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UM REPÚDIO A MONOLATRIA

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori

Atualizado: 10 de nov. de 2024


 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

Por conta do ambiente altamente polarizado em que vivemos na sociedade contemporânea, somado a algumas de minhas manifestações pregressas em redes sociais e o fato de ter finalizado o COF, o curso de filosofia do professor Olavo de Carvalho (1947-2022) e que foi o estudo mais importante de minha vida intelectual, tenho sido acusado de ser red pill olavista declarado, conservador de extrema direita, bolsonarista – e por incrível que pareça não tenho nem título de eleitor –, padre feiticeiro, quimbandeiro monoteísta, mago incoerente e muitas outras obscenidades e insanidades como essas duas últimas. Bom, se sou incoerente, me sinto um reflexo de São Cipriano, o santo bruxo patrono e protetor dos feiticeiros. Existe maior incoerência na tradição da magia do que o mito cipriânico?[1] Acho difícil, mas em sua incoerência o mito do santo feiticeiro é carregado de segredos necromânticos dos magos da Antiguidade, muitos deles restaurados e atualizados pela Quimbanda. Mas o que provocou essa reflexão – filosófica e teológica – foram i. o quimbandeiro monoteísta e; ii. o fato de receber um comentário em minha última campanha de publicidade no Instagram que dizia: para que isso [i.e. a Quimbanda] se já temos um Deus do perdão? O que diabos querem dizer com essas afirmações? Se por monoteísta eles se referem a um indivíduo conectado as religiões exotéricas do tronco semita, i.e. cristianismo, islamismo ou judaísmo, isso não tem nada a ver comigo. Parafraseando Arthur Versluis (1959) em seu livro The Mystical State: Politcs, Gnosis and Emergent Cultures,[2] essas religiões exotéricas do tronco semita são inadequadamente chamadas de monoteístas; o termo adequado para elas é: monolatrias. São culturas religiosas monolátricas totalitárias – e deixe esse termo, totalitarismo, bem fresco na memória – que não i. me representam absolutamente em nada e; ii. são contrárias a todas as minhas ideias acerca da jornada espiritual e vida religiosa. E que Deus do perdão estão se referindo efetivamente? Aquele que mandou seus fiéis destruírem os povos que cultuavam outros deuses? Como veremos, me declaro tecnicamente um ocultista e, sob uma perspectiva religiosa e mágica mais abrangente, um esoterista. Então vamos começar estabelecendo uma distinção entre esotérico e exotérico.

 

A rigor, o termo esoterismo, esoterista ou esotérico se refere a um conhecimento reservado para um pequeno grupo de indivíduos, geralmente selecionados por uma prova iniciática, esotérica. O termo deriva da palavra grega esotero, que significa de ou por dentro; interior ou interno e, portanto, para poucos. Em um sentido bem abrangente o termo implica conhecimento interno ou espiritual mantido por um círculo limitado, em oposição ao conhecimento exotérico, i.e. publicamente conhecido, exterior ou externo, para a grande massa de indivíduos. O termo esoterismo ocidental ou a Esotérica se refere, assim, ao conhecimento espiritual interno ou oculto transmitido por correntes históricas da Europa Ocidental que, por sua vez, alimentam o esoterismo norte e sul-americano, mas também outros não europeus. Definido dessa maneira simples, o conhecimento esotérico pode ser rastreado ao longo da história ocidental, da Antiguidade ao presente, mesmo que seja ricamente diversificado em espécie, variando dos mistérios da Grécia e Roma antigas a grupos gnósticos, praticantes herméticos e alquímicos, até grupos esotéricos contemporâneos ou novos movimentos religiosos. A característica do esoterismo é uma reivindicação à gnōsis, i.e. percepção espiritual direta da Realidade, derivada da cosmologia ou metafísica de um culto. Essa característica tem a vantagem de ser ampla o suficiente para incluir toda a gama de tradições esotéricas, mas estreita o suficiente para excluir figuras ou movimentos exotéricos como as três religiões monolátricas do tronco semita mencionadas anteriormente. Além disso, esse termo é tradicional e preserva a distinção entre conhecimento convencional obtido racionalmente, por um lado, e gnōsis, por outro. Os alquimistas buscam a percepção espiritual direta da Natureza e transmutar certas substâncias; os astrólogos buscam a percepção espiritual direta dos Astros e a usam para analisar eventos; os magos buscam a percepção espiritual direta do Cosmos e a usam para afetar o curso dos eventos; os teósofos buscam a percepção espiritual direta de Deus para realizar sua própria natureza divina. Em um sentido amplo, os aspirantes ao esoterismo buscam a percepção espiritual direta da natureza oculta do Cosmos e de si mesmos, i.e. eles buscam a gnōsis. É isso que defini tecnicamente o esoterista, a busca pela experiência direta do divino transcendente. Trazendo para o meu contexto pessoal, a partir disso defino a minha jornada como uma busca constante para levantar o Véu de Ísis sobre os Mistérios da Natureza.


O esoterismo se refere, então, às várias tradições que emergem em torno dessas várias abordagens à gnōsis. As tradições esotéricas ocidentais, falando de modo geral, são amplamente variadas em forma e natureza, mas, como vemos abaixo, todas elas têm em comum:

 

  1. Gnōsis ou percepção direta da realidade, ou seja, conhecimento de reinos ocultos ou invisíveis ou aspectos da existência.

  2. Esoterismo, significando que esse conhecimento oculto é explicitamente restrito a um grupo relativamente pequeno de pessoas ou implicitamente auto-restrito em virtude de sua complexidade ou sutileza.

 

Em outras palavras, as tradições esotéricas ocidentais, falando de modo geral, envolvem conhecimento secreto ou semi-secreto sobre a humanidade, o Cosmos e o Sagrado.

Tendo estabelecido essa distinção entre exotérico, o conhecimento para massa obtido racionalmente, e esotérico, o conhecimento secreto e a busca pela gnōsis, podemos começar pelo Velho Testamento, no Livro de Deuteronômio (7:1-5):

 

Quando o Senhor teu Deus te houver introduzido na terra, à qual vais para a possuir, e tiver lançado fora muitas nações de diante de ti, os heteus, e os girgaseus, e os amorreus, e os cananeus, e os perizeus, e os heveus, e os jebuseus, sete nações mais numerosas e mais poderosas do que tu, e o Senhor teu Deus as tiver dado diante de ti, para as ferir, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança, nem terás piedade delas; nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos. Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses; e a ira do Senhor se acenderia contra vós, e depressa vos consumiria. Porém assim lhes fareis: Derrubareis os seus altares, quebrareis as suas estátuas; e cortareis os seus bosques, e queimareis a fogo as suas imagens de escultura.

 

Todos aprendemos na catequese da Igreja que o Senhor teu Deus é o único Deus que existe e que, por isso, o nosso Deus é o Deus de todas as pessoas em todas as culturas. Só pode haver um Deus e nenhum além Dele. Essa ideia, da maneira como aprendemos na catequese, é um dogma, entende? Nunca lhe ocorreu que o deus de outra cultura pode não ser exatamente o Senhor teu Deus dessa passagem do Deuteronômio? Esse questionamento legítimo a Igreja chamou de heresia e por causa dele muitos indivíduos foram perseguidos e muitos cultos e religiões foram completamente suprimidos, obliterados em nome do Senhor teu Deus.


Neste mesmo Livro de Deuteronômio (20:10-18), os israelitas ofereceram paz aos seus oponentes, desde que estes se tornassem seus escravos:

 

Quando te achegares a alguma cidade para combatê-la, apregoar-lhe-ás a paz. E será que, se te responder em paz, e te abrir as portas, todo o povo que se achar nela te será tributário e te servirá. Porém, se ela não fizer paz contigo, mas antes te fizer guerra, então a sitiarás. E o Senhor teu Deus a dará na tua mão; e todo o homem que houver nela passarás ao fio da espada. Porém, as mulheres, e as crianças, e os animais; e tudo o que houver na cidade, todo o seu despojo, tomarás para ti; e comerás o despojo dos teus inimigos, que te deu o Senhor teu Deus. Assim farás a todas as cidades que estiverem mui longe de ti, que não forem das cidades destas nações. Porém, das cidades destas nações, que o Senhor teu Deus te dá em herança, nenhuma coisa que tem fôlego deixarás com vida. Antes destruí-las-ás totalmente: aos heteus, e aos amorreus, e aos cananeus, e aos perizeus, e aos heveus, e aos jebuseus, como te ordenou o Senhor teu Deus. Para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o Senhor vosso Deus.

 

Outros exemplos de totalitarismo monolátrico se espalham aos montes pelo Velho Testamento. No famoso verso de Salmos (137:7-9) onde se lê junto aos rios da Babilônia, ali nos assentamos e choramos, costuma-se ignorar a passagem que diz que a Babilônia deveria ser descoberta até seus alicerces e que feliz aquele que pegar em teus filhos [i.e. as crianças da Babilônia] e der com eles nas pedras. E quando Samuel unge o Rei Saul no Livro de Samuel (1-15:3), ele ordena: vai, pois, agora e fere Ameleque; e destrói totalmente a tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas, e desde os camelos até aos jumentos. Mas Saul não fez o que lhe foi ordenado e ainda poupou o rei dos amelitas. Em detrimento disso o Senhor teu Deus o rejeitou como rei de Israel.


 Precisamos refletir aqui sobre o significado dessas injunções. Um aspecto, claro, é a política de erradicação total das outras tribos. A identificação com o deus tribal de Israel não permite a coexistência pacífica; as injunções são absolutas. Para servir a esse deus tribal, é preciso não apenas renunciar a todos os outros deuses, mas também, para possuir essa terra, massacrar homens, mulheres, crianças e animais, deixando vivo nada que respire. Outro aspecto é a erradicação absoluta das tradições religiosas existentes, que estão estreitamente ligadas à natureza. Assim, o Senhor teu Deus ordena aos israelitas não apenas que exterminem tudo o que respira, mas também que destruam quaisquer pedras sagradas e derrubem quaisquer árvores ou pilares sagrados.


Essa política de erradicação total do outro – erradicação de povos concorrentes e de seus locais religiosos na natureza – efetivamente representa uma evacuação completa da terra, uma aniquilação total não apenas dos povos circunvizinhos, mas também de qualquer vestígio deles. Até mesmo o gado deles deve ser obliterado, e os israelitas são instruídos a não mostrar misericórdia a ninguém nem a fazer tratados com as tribos cujas terras eles ocupam. Assim, todas as conexões antigas pré-existentes com a natureza, todos os sinais de locais sagrados antigos, árvores ou pilares sagrados, devem ser derrubados e absolutamente destruídos. Essa erradicação significa efetivamente que o novo povo é radicalmente separado da história da terra; a própria natureza também lhes é estranha, pois todas as relações humanas anteriores com a terra são rompidas.


Subjacente a essa política de erradicação – que apresenta alguns paralelos e contrastes interessantes com as atitudes dos colonizadores europeus em relação aos povos indígenas das Américas – há uma ansiedade radical. O termo monoteísmo é inadequado para descrever o que vemos no Antigo Testamento, se monoteísmo significa que existe apenas um deus. Mais preciso seria um termo como monolatria, significando uma insistência para que o povo adore um deus em particular e não outros. É absolutamente claro que o deus tribal dos israelitas é uma divindade entre várias divindades tribais e, por isso, ele insiste que, no primeiro dos mandamentos, ele é um deus ciumento e não tolerará outras divindades diante dele. Repetidas vezes lemos injunções contra seguir ou reconhecer outros deuses – o que, é claro, significa que existem outros deuses. Os israelitas são ordenados a destruir essas tribos concorrentes de forma tão completa porque suas divindades e suas conexões com a natureza representam uma espécie de ameaça existencial a essa deidade tribal específica.


Mas por quê? Esse é o grande mistério. A dinâmica subjacente no Antigo Testamento é implacavelmente dualista, uma visão de nós/eles – mas tal dinâmica não é a única possível. Um ethos pluralista de viver e deixar viver é, ao menos, imaginável. Por que esse ethos extremo de desapossamento violento, de aniquilar outras tribos e obliterar qualquer traço de paisagens sagradas pré-existentes? Essa ânsia obliteradora, estou convencido, deriva da ansiedade subjacente embutida na afirmação de um deus contra um pano de fundo de outros deuses e na preocupação sobre se a ira recairia sobre o povo ou se o favor tribal seria concedido por essa divindade. Incorporado a tudo isso está a noção de um povo que se coloca radicalmente à parte dos outros e da natureza – junto com uma série de dualidades associadas – e, ao invés de tentar discernir as origens desse dualismo, é mais útil aqui refletir sobre suas consequências.


Tornou-se comum que escritores ecológicos vejam a origem da separação humana da natureza no Genesis, na afirmação do criador de que o homem terá domínio sobre a terra e as criaturas da terra. No entanto, é um fato que o homem tem domínio, e não apenas porque isso é mencionado no Gênesis. Ao mesmo tempo, menos atenção tem sido dada ao tipo de injunções posteriores que estamos considerando aqui, as quais têm o efeito de separar completamente uma tribo não apenas de outras tribos, mas também dos sinais tradicionais da religião da natureza ou religião arcaica. É verdade que a afirmação do domínio humano é significativa, mas mais significativo é a insistência, mais tarde no Antigo Testamento, na aniquilação de outros povos que têm relações religiosas duradouras com a terra, fixadas literalmente por marcadores verticais: pedras eretas, pilares, postes, árvores.


O que importa, então, é estritamente a nossa coletividade humana em oposição à deles. O mundo que vemos em Deuteronônio e no Antigo Testamento como um todo é um mundo demarcado e, de fato, governado exclusivamente por um vínculo tribal particular com uma divindade específica, elevado ao conceito ambíguo de nação e, ao mesmo tempo, afirmado como absolutamente superior a todos os outros. Isso é bem diferente do monoteísmo ontológico do platonismo, que é bastante receptivo a múltiplos caminhos para o Uno e que aceita a natureza como boa. Em outras palavras, o monoteísmo não é necessariamente anti-pluralista ou anti-natureza. Toda a história do platonismo demonstra isso. Mas o tipo de monolatria ordenada no Antigo Testamento existe precisamente porque, e no final das contas apenas porque, é anti-pluralista; esse é o seu propósito.


Isso nos leva a um ponto difícil, mas central. O tipo de monolatria que vemos no Antigo Testamento é inerentemente exotérico. Ou seja, é imposto pela força externa, pela ameaça, pela insistência do deus tribal que punirá a infidelidade a ele com maldições terríveis. Toda essa operação, em outras palavras, é movida e dominada pelo medo. Quando Tertuliano (160-240 d.E.C.) se enfurece contra os hereges pagãos, ele se volta especialmente contra a rejeição deles à motivação pelo medo. Esse mesmo tema ele usa contra Marcião (85-160 d.E.C.), que argumentava, com razão, que as Bem-aventuranças de Jesus representam um ethos motivado não pelo medo, mas pelo amor. Tertuliano estava ansioso para responder que Jesus também veio para incutir medo, como um representante da mesma divindade que vemos no Antigo Testamento.


Aqui estamos tocando na arquitetura básica embutida igualmente no Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, às vezes chamadas de religiões abraâmicas. Cristianismo e Islamismo se apresentam como, e de fato são, em alguns aspectos, novas revelações. Mas qual é a relação delas com essa divindade tribal preexistente do Antigo Testamento, aquela que exigiu o massacre de todos os homens, mulheres e crianças de alguns povos rivais? Em que medida essas três tradições se inclinam para um dualismo inerente, construído sobre a ansiedade e seu irmão maior, o medo? Em que medida essas três tradições religiosas são, em um nível profundo, exótericas, ou seja, construídas sobre uma base de dualismos nós/ele ou nós/eles que separam em vez de unir os povos, e que dividem a humanidade da natureza?


Aqui estou usando os termos esotérico e exotérico para me referir a uma dinâmica inerente e talvez endêmica ao monoteísmo ou monolatria. Essa oposição exoterismo/esoterismo – pois é isso que ela é efetivamente – deriva do legado dualista embutido na monolatria e reforçado pela violência atribuída à divindade por meio dos representantes da divindade, mas é fundamentalmente uma oposição entre afirmação externa e concentração interna. A abordagem exotérica resulta em um esforço para controlar os outros; a abordagem esotérica representa uma busca interior. Aqueles que se voltam para dentro, por definição, não estão interessados em controlar ou julgar os outros; toda a sua orientação é diferente.


O exoterismo está embutido na monolatria – os dois são inseparáveis. Todas as tradições monolátricas afirmam a aliança de seu próprio povo com uma versão particular do único deus, mas tudo na relação de aliança é dualista; é efetivamente um dualismo imposto desde o início. O deus é um deus ciumento, rápido em infligir punições ou maldições sobre o povo aliado, sem falar sobre seus concorrentes; assim, a relação de aliança em si está carregada de ansiedade. Está profundamente dividida em eu ou nós/outro, e além disso, o fato de que o deus deve constantemente ameaçar com punições para a infidelidade tem um correlato humano natural: os sacerdotes ou autoridades tradicionais, agindo como representantes divinos, também devem coagir a lealdade. Assim, a tradição monolátrica é inerentemente exotérica, ou seja, a monolatria é a coerção externa sobre outras pessoas e a placação ritual da divindade tribal perpetuamente propensa à ira.


Mas cada uma das monolatrias exotéricas carrega dentro de si alguma forma de esoterismo que torna possível a transcendência desse legado dualista e antagônico. O Judaísmo tem a Cabalá, o Islamismo tem o Sufismo, e o Cristianismo tem uma mística mais individualista. Central a todos eles está a mística via negativa, que usa palavras para apontar para aquilo que não pode ser descrito e que rompe todas as conceituações. No Cristianismo, vemos isso primeiro em Basílides (98-140 d.E.C.), depois na Teologia Mística de Dionísio, o Areopagita (Sécs. V-VI d.E.C.), e mais tarde na obra de Mestre Eckhart (1260-1328) e do autor anônimo de A Nuvem do Não-Saber. A via negativa não se opõe à tradição exotérica e monolátrica em que existe – pelo contrário, leva diretamente para fora desses dualismos.


Em todas as tradições monolátricas, o misticismo nunca é central; ele não pode ser, pois a tradição principal é exotérica e dualista. O misticismo, sendo a transcendência do dualismo, é no máximo tolerado e, no pior dos casos, perseguido pela tradição exotérica dominante à qual sempre é acessório. O misticismo é esotérico – é puro esoterismo, na medida em que representa a experiência individual de despertar interior que não pode ser transmitida a ninguém, apenas sugerida. Aqui, claro, estamos nos referindo ao que podemos chamar de misticismo puro ou arquetípico da linha basilidiana ou dionisíaca, e não ao misticismo visionário do xamanismo, embora observações semelhantes possam se aplicar nesses casos também. O problema central aqui é a tensão entre exotérico e esotérico, endêmica nas três monolatrias do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo.


O termo exotérico geralmente se refere às formas externas ou públicas de uma tradição religiosa, mas, na verdade, penso que há uma tensão exoterismo-esoterismo particular e extremamente endêmica nas monoteísmos abraâmicos. Essa tensão surge da presença, nos monoteísmos abraâmicos, do que podemos chamar de um exoterismo extremo presente nas três tradições principais. Por exoterismo extremo, refiro-me ao dualismo intenso que está embutido na monolatria e que insiste em se definir excluindo, e até anatematizando, os outros. O exoterismo extremo gera – é o motor do – fanatismo religioso característico do fundamentalismo moderno.


O exoterismo extremo insiste na imposição forçada de uma monolatria específica e suas tradições associadas sobre pessoas designadas como radicalmente outras. O exoterismo extremo é visível nas três religiões monoteístas. Vemos sua expressão inicial no Antigo Testamento, em particular em textos como Deiteronômio, que apresentam a forma arquetípica do que vemos repetido em vários contextos subsequentes, onde pessoas que alegam uma relação de aliança especial com Deus tomam posse de uma terra e subjugam ou expulsam seus habitantes. Também vemos o exoterismo extremo em funcionamento na construção do aparato inquisitorial no catolicismo e, de fato, onde quer que um inquisidor se sinta investido na obrigação de impor a teologia ou ideologia oficial à população para o seu próprio bem. E vemos o exoterismo extremo no Islã, na crença fanática de que todos os povos devem ser subjugados e forçados a se submeter ao Islã exotérico.


O exoterismo extremo é um comportamento motivado pelo medo. O medo, é claro, é radicalmente dualista – tem-se medo do radicalmente outro, do oponente hostil ou potencialmente hostil. Curiosamente, essa é a relação inerente à monolatria de aliança – repetidamente, lemos no Antigo Testamento que Deus se torna irado, que abandonará seu povo, que já os abandonou, que os amaldiçoará e os punirá, e assim por diante. Essa mesma relação se estende para fora em relação àqueles cuja terra se deseja apropriar e em relação àqueles designados como hereges ou de alguma outra forma radicalmente outros. Tal relação também é visível no jihadismo muçulmano moderno contra a modernidade não muçulmana. Por que a Igreja Católica Romana perseguiu os cátaros, que eram pacifistas? Por medo de que representassem uma ameaça ideológica/teológica, e por acreditar que, ao subjugá-los e aniquilá-los, estavam fazendo a obra de Deus.


O esoterismo, por outro lado, no fundo é o desejo de união. Essa motivação subjacente explica por que, ao examinarmos a história do esoterismo ocidental, encontramos um padrão consistente: enquanto os esotéricos são frequentemente perseguidos, eles não perseguem os outros. Esse padrão é visível desde, pelo menos, a Antiguidade tardia. O esotérico busca uma vida interior mais rica, mudanças de consciência que aproximam da compreensão e união com o divino, com a humanidade e com a natureza. Tal união é, evidentemente, o oposto do que vemos no exoterismo, que consiste na objetificação e subjugação do outro. Novamente, exoterismo e esoterismo referem-se principalmente a tendências ou inclinações mentais, cujas formas mais puras são visíveis, por um lado, no inquisidor e, por outro, no místico da via negativa.


Embora seja verdade que o exoterismo está embutido na monolatria, o termo exoterismo aqui refere-se a uma tendência humana básica que não está ligada exclusivamente a tradições religiosas monolátricas. Vê-se a mesma dinâmica exotérica operando nos estados totalitários do Séc. XX, incluindo China e Coreia do Norte. Aqui, exoterismo refere-se à tendência capturada tão eloquentemente no personagem do Grande Inquisidor de Dostoiévski (1821-1881), que se via como um instrumento divino para controlar os outros para o bem deles e da sociedade. A tentativa de trazer um paraíso terrestre através da força inevitavelmente gera um pesadelo, seja o gulag de Stálin (1878-1953), os campos de extermínio de Pol Pot ou a revolução cultural de Mao (1893-1976).


Mas onde estão as comunidades criadas em torno da inspiração esotérica em vez da compulsão exotérica? Esta é uma pergunta interessante. Exemplos de comunidades exotéricas são numerosos, enquanto as instâncias de comunidades esotéricas são raras, para dizer o mínimo. Aqueles que buscam instituir um califado islâmico, qual é seu sonho? Não seria algo semelhante à teocracia punitiva e fechada dos talibãs? Ou, novamente, aqueles que imaginam uma teocracia americana, de que sonham, senão impor sua visão exotérica sobre seus concidadãos para o próprio bem deles? Essas distopias não têm espaço para sufis ou místicos cristãos; de fato, os místicos parecem ameaçadores para os distópicos.


Entender a natureza do exoterismo é extremamente importante porque existem outras formas de organizar comunidades, mas é da natureza do exoterismo ocultar totalmente e anatematizar todas as alternativas.


Concluindo, é crucial reconhecermos que a distinção entre exoterismo e esoterismo não se trata apenas de diferenças religiosas ou filosóficas, mas de perspectivas profundamente enraizadas na natureza humana e nas sociedades que construímos. O exoterismo, com sua tendência ao controle externo e à imposição de dogmas, geralmente conduz ao medo e à segregação, enquanto o esoterismo, ao contrário, representa uma busca interna e pessoal pela união com o divino e com o Cosmos. É essa busca por gnōsis, por um conhecimento direto e transcendental, que marca o verdadeiro esotérico, independente de sua afiliação cultural ou religiosa.


Assim, enquanto as forças exótericas insistem em moldar o mundo ao seu redor, suprimindo e marginalizando visões alternativas, o esoterismo segue como um caminho individual e libertador, uma jornada pessoal que, paradoxalmente, conecta o indivíduo ao todo. Em uma época de polarizações e conflitos, relembrar e explorar essa alternativa esotérica pode oferecer não apenas um refúgio espiritual, mas uma forma de resistência e integração que transcende as fronteiras da imposição. Afinal, compreender a dualidade entre esses dois modos de vida talvez seja o primeiro passo para superá-la, promovendo uma forma de existência onde o medo dá lugar à compreensão e a repressão cede espaço à liberdade de conhecer e vivenciar o sagrado.



NOTAS:

[1] Veja meu texto A Deificação Cipriânica da Alma.

[2] New Cultures Press, 2011.




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