KLEPOTH A ABELHA RAINHA DA QUIMBANDA
- Fernando Liguori
- 14 de nov. de 2024
- 9 min de leitura

Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
A Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas na Quimbanda Malê é como uma abelha rainha, a inteligência espiritual que comanda toda a colmeia de Pombagiras-abelhas. Todas as Pombagiras na Quimbanda Malê estão, portanto, conectadas por meio de uma única fonte de poder, Asmodeus-Rainha das Sete Encruzilhadas, mas no entanto, assumem personalidades próprias. Por isso na Quimbanda Malê todas as Pombagiras são Klepoth, i.e. a manifestação total das Qliphoths.[1]
O Grimorium Verum apresenta Klepoth como um espírito subordinado ao diabo[2] Agliarept que, por sua vez, é um deputado de Lúcifer. Na magia negra que deriva deste grimório, a baqueta mágica para convocar Klepoth deve carregar seu sigilo, sua assinatura astral,[3] e ela deve ser utilizada junto com outra baqueta mágica, que carrega a assinatura astral do diabo Frimost. Mesmo classificada como um diabo, o Verum oferece uma descrição que apresenta um espírito feminino. Como falei no meu texto Pombagira & o Resgate do Feminino Ancestral,[4] muito embora as listas demonológicas classifiquem antigas deusas como demônios, as características inatas delas, sua atividade (energeia) nos termos aristotélicos,[5] se mantem a mesma.
Na gramática e na cultura da língua portuguesa, o termo demônia não se estabeleceu como o feminino de demônio devido a uma combinação de fatores linguísticos e culturais. Historicamente, o termo demônio provém do latim daemonium, que por sua vez tem origem no grego daimōn, um conceito que originalmente não possuía conotação exclusivamente negativa e era utilizado para se referir a espíritos ou forças intermediárias, divinas ou não.
Quando a palavra demônio foi incorporada ao português, seguiu a tendência de muitos substantivos que não estabelecem uma forma feminina, especialmente quando se referem a entidades ou figuras associadas a aspectos coletivos, abstratos ou sobrenaturais. Isso não é incomum em línguas latinas, onde encontramos diversos substantivos de gênero fixo, sobretudo para entidades ou figuras de grande peso simbólico, que acabam se tornando neutras em sentido prático, como anjo, satanás e espírito.

Além disso, o contexto religioso e cultural da Idade Média na Europa reforçou a ideia do demônio como uma entidade de gênero masculino ou neutro, influenciado pela figura de Satanás no cristianismo. Esse contexto contribuiu para a ausência de um feminino específico. Dessa forma, a entidade demônio foi vista, em tradições e traduções, como masculina ou de gênero irrelevante, sem necessidade de uma contraparte feminina.
Curiosamente, na cultura popular e na literatura, surgiram figuras femininas ligadas ao conceito de demônio, como súcubos ou, em alguns contextos afro-brasileiros, a própria Pombagira, que apresenta características demoníacas femininas. Esses exemplos acabam suprindo essa lacuna de um feminino para demônio, sem a necessidade de alterar o termo original.
Em síntese, a inexistência de demônia como feminino de demônio resulta tanto de razões linguísticas e históricas quanto de influências culturais e religiosas, que consolidaram o termo demônio como uma entidade masculina ou neutra, fixando o gênero e afastando a necessidade de uma versão feminina direta.
Voltando a teologia e demonologia do grimório, interessante como a ação de Klepoth como uma diaba no Verum está associada diretamente a ação de um diabo, Frimost, tal qual é a associação de Exu e Pombagira na Quimbanda. Nos primeiros desenvolvimentos teológicos e demonológicos da Quimbanda, Klepoth foi sincretizada com Pombagira, naquele momento descrita como uma bela diaba e amante de Exu Lúcifer.
A partir do Grimorium Verum é possível também ver que Klepoth compartilha características comuns com Lilith do Oriente Médio e muitas outras deusas do Mundo Antigo, características essas que, posteriormente, deram nascimento a inúmeras linhas de trabalho das Pombagiras na Quimbanda, como Pombagira Maria Padilha. No Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia, menciono que é interessante que Fontenelle diga que este ponto riscado de Exu-Rei remonta a 1.600 antes de cristo. Ele é, portanto, uma chave de acesso a uma corrente mágica vastamente antiga e que se abrigou na Quimbanda nos tempos modernos. Trata-se de um portal ao Senhor das Trevas como compreendido pelos antigos sumérios no que se reconhece ser a mais antiga religião do mundo.[6] Com base nisso, a inserção de Klepoth como Pombagira, tornou-a na fonte por onde muitas deusas negras antigas se manifestam na Quimbanda nas diversas linhas de trabalho de Pombagira. Ao que Maggi corrobora: A Pombagira de «nome cabalístico» Klepoth seria a cabeça, ou modelo, de um «Povo de Quimbanda» composto por almas femininas.[7]
Táta Zelawapanzu, explicando a natureza de colmeia de Pombagira e o nascimento de suas diversas linhas de trabalho, diz: Não havia uma construção e diferenciação entre as muitas Pombagiras que se manifestavam nos terreiros, sendo todas consideradas Exu Pombagira ou Exu Mulher, e é por isso que elas têm a natureza de colmeia, que chamamos de Klepoth. Essa divindade feminina, antes chamada de Exu Mulher, após a década de 1950 passa a ser dividida e individualizada em conjuntos de pombagiras com nomes diversos.[8]
Então de modo mais técnico, Klepoth se desenvolverá na demonologia da Quimbanda como uma entidade regente ou abelha rainha das diversas linhas de trabalho das Pombagiras, que serão amplamente desenvolvidas a partir da síntese de Fontenelle. De todas as vertentes da Quimbanda, a que melhor elaborou essas ideia foi a Quimbanda Malê.
Em meu texto Asmodeus na Quimbanda Malê, destaquei a figura de Asmodeus na e sua conexão com Pombagira, explorando como essa entidade feminina poderosa reflete características de antigas deusas como Hécate, Lilith e Astarte. Asmodeus, muitas vezes associado ao desejo sexual e à luxúria, ocupa um papel de destaque na Quimbanda Malê, onde se apresenta ora como homem (Exu), ora como mulher (Pombagira), sendo uma deidade de natureza andrógina. Essa dualidade conecta Asmodeus com a tradição salomônica e os mitos judaico-cristãos, especialmente no Testamento de Salomão e no Livro de Tobias, bem como com elementos da magia islâmica e judaica.
Pombagira na Quimbanda Malê é mais do que uma entidade individual: ela simboliza uma consciência coletiva, como uma abelha rainha que comanda todas as Pombagiras. Nesse sentido, Asmodeus é visto como o poder central que governa essas entidades femininas, trazendo a ideia de uma liderança espiritual sobre as Pombagiras-abelhas, conceito que reflete a essência das qliphoth (as cascas ou envoltórios das energias divinas na Cabalá judaica), caracterizando-a como uma manifestação dos aspectos obscuros da criação. A figura de Pombagira, ressignificada na Quimbanda, incorpora, portanto, toda a intensidade dos poderes femininos de antigas divindades e figuras mitológicas. Sua essência é comparada ao feminino lascivo e encantador de Klepoth, diaba descrita no Grimorium Verum com habilidades de adivinhação e manipulação.

Essa Pombagira-Abelha-Rainha não só carrega o poder de Asmodeus, mas também absorve características de Hécate, Lilith, Astarte, entre outras figuras femininas arquetípicas. Hécate, deusa grega das encruzilhadas e da feitiçaria, ressurge em Pombagira como a soberana das forças noturnas e da magia das sombras. Lilith, símbolo de rebeldia e independência feminina no imaginário judaico, encontra eco em Pombagira através de sua representação do poder sexual autônomo e de um desejo incontrolado. Astarte, com sua ligação com o amor e a guerra, é evocada na natureza marcial e sensual de Pombagira, cuja força inclui tanto o erotismo quanto a capacidade de destruição.
A transformação dessas deusas antigas em Pombagira na Quimbanda é um processo de sincretismo que resgata aspectos do feminino primordial, sensual e obscuro, redefinindo-os sob uma nova forma espiritual, incorporada na cultura afro-brasileira. As influências europeias, especialmente os conceitos demonológicos medievais, também moldaram essa figura, como exemplificado pelo Malleus Maleficarum, que relaciona a sexualidade feminina ao poder do demônio. Dessa forma, a Pombagira emerge como uma diaba brasileira, um arquétipo de poder feminino que abrange o desejo, o oculto e a força espiritual, perpetuando o legado de antigas divindades femininas em uma expressão moderna e única.
Jake Stratton-Kent amplia: Klepoth [...] pode ser comparada a Erzulie Mapyang, uma loa Petro do panteão do Vodu que – na magia de Nova Orleans – protege e auxilia prostitutas. O próprio nome Klepoth lembra o termo hebraico «qlipoth», plural de qlipah, cujo significado literal é «prostituta». Esse termo é frequentemente usado no Antigo Testamento para relações proibidas com «deuses estranhos» e, claro, ninguém era mais proibido do que as deusas estranhas. [...] Alternativamente, a tradição brasileira inclui uma variante do nome, Klepta, que poderia indicar uma raiz grega que significa «ladra».[9] No Grimorium Verum a diaba é descrita como:
Klepoth pode girar mil vezes ao dançar com suas companheiras e fará com que ouçam uma bela música, que será acreditada como real. Se desejar, ao passar, ela sussurrará em seu ouvido as cartas de quem estiver jogando com você. Segundo outros: Faz você ver todos os tipos de sonhos e visões; e outros ainda dizem: conhece todas as artes de adivinhação, especialmente por cristal, cartas, espelho e dados.

Da demonologia da Quimbanda Malê podemos resumir assim:
Identidade e nomenclatura: Klepoth, também conhecida como Kleppoth ou Kepoth, é uma diaba do Grimorium Verum frequentemente associada a ideias de lascívia e sedução. Seu nome pode derivar do termo hebraico qlipoth, que se refere a cascas ou envoltórios que contêm o mal na cabalá, ou klepah, que significa prostituta. Essa associação com a sexualidade e a sedução é central em sua representação na Quimbanda e nas tradições demonológicas modernas.
Poderes e Habilidades:
Klepoth é uma diaba encantadora e lasciva, com várias habilidades que incluem:
Visões e Danças: Ela tem o poder de fazer com que os invocadores vejam todo tipo de danças e visões. É capaz de encantar aqueles ao seu redor com música e movimento, criando uma atmosfera mágica e sedutora.
Divinação: Klepoth pode sussurrar segredos sobre jogos de cartas ou outros tipos de oráculos, revelando informações ocultas aos que a invocam.
Representação Iconográfica: Na Quimbanda Malê, Klepoth é frequentemente representada como uma serpente de sete cabeças, simbolizando um poder caótico extraordinário e uma conexão com a fertilidade e a sexualidade. Essa imagem remete à figura da Prostituta da Babilônia, que cavalga sobre uma besta, indicando domínio sobre forças primordiais.
Interpretação e Significado: Klepoth representa a totalidade das qliphoth na cultura judaica, sendo vista como uma força necessária para a criação divina, apesar de sua natureza impura. Ela simboliza a dualidade entre o bem e o mal, mostrando que mesmo as forças consideradas malignas têm um papel na dinâmica da criação.
Relação com outras entidades: Klepoth é frequentemente associada a outras figuras demonológicas, como Asmodeus, especialmente no contexto da Quimbanda Malê. Essa conexão enfatiza o poder sexual e as dinâmicas de sedução que permeiam suas interações com os humanos. A relação entre Klepoth e Pombagira também é notável, pois ambas compartilham aspectos de poder feminino e sexualidade.

Klepoth, portanto, não é apenas uma diaba de sedução; ela encapsula temas mais amplos de transformação, dualidade e o papel do mal na criação e na experiência humana.
Concluindo, Klepoth se configura como uma fonte primordial por meio da qual antigas divindades femininas, ligadas ao caos e ao poder das sombras, manifestam-se nas diversas linhas de trabalho das Pombagiras na Quimbanda. Pombagira como Klepoth representa a ressignificação e continuidade do arquétipo feminino obscuro, que atravessa mitologias antigas e renasce com vigor nas práticas afro-brasileiras. Assim como as divindades negras e caóticas de eras passadas – Hécate, Lilith, Astarte e outras divindades femininas ancestrais –, Klepoth canaliza o poder dessas forças, não apenas como entidade isolada, mas como uma abelha rainha que conecta e comanda as Pombagiras-abelhas.
Ao se manifestar na Quimbanda, Klepoth preserva a essência dessas deusas: a energia caótica e criativa que desafia as normas convencionais e abraça o lado sombrio da existência. Em sua figura multifacetada, ela proporciona um espaço onde o feminino sagrado e profano se encontram, resgatando o poder ancestral da mulher e sua autonomia. Dessa forma, Klepoth é mais do que uma diaba; ela é um canal atemporal de energias que transcendem culturas, manifestando-se em cada linha de trabalho de Pombagira como uma força necessária, complexa e vital para a dinâmica espiritual da Quimbanda.
NOTAS:
[1] Fernando Liguori. Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia. Clube de Autores, 2023, pp. 284.
[2] O grimorium verum chama seus diversos espíritos de diabos. É deste grimório a fonte ou inspiração para chamar os Gangas da Quimbanda de diabos.
[3] O ponto cabalístico do demônio conforme adaptação na cultura afro-brasileira.
[4] Veja Wanga: o Segredo do Diabo. Clube de Autores, pp. 131. Disponível on-line aqui.
[5] Na filosofia aristotélica, energeia (do grego ἐνέργεια) refere-se ao conceito de atualidade ou atualização, sendo o estado de algo que está plenamente realizado e em ato, em oposição à sua dynamis ou potência, que representa a capacidade ou potencial para se tornar algo. Para Aristóteles, o universo é composto de seres que têm uma essência, i.e. uma natureza que define o que eles são e o que podem vir a ser. O conceito de energeia é central nessa filosofia porque é através dela que um ser atualiza suas potencialidades e alcança sua forma final e perfeição. Ela é um processo de realização contínua, o momento em que algo atinge seu estado pleno de ser.
Assim, energeia é o ato ou realização da potencialidade de algo, o estado de ser pleno e ativo em sua essência. Ela representa a perfeição do ser, a atualização de suas possibilidades, e é fundamental para entender a visão aristotélica do mundo como um processo de crescimento e realização contínuos, onde tudo tende ao seu fim natural, à sua realização máxima e ao seu bem próprio.
[6] Fernando Liguori. Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia. Clube de Autores, 2024, pp. 365.
[7] Humberto Maggi. Encruzilhadas e Cemitérios. Clube de Autores, 2-24, pp. 511.
[8] Douglas Rainho. O Livro das Sombras de Exu. Clube de Autores, 2024, pp. 353.
[9] Jake Stratton-Kent. Frimost & Klepoth. Hadean Press, 2011, pp. 15.
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