A QUIMBANDA É ANTICÓSMICA?
- Fernando Liguori
- 26 de out.
- 3 min de leitura

Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
[Resenha do texto: A Quimbanda é Anticósmica? Uma Refutação Filosófica, Antropológica, Sociológica e Histórico-Religiosa. Texto com 11 páginas. Disponível no site Goēteia: clique aqui.]
A partir da década de 2010, começou a difundir-se no Brasil uma corrente autodenominada Quimbanda Luciferiana, que reivindica ser a forma verdadeira e original da tradição, reinterpretando Exu sob o prisma do luciferianismo anticósmico e da mitologia do deus rebelde herdada de leituras europeias modernas. Amparada em discursos da internet e em adaptações do satanismo teísta e do gnosticismo dualista, essa vertente passou a descrever a Quimbanda como uma religião de ruptura com o Cosmos, como se Exu representasse o princípio da negação absoluta da Criação. Durante anos, a ausência de uma resposta acadêmica, filosófica e teológica sólida permitiu que essa narrativa se infiltrasse em terreiros e casas de culto, confundindo praticantes e distorcendo a essência da tradição afro-diaspórica.
Essa visão anticósmica da Quimbanda, porém, é filosoficamente inconsistente, antropologicamente infundada e teologicamente equivocada. Do ponto de vista filosófico, ela deriva de um anacronismo conceitual: importa para o universo banto um dualismo grego-gnóstico (espírito/matéria, luz/trevas, Deus/Diabo) que simplesmente não existe nas cosmologias africanas. A filosofia banto, conforme Placide Tempels (1906–1977) e Alexis Kagame (1912–1981), é vitalista e relacional: o Cosmos é um campo de forças em equilíbrio, onde nada é absolutamente bom ou mau, mas eficaz ou ineficaz. Dizer que a Quimbanda é anticósmica é um erro lógico — pois a Quimbanda é, por natureza, um sistema de magia cósmica, que atua dentro das leis do universo e não contra elas.
Sociologicamente, o anticósmico ignora que a Quimbanda se formou como religião urbana de mediação — e não de negação. Ela nasce nas encruzilhadas, não como oposição à ordem, mas como lugar de comunicação entre mundos. A tradição dos Exus é a linguagem simbólica das cidades negras do pós-escravismo, um sistema de resistência e reorganização espiritual. Classificar essa religião de anticósmica é apagar seu papel histórico como estrutura de integração social e ética no Brasil moderno.
Antropologicamente, a ideia de anticósmico trai uma incompreensão profunda da religiosidade afro-diaspórica. A cultura religiosa banto não concebe o mal como princípio metafísico autônomo. O que a tradição chama de trevas não é ausência de Deus, mas a zona fértil de potência, o útero do mundo. O inferno africano é ventre, não exílio. O culto aos mortos, à terra e ao fogo é, na verdade, celebração da continuidade da vida. A Quimbanda é uma religião da imanência, não da negação.
Epistemicamente, a narrativa anticósmica também falha por confundir teologia com ideologia. Importa-se para o terreiro um discurso europeu de oposição metafísica — o mesmo que a teologia cristã criou para combater a feitiçaria — e o projeta sobre um sistema simbólico que opera por complementaridade. O resultado é uma caricatura: o Exu transformado em um diabo rebelde, o ritual reduzido a invocação demoníaca, e o terreiro convertido em palco de nihilismo pseudo-gnóstico. Trata-se de um erro de tradução espiritual, onde a linguagem do poder vital é substituída pelo teatro da rebeldia moral.
Teologicamente, a Quimbanda é cosmológica ou melhor, cosmoteúrgica. O Exu, enquanto princípio de movimento, é o mediador que garante o fluxo entre Céu e Terra, visível e invisível, vida e morte. Sua ação não é destrutiva, mas criadora, pois ele governa as transformações que mantêm o Cosmos vivo. No contexto da cultura yorùbá, Èṣú, fonte primeva do Exu-Diabo da Quimbanda, não é o inimigo de Deus, mas o executor de sua vontade imanente — o motor do mundo. A própria palavra Quimbanda (de kimbanda, i.e. sacerdote ou curador em kimbundu) indica uma função cosmoteúrgica, não oposição ao ela Cosmos.
Assim, refutamos com rigor filosófico, sociológico e antropológico a noção de uma Quimbanda anticósmica. O verdadeiro sentido da tradição é o da teurgia crioula: uma ciência espiritual que afirma o Cosmos, trabalha dentro dele e o renova continuamente. O fogo de Exu não queima o mundo — ele o desperta. A Quimbanda é a religião da terra viva, da alma do mundo e de sua potência real. A ela, o anticósmico não se aplica: seria negar o próprio coração da encruzilhada, que é a união de todos os caminhos.



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