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NA QUIMBANDA A DEIFICAÇÃO DA ALMA É CIPRIÂNICA

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 

 

Acredite nas minhas palavras, quando digo que vi o próprio Diabo, depois de chamá-lo com sacrifícios, e o abracei e conversei com ele, e fui considerado digno de dignidade entre aqueles que ocupavam os mais altos cargos em sua coorte. Seu aspecto era como uma flor de ouro, adornada com pedras preciosas. Ele tem na cabeça uma coroa feita de pedras preciosas, soldadas entre si, e seu esplendor deslumbrou todo o lugar, e sua vestimenta estava em harmonia com o resto. Quando ele se virou, ele fez todo o lugar tremer.[1]


Ele prometeu fazer de mim um príncipe, após a minha morte, e que eu teria poder e seu apoio enquanto vivesse. Para tanto, ele me dotou de grande autoridade e me deu o comando de uma falange infernal. «Sê corajoso», disse-me ele quando saí, «grande Cipriano!» Ele se levantou e me acompanhou por um momento, causando a admiração de todos ali presentes. Depois disso, todos os dignitários de sua coorte se submeteram ao meu serviço, sabendo bem do grande favor que eu gozava com ele.[2]

 

Toda Quimbanda é cipriânica. Eu venho demonstrando que O Livro de São Cipriano resgata antigos segredos necromânticos que foram transmitidos e atualizados pela Quimbanda, como a ideia soteriológica de deificação da alma por meio da agência de um espírito tutelar que, no mito de São Cipriano, é o próprio Diabo. Como vemos na citação acima, retirada de A Confissão de São Cipriano, o Diabo é retratado com grande majestade, assim como na Quimbanda o é o Chefe Império Maioral; e que o Diabo promete elevar Cipriano após a morte, i.e. deificar sua alma, fazendo dele um príncipe, conferindo-lhe também autoridade sobre uma miríade de espíritos infernais. Como vimos no texto A Doutrina Soteriológica do Paredros, disponível na Revista Nganga e também no segundo volume do Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia, era a crença escatológica fundamental de um mago na Antiguidade a deificação da alma por meio de um espírito tutelar.

 

O Livro de São Cipriano é considerado importante no início do Séc. XX na formação da Macumba carioca – como destacou o jornalista João do Rio (1881-1921) em sua celebrada coleção de ensaios, As Religiões do Rio, de 1904 – e, após sua derrocada, na gênese da Umbanda e da Quimbanda. O primeiro autor de Umbanda, Leal de Souza (1880-1948), em 1933 publica seu livro, O Espiritismo, a Magia e as Sete Linhas de Umbanda, inaugurando a sétima Linha do Santo ou Linha das Almas, também chamada de Linha Negra, alocando nela caboclos e pretos-velhos, fazendo referência a cor preta conectada a Exu.[3] Pouco tempo depois, Lourenço Braga (1900-1963), em 1942 publica seu livro Umbanda Magia Branca & Quimbanda Magia Negra, onde aloca São Cipriano como chefe da Linha Africana, e estabelece uma distinção entre a Linha do Santo e a Linha das Almas, agora regida por Umulum e, efetivamente, conectada a linha da Quimbanda.[4] Em outras palavras, Leal de Souza cria uma sétima linha de trabalho das Almas para espíritos egressos da Linha Negra atuarem dentro da Umbanda. Lourenço Braga pega essa Linha das Almas de Leal de Souza, a rebatiza de Linha Africana e coloca sua chefia a cargo de São Cipriano. Esta Linha Africana, por outro lado, também estava diretamente conectada a Quimbanda. Braga diz que os componentes dessa falange infiltram-se com grande facilidade entre os quimbandeiros.[5] É possível identificar, portanto, que os espíritos da Linha Negra são os mesmo da Linha Africana chefiada por São Cipriano, que foi colocado ali como encarregado destes espíritos porque no seu mito ele se trata de um feiticeiro pagão convertido ao cristianismo, sendo ideal, portanto, para chefiar uma linha de espíritos feiticeiros pagãos africanos, trabalhando a partir daí sob o ordenamento cristão da Umbanda.

 

Na síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle (1913-1952) a partir da década de 1950 em seu livro Exu, São Cipriano não aparece como chefe de nenhuma linha. Em Fontenelle se inaugura a ideia de reinos a partir do antigo conceito de linhas de trabalho, e somente dois são nomeados: encruzilhadas e cemitérios. O Reino dos Cemitérios aparece como substituto da antiga Linha das Almas, chefiado por Omulu, mais tarde conhecido como Exu Omolu. É interessante que na sua tabulação do Reino dos Cemitérios, o Exu Meia Noite, associado ao demônio Hael, aparece como subordinado a Omulu no Reino dos Cemitérios e é descrito como o diabo pessoal que havia ensinado os segredos das ciências ocultas a São Cipriano. Discordando de Humberto Maggi[6] que diz que São Cipriano não ganhou destaque na Quimbanda porque em seu mito ele havia traído o Diabo, muito diferente disso, São Cipriano é fundamentado na Quimbanda como Exu Cipriano Feiticeiro, tanto para fins de proteção contra magia negra, quanto para ataques mágicos diversos, da mesma maneira que São Cipriano se tornou patrono, protetor e orientador dos feiticeiros na goécia como tradição viva, ele permanece assim dentro da Quimbanda. As imagens aqui apresentam o preparo do fundamento de São Cipriano na Quimbanda.

 

O mito de São Cipriano foi construído para refutar as práticas religiosas pagãs e as crenças escatológicas que derivavam delas, como a ideia da deificação da alma por meio de um espírito tutelar ou mesmo a agência de um morto convocado para interferir nos assuntos humanos. Essa é a temática de A Confissão de São Cipriano: os mortos estão sujeitos aos ditames de Deus e são, por isso, impotentes para auxiliar os homens ou mesmo aparecer para eles, com exceção dos santos, que substituíram os espíritos intermediários entre o Céu e a Terra e agora podiam aparecer para ajudar os homens. Além disso, o mito segue na direção a demonstrar que o Diabo não tinha o poder para deificar a alma de Cipriano. Até que, por severos infortúnios, ele se converte e torna-se santo.



Embora na temática do mito Cipriano tenha sido convertido e, em detrimento disso, cristificado, i.e. canonizado, ele se tornou o Herói mítico da goécia como tradição viva por ser um feiticeiro de alma deificada aos moldes das crenças escatológicas dos magos da Antiguidade, principalmente àqueles da magia sagrada dos Papiros Mágicos Gregos. Mas no sentido em que essas crenças escatológicas mágico-necromânticas dos magos da Antiguidade sobreviveram – a contragosto das perseguições cristãs e da própria direção que o mito segue – nos diversos feitiços de O Livro de São Cipriano. Se o Diabo não teve tempo para cumprir suas promessas a Cipriano, como vimos na citação que abre esse opúsculo, ele assim o fez com Maria Padilha, a rainha que se tornou conhecida por ter sido feiticeira e após a sua morte passou a ser convocada em feitiços como alma deificada, e o Marquês de Vilhena que, de igual modo, tornou-se discípulo do Diabo na Cova de São Cipriano na cidade de Salamanca, a rota da seda da magia no fim da Idade Média. Ambos, o Marquês e Padilha, foram favorecidos pelo Diabo, tendo suas almas sido deificadas e tornando-se encarregados de uma horda de diabos.

 

Muitos reclamam da incoerência que encontramos nas diversas versões de O Livro de São Cipriano. Mas São Cipriano, como mito, é a encarnação da própria incoerência: um feiticeiro que se converte e torna-se santo padroeiro dos feiticeiros; que coerência existe nisso? Nenhuma! O Livro de São Cipriano deve ser encarado coma a própria biblioteca mágica que o mago leva a vida toda para colecionar. Trata-se de um compêndio de feitiços e de folclore que revelam antigas crenças mágicas do Ocidente e Oriente. Suas páginas trazem entrelinhas ricas fórmulas mágicas universais que, quando reconhecidas, podem ser resgatadas, restauradas e atualizadas pelo mago. É assim que antigas crenças mágico-necromânticas do Mundo Antigo que sobreviveram nas páginas de O Livro de São Cipriano chegaram até a Quimbanda.

 

O pacto diabólico, como demonstrei no texto A Doutrina Soteriológica do Paredros, é uma referência ao conhecimento & a conversação com o espírito tutelar; a danação no Inferno em detrimento do pacto diabólico é um símbolo da alma deificada que, glorificada nas profundezas do Submundo, torna-se Regente no Inferno. O favorecimento que o Marques de Vilhena e Maria Padilha ganharam do Diabo é o mesmo favorecimento que cada kimbanda espera receber do Chefe Império Maioral: tornar-se um Exu no pós vida, chefe de um Reinado de Quimbanda e uma miríade de diabos subordinados.



NOTAS:

[1] A Confissão de São Cipriano. Em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus. Vol. II. Clube de Autores, 2016.

[2] A Confissão de São Cipriano. Em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus. Vol. II. Clube de Autores, 2016.

[3] Leal de Souza. O Espiritismo, a Magia, e as Sete Linhas de Umbanda. Fundamentos de Axé, 2019.

[4] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 12ª Edição, 1970.

[5] Ibidem.

[6] Humberto Maggi. Encruzilhadas e Cemitérios: Uma Introdução Histórica à Quimbanda. Clube de Autores, 2024.





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