Prezado leitor, este é um livro sobre goécia.[1] Os mistérios e arcanos da Natureza aqui explorados são àqueles do orbe sublunar: os éteres ctônico, telúrico e aéreo. A goécia é aqui compreendida no escopo primitivo do xamanismo grego: um estado de ser de contínua comunicação com os espíritos, todo e qualquer tipo de criatura espiritual, no sentido em que John Dee (1527-1608) confere ao termo. A jornada deste livro, portanto, te convidará ao Submundo, a imersão catabática nas profundezas do abismo. Porque é do eco que brota das fendas da terra que bebemos da seiva viva que permanentemente nutre as raízes da magia no Ocidente.
Todas as práticas derivadas do que se conveniou chamar de Ocultismo[2] moderno são reconstruções, e na grande maioria das vezes baseadas em tradição literária apenas. É uma prática cultural do Ocidente buscar sabedoria em livros, em bibliotecas. Quantos não foram os grimórios descobertos por ocultistas em bibliotecas ou acervos particulares e que acabaram por influenciar até a criação de ordens secretas ou métodos diversos de magia?
Tudo no Ocultismo moderno é banda de casa.[3] São adeptos imersos em estudos que por aptidão inata têm colocado em prática àquilo que aprendem em livros. E assim tem se desenvolvido a tradição da magia dentro do esoterismo ocidental moderno: ordens iniciáticas, colegiados de magistas etc. inspirados no que se conveniou chamar de tradição literária.
A tradição literária que alimenta o Ocultismo moderno, por outro lado, tem sido fortemente influenciada pela mudança no paradigma mágico do Ocidente desde o Séc. XV: a salubrização da magia e sua associação com o cristianismo na síntese mágica renascentista, abriu portas para a erradicação de suas raízes ancoradas na religiosidade do Mundo Antigo nos séculos seguintes. Então práticas como sacrifício, transe, êxtase ou a convocação de demônios (i.e. espíritos ctônicos, telúricos e aéreos sublunares) começou a tomar tons de incredulidade e fetichismo primitivo, renegadas ao que se conveniou também chamar de baixa magia ou magia negra, a nigromancia.[4]
A partir do Iluminismo, o conhecimento mágico do Mundo Antigo começa a ganhar uma reinterpretação, baseada em valores culturais cientificistas/positivistas anticlericais, culminando no renascer da magia de fin-de-siècle. Então a prática comum dos ocultistas modernos, inspirada na salubrização mágica iniciada pelo Renascimento e continuada pelo Iluminismo, dentro do que se estabeleceu como o renascer da magia a partir do fim do Séc. XIX, perdeu os laços ancestrais que a conectavam com os arcanos mágicos da Antiguidade. Estes arcanos mágicos se mantiveram vivos, por outro lado, nas tradições de Cabalá Crioula[5] e àquelas derivadas delas na diáspora africana nas Américas.[6]
Nos últimos dez anos tem ganhado força um movimento que se denominou grimoire revival,[7] que busca alternativas fora do padrão convencional como os estados de transe associados a prática mágica, o uso do sacrifício e oferendas votivas etc. para revitalizar a magia cerimonial dos grimórios. Tradições afro-diaspóricas como o Vodu, o Palo, a Santeria e a Quimbanda, práticas espirituais do Novo Mundo,[8] têm contribuído muito para esta revitalização da magia ocidental, porque elas dissolvem as complicadas teorizações e especulações dos manuais de magia em um exercício de feitiçaria simples. Então ficou mais fácil operar magicamente com anjos, demônios ou espíritos olímpicos a partir das profundas contribuições dessas tradições. E o mais importante, reagregando antigas práticas mágicas perdidas pela magia cerimonial ocidental, mas preservadas pelas tradições afro-diaspóricas nas Américas, como o uso dos oráculos para acesso aos espíritos e os sacrifícios animais a eles direcionados, as tradições do Novo Mundo injetam força mágica viva a desvitalizada magia cerimonial moderna, carregando-a com a vitalidade que há muito tempo perdeu.
É este o conhecimento sobre o qual eu me debruço nos meus dois últimos livros: o segundo volume do Daemonium e o Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia: como levar os arcanos mágicos da Quimbanda para a convocação de demônios diversos e potencias celestes como desenvolvidos por grimórios como o Heptameron, o Grimorium Verum, o Armadel, o Grand Grimoire, o Lemegeton, o Arbatel, a Chave de Salomão, o Livro da Magia Sagrada de Abramelin o Mago etc. Através das tecnologias mágicas da Quimbanda associadas a magia dos grimórios é possível convocar os espíritos olímpicos ou os demônios da goécia de maneira mais simples, rápida e com efeitos taumatúrgicos reais.
A esse movimento de revitalização da magia ocidental através dos arcanos da feitiçaria afro-diaspórica das Américas, dá-se o nome de a nova síntese da magia, inaugurada em 1950 pelo ocultista brasileiro Aluízio Fontenele (1913-1952).[9] Como falei acima, nos últimos dez anos essa nova síntese da magia tem sido discutida profundamente por autores como Frater Archer, Jake Stratton-Kent (1956-2023), Aaron Leitch e no Brasil, Humberto Maggi. Nas palavras de Stratton-Kent:
Pela primeira vez desde a era helenística, uma nova síntese mágica global tem potencial para emergir.[10] Dadas as condições culturais no Ocidente e noutros lugares, este potencial será concretizado. O que precisa ser perguntado é: que papel as tradições ocidentais desempenharão nisso?[11]
Na sua Encyclopaedia Goetica de cinco volumes, Jake Stratton-Kent demonstrou a importância da Quimbanda brasileira como inauguradora da nova síntese da magia, de modo a servir como padrão e exemplo para novas fusões e interpretações da magia.
A adoção dos espíritos do Grimorium Verum na Quimbanda, como contrapartes sincréticas dos Exus, tem sido extremamente útil a esse respeito. Essa síntese espetacular, ao envolver espíritos do meu próprio trabalho no contexto de uma tradição do Novo Mundo, me permitiu comparar notas e abordagens em pé de igualdade, com Houngans, Paleros e Quimbandeiros.
[...] O que eu advogo é formar um relacionamento similar [como o dos Exus com os demônios do Grimorium Verum na Quimbanda] entre os espíritos de nossas tradições mágicas com suas contrapartes em outras culturas. Essa é a maneira mais substancial, significativa e disponível de revitalizar a magia ocidental. Isso é infinitamente preferível do que os procedimentos desprezíveis de A Goécia de Salomão,[12] que é um simples reflexo das atitudes negativas dos espíritos a uma teologia desatualizada [daí demônios].[13]
E também sobre o papel das culturas tradicionais africanas no contexto da nova síntese da magia, ele diz:
Haverá problemas técnicos enquanto continuarmos a enfatizar demais a goécia salomônica e imaginar que a Cabalá, em vez da magia clássica, seja a principal raiz de nossas tradições. Uma comparação da goécia antiga com a prática das Religiões Tradicionais Africanas é de fato essencial para o crescimento da [nova síntese da] magia e não pode ser evastrada com nenhuma vantagem. A influência das Religiões Tradicionais Africanas está se tornando abrangente, e o potencial para uma síntese da qual possamos participar de forma significativa exige que reexaminemos as origens reais da magia ocidental e a natureza dos espíritos.[14]
E Frater Archer apresenta o tema da nova síntese da magia da seguinte maneira:
Foi há mais de dez anos, em 2010, que Jake Stratton-Kent com a publicação crítica de sua Geosophia: The Argo of Magic jogou a primeira pedra na vidraça da Magia Moderna Ocidental como a conhecíamos. Esta pedra foi lançada das mãos manchadas de um praticante independente que havia navegado profundamente na terra incognita da antiga história da magia. O que ele descobriu é que, bem antes do alvorecer da filosofia grega no século VI a.C., existiram as antigas raízes xamânicas da Magia Ocidental: uma herança tão indisciplinada e indomável em espírito, que exigiu atenção e exorcização imediatas por filósofos e políticos na época, que estavam obsecados por uma sociedade derivada do experimento sócio-político das pólis e que não podia tolerar um grupo desonesto de praticantes carismáticos de caminhos solitários, que poderiam minar o poder coesivo do tecido social recém-emergente. Assim, o antigo termo goês [aplicado aos feiticeiros necromantes da época], que fazia morada entre os túmulos e falava com crâneos, foi rapidamente substituído pelo elegante empréstimo persa: mago. Assim como as igrejas cristãs muitos séculos depois foram erguidas sobre santuários pagãos, também grande parte da Magia Ocidental, como a conhecemos, foi erguida sobre as brasas e crânios esculpidos da antiga goécia. Como regra geral, fomos fortemente lembrados pelos fragmentos de pedra e vidro que pousam em nossas voltas, a ortodoxia é sempre um fino folheado de mentiras sobre um passado muito mais selvagem e emaranhado, verdadeiramente pouco ortodoxo.[15]
O trabalho substancial de Stratton-Kent em sua Encyclopaedia Goetica teve um impacto profundo na direção em que a série de livros Daemonium estava sendo conduzida, devida a grande sincronia de ideias. No primeiro volume do Daemonium, me debrucei sobre a fórmula mágica do espírito tutelar, com foco na teurgia clássica grega, de cosmovisão hermético-alexandrina. Era nessa direção que o segundo volume deveria seguir. No entanto, quando fui jogado no caldeirão sem fundo da Quimbanda, minha carreira magística virou de cabeça para baixo. Tudo aquilo que eu, magista cerimonial, denegria como baixa magia, tornou-se a espinha dorsal de minha praxis magicae. Era inevitável então, a partir daquele momento, que o segundo volume do Daemonium seguisse em um caminho completamente diferente daquele que conduziu a escrita do primeiro volume.
O primeiro volume da Encyclopaedia Goetica é uma edição crítica do Grimorium Verum. Como veremos, este é o grimório par excellence do pacto demoníaco com um diabo pessoal, um espírito tutelar sublunar. Para nós da Quimbanda este gromório é muito importante, porque dele derivam não só os diabos sincretizados com os Exus, mas a própria Trindade Infernal que governa toda a Quimbanda. Essa edição crítica de Stratton-Kent também é especial para nós da Quimbanda, porque ele dedica os últimos capítulos da obra a síntese mágica promungada pela Quimbanda, assim como o impacto do Grimorium Verum nas religiões e cultos do Novo Mundo. Os métodos da Quimbanda foram profundamente influenciados pelos métodos do Grimorium Verum, e ambos operam com a fórmula mágica do espírito tulear, i.e. o conhecimento e conversação com espíritos diversos (mortos, encantados, homúnculos etc.) para fins de magia e mancia (divinação).
O que possibilitou a fusão espetacular entre os Gangas da Quimbanda e os diabos do Grimorium Verum, entre muitas coisas, é que tanto a corrente mágica da Quimbanda quanto a corrente mágica do Grimorium Verum bebem de uma única fonte, i.e. recebem seu fluxo de vitalidade, sua seiva mágica, da goécia que, como veremos, é o pano de fundo que subjaz todas as genuínas correntes mágicas do esoterismo ocidental.
A goécia, como será demonstrado, trata-se de um estilo de vida daemônico, i.e. um estado de perpetua comunicação com os espíritos. Desde o primeiro volume, o Daemonium nasceu para celebrar, hora representar simbolicamente, a interface de conexão com o mundo dos espíritos, todos os espíritos, mortos, encantados ctônicos e telúricos, assim como deidades urânicas. As edições são construídas para agir magicamente como um talismã na alma de quem as lê, agregando nela as virtudes da penetração no mundo dos espíritos e o desenvolvimento da comunicação com eles. Em outras palavras, o Daemonium trata-se de uma medicina para que a alma veja e se comunique com o mundo encantado dos espíritos. O pivô motivacional para escrever esse terceiro volume, portanto, permanece o mesmo: a necessidade do encantamento, i.e. a visão encantada ou daemônica do Cosmos como premissa fundamental para realização da magia, como veremos ao longo do livro. A Encyclopaedia Goetica de Stratton-Kent nos convida, da mesma forma que o Daemonium, a desenvolver essa percepção mágica e encantada do Cosmos.
O Geosophia: The Argo of Magic é uma coleção de oito livros distribuídos em dois volumes. É nesses dois volumes que Jake Stratton-Kent arremessa a pedra que estilhaça a vidraça da magia moderna ocidental. Eles tratam da antiga sabedoria (sophia) da terra (geo), das raízes ancestrais da primitiva goécia grega, nos fecundando a metanoia necessária para compreendermos verdadeiramente todas as sunthēmatas[16] conectadas a terra: a escuridão, o eco, o sangue, a putrefação, o fogo, o relâmpago, a chuva e a memória dos mortos brotando das fendas da terra. A mensagem central do Geosophia é que a verdadeira gnōsis da magia não é extraída das páginas de livros, mas dos rios, das cavernas e dos murmúrios aterrorizantes das covas. A goécia só é inferida a partir do Livro da Natureza, sendo, portanto, um Culto ao Espírito da Natureza e as raízes da Terra como a mais antiga religião ancestral do homem. Então o Geosophia nos convida a olhar profundamente a escuridão da terra e escutar os ecos do abismo, na intenção de aprendermos como um discípulo aos pés de um mestre, o próprio Diabo, como fez o Herói icônico da goécia como tradição viva: São Cipriano. O Geosophia rastreia o desenvolvimento da magia desde os gregos até os grimórios, [e] expõe as raízes ctônicas do ritual de goécia. Ao expor as origens necromânticas de grande parte da magia moderna, somos capazes de nos reconectar com a fonte da nossa tradição ritual. Há uma continuidade de prática no Ocidente que abrange os cultos pré-olímpicos de Dionísio e Cibele, é encontrada nos papiros mágicos gregos, no Picatrix e flui para os grimórios. Em vez de uma confusão de superstições, a tradição do grimório é revelada como a descendente viva das antigas práticas dos Goes.[17]
E não é exatamente isso que fazemos na Quimbanda? O melhor livro de Quimbanda é a Natureza. Isso me foi ensinado por Táta Malembu. É da Natureza, de seu espírito demoníaco visceral, que extraímos toda gnōsis da Quimbanda. Goécia é a feitiçaria necromântica da terra, das profundezas ancestrais no submundo, e como demonstrarei ao longo do livro, a Quimbanda, alimentada por essa corrente viva e perene da goécia, representa como uma tradição (ou ciência) oculta, a genuína goécia brasileira.
Desde 2019, nos artigos do antigo site Filosofia Oculta, eu venho construindo pontes entre a Quimbanda, as religiões antigas, culturas aborígenes ameríndias e africanas, e os cultos de mistérios do Mediterrâneo. No segundo volume do Daemonium e no Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, cruzo referências com o a feitiçaria dos Papiros Mágicos Gregos, a teurgia clássica hermético-neoplatônica, e o hermetismo alexandrino.
Quando comecei a idealizar essa série de volumes, eu estava no meio de um projeto que se chamou Curso de Filosofia Oculta, um seminário on-line permanente sobre magia na Antiguidade, Idade Média e Modernidade, cujas pesquisas me levaram aos meandros profundos da gnōsis, do hermetismo alexandrino e do neoplatonismo teúrgico de Jâmblico (245-325 d.C.).[18] Todo o primeiro volume do Daemonium explora a magia por uma perspectiva inspirada no trabalho deste filósofo teúrgo. E minhas pesquisas anteriores acerca da gênese da ideia de Sagrado Anjo Guardião em thelema,[19] me levaram a uma imersão na fórmula mágica universal do espírito tutelar e o seu papel como intermediário entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos (ou dos espíritos), bem como a sua função deífica na apoteose da alma, como menciona o Logos Teleios:
Do mesmo modo que o Senhor e Pai (ou, para lhe dar o nome mais elevado, Deus) é o Criador dos deuses celestes, o ser humano é criador dos deuses que estão nos templos e que se alegram com a proximidade com os seres humanos. Não apenas a humanidade é glorificada, como também ela glorifica; não apenas avança em direção a Deus, como também fortalece os deuses.[20]
Como demonstrei no livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, essa passagem trata dos deuses terrestres, quer dizer, os deuses assentados em zonas de poder especiais, como estatuetas, pedras ou vasos no hermetismo alexandrino. São terrestres porque possuem corpo material. O fundamento aqui, que é um dos fundamentos arcaicos e basilares da tradição da magia, é que para agir no mundo material, o espírito precisa ter corpo material. No livro eu faço uma comparação entre os métodos da Quimbanda para assentar os Gangas do culto em suas moradas de poder, os assentamentos, e os métodos teúrgicos[21] para construir as moradas de poder dos deuses terrestres no hermetismo alexandrino ou tradicional, demonstrando a universalidade das técnicas de feitiçaria: da mesma maneira que um daimon, morto ou encantado, assume morada em uma zona de poder consagrada a alguma deidade e que fora construída de forma a atraí-lo a fazer daquele local sua própria zona de poder, assumindo as características daquela deidade e agindo tal qual, de igual modo ocorre na Quimbanda, onde o espírito de um morto ou um encantado da Natureza assumirá o assentamento construído em nome de uma linha de trabalho dos Espíritos Gangas, atuando a partir daí como Exu ou Pombagira desta linha de trabalho. Então traduzindo a passagem acima do Logos Teleios para o contexto da Quimbanda, fica assim: àqueles que cultuam os deuses terrestres da Quimbanda têm o auxílio deles na deificação da alma; de igual modo, ao cultuarem os Gangas, estes são também glorificados e fortalecidos pelo culto dos kimbandas. Eu consegui rastrear a fórmula mágica do espírito tutelar desde os movimentos esotéricos da Antiguidade e Idade Média até a Quimbanda brasileira, quando escrevi o segundo volume do Daemonium.
De igual modo, em seu Geosophia Stratton-Kent cruza referências em inúmeras passagens entre a Quimbanda, deuses caudeus, olímpicos e romanos, dias da semana, planetas, constelações zodiacais, equinócios e solstícios, mansões lunares etc. Uma elaboração de pontes formidáveis entre a Quimbanda e as expressões religiosas e iniciáticas antigas e modernas do esoterismo ocidental. Para tal seu arco abrange desde as sagas dos Argonaltas até as receções medievais e modernas dos grimórios.
Os três primeiros volumes da Encyclopaedia Goetica, a edição crítica do Grimorium Verum e o Geosophia, fornecem um mapa amplo da topografia viva da goécia. O livro que encerra a Encyclopaedia Goetica é The Testament of Cyprian the Mage, também publicado em dois volumes, que apresentam o Herói par excellance da tradição da goécia como cultura ctônica viva da magia no Ocidente: São Cipriano. Como vimos nos dois primeiros volumes do Daemonium, o mito de São Cipriano representa a busca fundamental de todo aspirante a Arte da magia: o conhecimento e a conversação com um espírito familiar.
Familiar (adj.) - meados do século XIV, «íntimo, muito amigável, em pé de família», do francês antigo Famelier «relacionado; amigável,» do latim familiaris «doméstico, privado, pertencente a uma família, de uma casa.»
O substantivo que significa «demônio, espírito maligno que atende ao chamado» é da década de 1580; anteriormente, como substantivo, significava «um amigo familiar» (final do século XIV). O plural latino, usado como substantivo, significava «os escravos», também «um amigo, conhecido íntimo, companheiro».[22]
O mito de São Cipriano é a parabola que representa a conexão que todo magista se esforça em estabelecer com um espírito tutelar e, a partir disso, operar os milagres da magia e coroar sua carreira mágica com a deificação de sua alma. Em A Magia Sagrada de Abramelin, o Mago, este espírito tutelar é o Sagrado Anjo Guardião; nos Papiros Mágicos Gregos é o paredros; na tradição fáustico-cipriânica é o Diabo; na Quimbanda é o Exu. Frater Archer diz:
Num sentido nada metafórico, o último duplo-volume de JSK[23] é uma expedição aos laços de sangue ancestrais deste famoso santo-feiticeiro. Embarcar nisso é encontrar Cipriano, o Mago. Não apenas como o herói de uma antiga polêmica contra os últimos pagãos sobreviventes, mas, mais importante ainda, como um contato interior sempre presente, um espírito poderoso por si só. Cipriano, nesse sentido, é o fim literal do fio oculto de Ariadne do Ocidente, tecido inconscientemente no vestido da igreja cristã. É esse fio que JSK capta e segue com maestria – e assim nos leva de volta através de milênios aos templos ctônicos de nosso passado. Seguir seu livro com a cabeça e o coração é um ato de magia em si, de conjurar magia, de ressuscitar os mortos das sombras. Ler este livro, relembrando nosso próprio passado de goécia, torna-se assim um ato necromântico em si.
[...] Quando terminarmos o segundo volume, se tirássemos uma foto da família dos ancestrais espirituais com os quais TOCM[24] nos ajudou a nos reconectar, veríamos uma vasta cripta cheia de parentes: mais perto a frente encontraríamos os majestosos quatro reis e rainhas das direções cardeais, logo atrás deles as fileiras dos 36 espíritos dos decanatos, seguidas pelas 28 mansões lunares. Atrás deles divisávamos rostos um pouco menos familiares: víamos formas humanóides com cabeças de cães, de leões e de dragões. Ou nenhum, como o antigo sem-cabeça, o Akephalos enterrado nas profundesas do passado de nossa linhagem.
JSK chama esses espíritos ancestrais de «dramatis personae» dos mitos da goécia. Mas talvez devêssemos começar a pensar neles como uma família novamente? Não só porque era precisamente assim que as hagazussas, as velhas bruxas europeias, pensavam nos espíritos «familiares» com os quais mantinham relações duradouras. Mas porque a ideia de «família» evoca muito do que se perdeu na magia ocidental nos últimos séculos.[25]
Jake Stratton-Kent em sua obra Encyclopaedia Goetica, demonstrou-me que todo o antigo projeto do Curso de Filosofia Oculta e as novas direções projetadas para as edições do Daemonium a partir da gnōsis da Quimbanda, estavam no correto curso de seu Destino.
Mas precisamos partir de um ponto. É interessante que nesta resenha de Frater Archer é proposto um exercício pedagógico de alinhamento cognitivo como forma de treinamento psiúrgico, e que está em sincronia com as técnicas administradas pela Cova de Cipriano Feiticeiro, mas na forma de um treinamento mágico. Ele diz:
Vamos fazer uma pequena experiência. Pense na sua própria família por um momento: é provável que seja um círculo bastante pequeno quando você pensa apenas naqueles que vivem com você diariamente. No entanto, o círculo se expande assim que você inclui parentes mais distantes. E realmente se abre para um vasto oceano de vidas quando você pensa em todos os mortos que viveram antes de você e que ainda são lembrados em seu sangue. – Verdade seja dita, muitas das pessoas em quem você pensa agora podem não se qualificar como modelos, podem ser tanto um fardo quanto uma fonte de amor, tanto dor ancestral quanto ganho. E, no entanto, independentemente destas ligações agridoces, estamos todos ligados a elas para sempre pelas linhas que atravessam profundamente a história que nos une. Essa é a história de nossos ancestrais e familiares.
Quanto mais você estende suas memórias nesse oceano – de membros da família, vivos e mortos –, menos deles você conhecerá por meio da interação direta. Quanto mais separados você estiver no tempo e no espaço, mais trabalhará por meio da agência de outras pessoas para ainda se conectar com elas. Você recorre a seus pais para lembrar seus avós e a estes novamente para lembrar os ecos de seus pais. Desta forma, você e a sua família formam uma corrente viva que se estende tanto para o futuro como para o passado. Esta corrente não é mantida de forma alguma através do seu próprio poder, mas através da ação daqueles que vieram antes de você.[26]
Na goécia como uma cultura viva da Arte de se comunicar com espíritos para fazer magia e deificar a alma, o primeiro passo sempre é em direção a ancestralidade. Ao se tornar um iniciado da Cova de Cipriano Feiticeiro, uma família de Quimbanda, i.e. de goécia brasileira, o kimbanda recebe instruções magísticas para iniciar seu resgate e cura ancestral. Lhe é ensinado a compor, inicialmente, um altar mágico que servirá como uma zona de poder para acesso de sua ancestralidade. Este altar é composto de tecnologias mágicas como condensadores fluídicos e diversas materia magicae, de forma que não seja psiúrgico apenas, mas essencialmente mágico na intenção de tornar-se um portal de acesso aos ancestrais famíliares, porque eles são a primeira linha de defesa do kimbanda.
Com o passar do tempo e o desenvolvimento de habilidades magísticas e mediúnicas, o kimbanda transfere para o Cruzeiro das Almas sua conexão com os ancestrais. O Cruzeiro das Almas é um fundamento de conexão com todo tipo de égún (mortos), sendo um assentamento da ancestralidade do kimbanda. O conhecimento e conversação com o Exu tutelar é, por outro lado, uma agência de cura ancestral, porque por meio do Exu tutelar a ancestralidade é organizada, alinhada e perfilada no Cruzeiro das Almas. Uma das sunthēmatas mais importantes da Quimbanda é o Cruzeiro das Almas, porque ele dá acesso direto a qualquer tipo de alma: mortos deificados, mortos sem descanso, kiumbas etc. Trata-se de uma tecnologia mágica de acesso e comunicação com os espíritos.
Como um iniciado no culto, o kimbanda toma conhecimento da importância de sua família espiritual, que chamamos carinhosamente de banda. A fórmula mágica do espírito tutelar e a própria cura e resgate da ancestralidade, dependem desta metanoia fundamental: o Cosmos inteiro é uma família espiritual. Isso muda completamente a relação que se estabelece com as criaturas espirituais. E Stratton-Kent também vai no mesmo caminho quando propõe isso ao dizer que as listas de classificação das criaturas espirituais, as hierarquias dos espíritos, àqueles dos dias da semana ou dos equinócios e solstícios, e também àqueles das estrelas, deveriam ser compreendidas pelo operador como membros de uma família espiritual cósmica, todos conectados ancestralmente com ele. E isso nem de longe é novo; a Hermética traz essa mesma noção de que os deuses de todo o Cosmos são ancestrais do homem, fundamentalmente àqueles materializados no reino da geração e que são reverenciados nos templos:
Estes [os iniciados], cumpriram a vida divina, estes cessaram a selvageria do assassinato. Estes, aprendendo com Hermes que o que está embaixo é afetado pelo que está acima, decretaram oferendas verticais para aqueles [deuses] na terra. Eles surgiram nos mistérios sagrados do céu. Estes estabeleceram templos para os deuses ancestrais, e instituíram sacrifícios e leis. Estes também proporcionaram sustento aos mortais e abrigo.[27]
São Cipriano representa, no contexto da goécia como tradição viva, a interface necromântica com o mundo dos espíritos e a própria realização da carreira magística: a apoteóse da alma. Em sua Encyclopaedia Goetica, Stratton-Kent propõe uma rota de acesso a goécia: no primeiro volume, a edição crítica do Grimorium Verum, o autor inspira uma jornada catabática ao Submundo por meio do pacto com o diabo pessoal; no Geosophia é explorada a topografia mágica da goécia – i.e. do Submundo – como a tradição mítica, necromântica e ancestral, a fons vitae daquilo que se compreende como magia ocidental; The Testament of Cyprian the Mage é a culminação do trabalho da goécia, a anábase do Submundo como uma alma coroada, glorificada, divinizada, deificada. O que Jake Stratton-Kent nos inspira em sua Encyclopaedia Goetica é encontrarmos o nosso caminho para dentro desta corrente viva da goécia e, a partire dela, revitalizar completamente as raíses de nossa árvore ancestral e praxis magicae.
O meu caminho eu encontrei na Quimbanda! Estava caminhando na estrada quando, silenciosamente, escutei a melodia de uma flauta. Era encantadora. Virei-me à esquerda e notei que ela brotava das profundesas da mata escura, de onde saia uma trilha pequena, quase que imperceptível, adentrando a boca da mata. E foi lá no fundo daquela mata, tão densa e úmida que não chegava o sol, que encontrei com ele, o Diabo.
E o seu caminho?
NOTAS:
[1] No corpo principal do texto neste livro não utilizarei a palavra latina goetia ou sua adaptação, goética. Apenas a tradução para o português em qualquer caso: goécia. Para fins de classificação em notas de rodapé, ou esclarecimento entre parênteses, para facilitar o entendimento do leitor, utilizarei o termo goēteia como referência a goécia grega, e o termo goetia como referência a goécia salomônica.
[2] O Ocultismo é uma matéria de estudo do esoterismo ocidental ou da Esotérica, e nasce da escola francesa de magia no fim do Séc. XIX, período em que ocorre o moderno renascer da magia nas mãos do ocultista americano radicado na Inglaterra, Arthur Edward Waite (1857-1942). Como veremos, a partir deste renascer da magia nasce uma nova forma de pensar e definir a magia, alinhada ao pensamento cientificista positivista moderno, que culminou no Iluminismo Científico de Aleister Crowley (1875-1947). Autores como Nicholas Goodrick-Clarke atribuem o renascer da magia (ou o renascer do ocultismo) ao ocultista francês Eliphas Levi (1810-1875). Veja The Western Esoteric Tradition. Oxford University Press, 2008.
[3] Esse é um termo pejorativo utilizado na cultura da Quimbanda para se referir a não-iniciados que trabalham com Exu e Pombagira fora do contexto da Quimbanda como tradição. A equivalência é aqui estendida ao Ocultismo moderno e aos ocultistas de modo geral no sentido em que eles não recebem, de uma corrente iniciática viva, a real e fidedigna transmissão mágica. Na melhor das hipóteses são magistas autodidatas, e essa é uma característica peculiar da magia ocidental, reforçada a partir da produção dos grimórios no fim da Idade das Trevas.
[4] A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação com os espíritos dos mortos para fins de divinação e de magia (quando ganha também o epíteto de necrurgia). A nigromancia na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do período. O termo nasce para i. condenar os sacrifícios a antigos deuses pagãos, reclassificados como demônios e; ii. condenar o exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demônios também. Veja os livros Daemonium Vols. 1 e 2 (Clube de Autores, 2019, 2022) e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de Autores, 2023). A Quimbanda é, declaradamente, o único culto nigromântico genuinamente brasileiro.
[5] Sabedoria mágica africana. Referência as tradições religiosas da África como o Ifá e o Iṣéṣé Làgbà.
[6] Quimbanda, Umbanda, Candomblé e Catimbó no Brasil, por exemplo, assim como o Vodu no Haiti ou o Palo em Cuba.
[7] Que traduzo livremente como o renascer da magia dos grimórios. Não confundir com o renascer da magia [magical revival] do fim do Séc. XIX.
[8] Interessante notar que o Grimorium Verum associa o Novo Mundo a regência mágico-espiritual de um dos Maiorais da Quimbanda, a diaba Ashtarothh. Isso é significativo porque prova que a origem do Grimorium Verum só pode ter ocorrido após a descoberta das Américas.
[9] O grimoire revival tem sido atribuído aos esforços de Jake Stratton-Kent. É inegável o trabalho monumental e a sua contribuição para a tradição da goécia no esoterismo ocidental. Mas é levando em consideração as suas próprias abordagens que atribuo a Aluízio Fontenelle, efetivamente com a Quimbanda na década de 1950, a inauguração do grimoire revival.
[10] [N.T.] Veja Capítulo 1.
[11] Citado por Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 11.
[12] [N.T.] Referência ao Lemegeton.
[13] Jake Stratton-Kent. Geosophia: The Argo of Magic. Vol. I. Scarlet Imprint, 2021, pp. 118.
[14] Jake Stratton-Kent. The Testament of Cyprian the Mage. Vol. 2. Scarlet Imprint, 2014, pp. 139-140.
[15] Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal. Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021, pp. 9.
[16] Para uma discussão sobre as sunthēmatas, veja o primeiro volume do Daemonium.
[17] Frater Archer. www.goeteia.com.
[18] Por conta do intenso trabalho sacerdotal com a Quimbanda, encerrei o Curso de Filosofia Oculta em janeiro de 2022.
[19] Veja Fernando Liguori. Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon. Clube de Autores, 2017.
[20] Hermes Trimegisto. Logos Teleios: O Asclépio ou o Discurso de Iniciação. Tradução de Vinicius Pimentel Ferreira, edição do tradutor.
[21] Uso o termo métodos teúrgicos como uma referência direta a Jâmblico, no sentido em que o exercício de teurgia proposto pelo filósofo teúrgo é retirado do Corpus Hermeticum. Jâmblico abre e fecha seu De Mysteriis elogiando e exaltando Hermes Trimegisto.
[22] Jake Stratton-Kent. Citado por Frater Archer em sua resenha: The Testamento of Cyprian the Mage, disponível na internet. https://www.paralibrum.com/reviews/testament-of-cyprian-the-mage.
[23] [N.T.] Jake Stratton-Kent.
[24] [N.T.] The Testamento of Cyprian the Mage.
[25] Frater Archer em sua resenha: The Testamento of Cyprian the Mage, disponível na internet. https://www.paralibrum.com/reviews/testament-of-cyprian-the-mage.
[26] Ibidem.
[27] Kore Kosmos, I: 65. Tradução de Vinícius Pimentel Ferreira. Doxografia hermética: O estudo dirigido do Hermetismo Antigo. 1ª Edição do autor. Os colchetes são meus.
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