobre o livro Lúcifer lhe diz:
Este livro, escrito em hebreu, é o mesmo que possuía o grande Cipriano, a quem lhe foi concedido por mim, obrigado a isso pela virtude de um poderoso talismã que possuía. Ele serviu para adquirir os conhecimentos da Verdadeira Magia, com os quais se pode ter o domínio sobre os espíritos e as pessoas. Por sua mediação chegou a ser todo-podero, o que lograrás tu também, se meditas e se executas o que neste livro contém. Devo advertir-te que não o apartarás de ti jamais, e se quando o quiser queimar ou lançar em um rio, voltará sempre a encontrá-lo no aposento que te servir de dormitório.[4]
A relação que se estabelece com o Espírito de Cipriano Feiticeiro é de influência espiritual. Como vimos no texto A Demonologia de Porfírio de Tiro & Jâmblico de Cálcis,[5] os espíritos influenciam o veículo pneumático dos homens e estes, por sua vez, influenciam o veículo pneumático dos espíritos. Jonas Sufurino tece a ideia de que o contato com eles pode levar à sabedoria:
Não há dúvida de que existem os espíritos Bons e Maus; e que estão em relacionamento com os homens; não há dúvida de que os ditos espíritos estão dotados de uma inteligência soberana, posto que a própria religião lhes dá o poder de tentar-nos, de induzirmos ao bem e ao mal; logo, se por meio da Magia pode o homem pôr-se em relação com estes espíritos, esse homem logrará alcançar a suprema sabedoria.[6]
Após ter conjurado e estabelecido um pacto com o Rei do Inferno, ele pode compreender claramente os segredos de O Livro de São Cipriano. Todos os símbolos e sigilos mágicos apresentados no livro se abriram ao entendimento e compreensão de Jonas Sufurino. Com a Sabedoria Oculta recebida diretamente de Lúcifer, Jonas Sufurino pode estabelecer conhecimento e conversação com os espíritos que acompanham Cipriano Feiticeiro:
Se é verdade que você existe, eu gritei com voz alta, ó poderoso Gênio do Inferno, apresenta-se à minha vista! E neste exato momento, durante um relâmpago formidável, apareceu o espírito infernal que eu invocara. O que você quer de mim? Eu quero, respondi, desenvolver uma relação com você. Ele respondeu: Concedido! Volte para sua cela. Lá você me terá sempre que quiser; eu revelarei a você todos os segredos, deste e dos outros mundos. Eu te darei um livro que será para ti como um catecismo da sabedoria oculta, um catecismo que só os iniciados podem entender.[7]
Não foi assim, sem embargo, pois com grande admiração pude ler completamente o escrito por igual em todas as folhas, e encontrei em uma delas perfeitamente desenhado um Dragão e uma Cabra em atitude tranquila e colocada esta sobre aquele. A Cabra tinha traçado em seus joelhos uns hieróglifos que diziam «Arte». Tudo parecia muito estranho e sem embargo todo me ia sendo familiar à medida que o mirava; mas, entretanto, estava reservada a mim a maior das surpresas. O Dragão e a Cabra começaram a animar-se, a mover os olhos, a aumentar de tamanho e, finalmente saindo do livro, se prostraram diante de mim, dizendo com voz humana: Sou teu servo, mandas e será obedecido.[8]
O que podemos perceber no relato de Jonas Sufurino, de J.M. Thiele ou da história de Victor Siderol,[9] é que não se trata de um conto acerca de um livro misterioso. Ao contrário disso, o livro é usado como um gatilho mágico que dispara o processo de conhecimento & conversação com seu espírito tutelar. Este é, desde eras imemoriais, o verdadeiro Arcano da magia. Cipriano Feiticeiro como deidade limiar influencia magos e feiticeiros a se tornarem conscientes e a se comunicarem com seus espíritos familiares. Esse contato produz uma alquimia sutil na alma, influenciada pelas forças que o mago convoca e estabelece comércio. Da mesma maneira que as letras que antes pareciam mortas em O Livro de São Cipriano saltam vivas aos olhos de Jonas Sufurino, o mago torna-se capaz de perceber e interagir com o espírito assistente. É por essa razão que O Livro de São Cipriano não pode ser vendido, destruído ou jogado fora uma vez que tenha sido aberto pelo mago: após estabelecermos conhecimento e conversação com o espírito tutelar ou diabo pessoal, não há mais como voltar atrás; mesmo se não desejarmos mais a companhia dele, ainda sim ele estará sempre conosco.
O Livro de São Cipriano é um talismã mágico que age, portanto, na alma do feiticeiro. A história do espírito de um livro que não pode ser vendido deve ser lida como um testemunho vivo da jornada de um mago, de aprendiz a mestre, testificada pela própria tradição ocidental da magia. Como um talismã agindo no veículo pneumático do feiticeiro, ele produz a consciência daemônica requerida para operar milagres através da magia. Contos folclóricos acerca da tradição cipriânica como o de Theodor Storm (1817-1888), O Espelho de Cipriano, publicado em 1862, trazem histórias de pessoas que entraram em contato com a magia cipriânica, adoeceram a quase morte como se tivessem ingerido um poderoso veneno e se tornaram após isso poderosos feiticeiros no contato e comando de espíritos. Como podemos perceber, uma descrição sucinta de uma jornada e iniciação xamânica.[10]
A magia de São Cipriano pode curar ou ferir, destruir ou edificar. É, portanto, uma medicina: veneno ou remédio. É aqui que reside o Secretum Secretorum de Cipriano Feiticeiro. Em uma entrevista em um programa de TV em 2014, quando o entrevistador me perguntou o que era magia, eu respondi fazendo uma analogia com a eletricidade, que tanto pode ser usada para o bem, ou seja, prover luz, ou usada para o mal, quando dirigida contra a vida de uma pessoa. Agora vamos fazer uma analogia da magia com a natureza do veneno que, para ser administrado, precisa ter-se cuidado. E não vemos isso na vida de tantos magos no curso da história? Apolônio de Tiana (15-100 d.C), John Dee (1527-1608) e Aleister Crowley (1875-1947) por exemplo, foram magos que em algum momento de suas vidas deixaram deslizar o frasco de veneno sobre seus feitiços e suas vidas. Não importa na mão que caminhamos, seja direita, seja esquerda ou ambas as mãos, a magia é uma medicina que pode curar ou ferir e a manipulação deste frasco depende inteiramente de nossa natureza e aspirações interiores.
Cipriano Feiticeiro ensina que o julgo sobre nossas ações não é moral, mas orgânico. Uma vez que administramos o veneno da magia em nosso corpo, devemos estar preparados para o fardo que vamos carregar. E um veneno é como uma arma: a dose pode ferir apenas ou destruir totalmente. A sabedoria se desenvolve a partir da aplicação do conhecimento. Não há outra estrada.
Como um espelho mágico, Cipriano Feiticeiro encarna a natureza fluída da própria Alma do Mundo, onde ele foi fecundado e de onde ele nasceu. A fluidez da Alma do Mundo é ambígua, dando forma àquilo que nela se projeta. A forma que projetamos na Alma do Mundo depende apenas de nós, de nossos objetivos, de nossas razões. A magia, portanto, não é boa ou má; não é branca, negra ou cinza. O tom é a ação particular do mago; é ele que tinge a magia segundo a sua natureza interior.
A marca da feitiçaria eu defino como uma intenção maligna que provoca destruição, e parece que ela surgiu pela inversão do uso secreto de forças naturais para curar, da mesma maneira que o diabo emergiu da inversão de Deus. A aplicação particular de certo ou errado, contudo, não pode ser claramente definida. Assim como uma erva, uma pedra ou uma benção podem ter efeito curativo, elas também podem adoecer. Seu uso deve ser apropriado e autorizado; seu mau uso deve ser condenado e punido.[11]
Os contos dos Irmãos Grimm exibem um grandioso mosaico de lendas folclóricas europeias acerca da magia. Embora sejam contos, as ideias por trás das histórias tecidas eram baseadas na visão popular da magia que sempre demonstrou essa sabedoria arcana: a magia é colorida pelo tom que o mago dá a ela; mas seja como for, não antes do mago ter sido picado e envenenado pelo contato com os espíritos.[12]
A tradição cipriânica está embasada neste conhecimento arcano da magia popular unido a tradição dos grimórios e a demonologia franco-italiana do Grimorium Verum. Como tal, ela permanece um relicário da Arte dos Magi através dos tempos, da Antiguidade tardia a Idade Média, do Renascimento aos dias de hoje. Nas apologias cristãs a Arte dos Magi é ensinada pelo próprio Diabo; é ele quem inicia os neófitos, da mesma forma que o faz o paredros nos papiros gregos e o Sagrado Anjo Guardião na magia de Abramelin. Por conta das inúmeras perseguições as quais os magos têm sofrido desde o Séc. V a.C., a tradição da magia aprendeu a se adaptar, sendo preservada através da tradição oral. Os grimórios e livros mágicos são apenas blocos de notas do verdadeiro conhecimento transmitido de lábios a ouvidos de mestres – encarnados ou desencarnados – a aprendizes. É o mestre que ilumina os caminhos lacunosos dos grimórios. De elo em elo a grande confraria universal dos magos vai sendo forjada por meio de uma íntima relação com o mestre e com os espíritos. É dessa maneira que linhagens espirituais e linhas de sucessão ancestrais são estabelecidas. Assim, a tradição da magia pode sobreviver ao tempo, secretamente transmitida a um mago de cada vez.
Eu o convido a entrar na cripta de Cipriano Feiticeiro. Lá ele será um espelho mercurial para sua natureza interior, seja você um feiticeiro ou mago-filósofo, não importa. Os olhos de Cipriano Feiticeiro refletem a sua imagem apenas. E seja como for, nessa cripta você terá o encontro com sua magia, passará por uma derradeira e efetiva iniciação de quase morte e, caso sobreviva a picada e o veneno do Espírito de São Cipriano, sairá de lá um feiticeiro acompanhado de seu diabo pessoal.
NOTAS:
[1] J.M. Thiele, Danish Folk Legends, citado em Frater Acher. Cyprian of Antioch. Quareia Publishing, 2017, pp.36.
[2] Veja meu texto As Três Ondas Cipriânicas, ainda no prelo.
[3] Embora a história de Jonas Sufurino tenha aparecido em uma edição ibérica de O Livro de São Cipriano, a essência do relato está em sincronia também com a tradição cipriânica escandinava, onde Cipriano de Antioquia é conhecido como Cipriano do Norte.
[4] Lúcifer a Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro. Citado em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. II. Clube de Autores, 2016.
[5] Ainda no prelo.
[6] Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro. Citado em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. II. Clube de Autores, 2016. O contato com espíritos familiares (assistentes) é considerado pelos magos da Antiguidade fonte de poder e de conhecimento oculto.
[7] Jonas Sufurino em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro. Citado em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. II. Clube de Autores, 2016.
[8] Ibidem.
[9] Veja o segundo volume do Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2022.
[10] Veja o primeiro volume do Daemonium: Curso de Filosofia Oculta. Clube de Autores, 2019.
[11] Grimm: os 77 Melhores Contos, Vol. I. Nova Fronteira, 2012, pp. 19.
[12] E é interessante o paralelo que se estabelece com o xamanismo. É somente por uma experiência de quase morte que o xamã é iniciado pelos espíritos.
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