
Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Durante os trinta anos em que São Cipriano foi servo do demônio, adquiriu justo renome de mago peritíssimo, tanto para o bem quanto para o mal. Depois de conhecer o que sabiam destas coisas os homens de sua época, o pacto que fez com o demônio o tornou dono de segredos com os quais conseguia dar satisfação aos seus gostos, e alegrava-se muito Satanás, pois de tal sorte sua vítima ia amontoando pecados que asseguravam irremediavelmente ao grande feiticeiro, as eternas penas infernais.[1]
O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, é o primeiro volume de uma série de grimórios fáustico-cipriânicos alinhados a cultura e cosmovisão da Quimbanda, publicados pela família Cova de Cipriano Feiticeiro exclusivamente para seus adeptos iniciados. A primeira versão brasileira de O Livro de São Cipriano alinhada a cultura da Macumba[2] foi a edição de N.A. Molina, Antigo Livro de São Cipriano: o Gigante e Verdadeiro Capa de Aço, de 1992, que trazia no frontispício o Brasão Imperial de Maioral e a imagem tradicional de Baphomet.[3] Nesta versão de Molina encontramos trabalhos de magia típicos da cultura moderna da Macumba:
Compre um bode todo preto, uma vela preta, um charuto, uma caixa de fósforos e uma garrafa de marafo. Levar a uma encruzilhada, de preferência na mata, a hora grande, numa segunda-feira. Lá chegando, abrir a garrafa de marafo, acender a vela, e colocar o charuto sem o invólucro em cima da caixa de fósforos. O bode preto deve estar lavado, e na ocasião amarrado.
Depois de tudo pronto, chamar por Tranca Rua das Almas, oferecer o trabalho e pedir em seguida o que quiser.
Logo após desamarrar o bode preto e andando de costas, ir para casa. Este trabalho de alta magia, deve trazer os resultados esperados dentro de 7, 14 ou 21 dias, a contar do dia do trabalho.
Chegando em casa, tomar um banho do pescoço para baixo. Com uma vasilha de cachaça e logo após, um outro com água salgada.[4]
A versão de Molina é profundamente inspirada nas edições brasileiras de O Livro de São Cipriano do início do Séc. XX, trazendo um rico compêndium de feitiços demonológicos com Lúcifer, Beelzebuth, Ashtarot, Asmodeus, Barrabás, Ferrabrás etc. ao lado dos Exus e Pombagiras mais conhecidos entre as décadas de 1950 e 1990, ao estilo fáustico-cipriânico clássico que vemos no Grimorium Verum, incluindo um pacto com Lúcifer, sob a releitura magística da cultura da Macumba. Neste volume daremos continuidade a esta tradição.
No Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia, pela primeira vez na cultura da Quimbanda uma descrição dos Exus sincretizados com os espíritos do Grimorium Verum na síntese de Aluízio Fontenelle (1913-1952) foi oferecida aos leitores, demonstrando a profunda similaridade de atuação que existe entre os Exus e o espíritos ctônicos do Grimorium Verum. Nesta edição de O Livro de São Cipriano seguiremos este mesmo caminho, oferecendo uma descrição dos Exus e Pombagiras que formam o egbe da Cova de Cipriano Feiticeiro, com seus diabos pessoais associados.
O sub-título deste volume, o tesouro do feiticeiro, deriva da tradição de O Livro de São Cipriano ser notoriamente reconhecido por seu conteúdo voltado para práticas de feitiçaria, invocações de espíritos, revelações de mistérios arcanos, e um de seus aspectos mais intrigantes, o desencanto de tesouros ocultos, tema recorrente em várias versões da obra, especialmente nas edições ibéricas e brasileiras.
Segundo as lendas, São Cipriano, antes de sua conversão ao cristianismo, era um mago poderoso que dominava as artes ocultas, os segredos da alquimia e da geolocalização de riquezas enterradas. Acredita-se que ele teria registrado em seu livro fórmulas e rituais para localizar e desencantar tesouros escondidos por meio da invocação e divinação com espíritos ctonianos diversos, como demônios e almas penadas. A crença popular sustenta que São Cipriano, com seu conhecimento, poderia não apenas revelar onde estão os tesouros, mas também fornecer os métodos para desenterrá-los e desencanta-los de maneira segura, sem sofrer maldições ou represálias mágicas, porque desenterrar tesouros ocultados magicamente com a proteção de espíritos pode levar a efeitos colaterais – tantras tangenciais[5] – gravíssimos. Muitas lendas do esoterismo ocidental associadas a tesouros escondidos relatam a presença de maldições que recaem sobre aqueles que tentam descobrir riquezas sem o devido preparo magístico. O Livro de São Cipriano oferece esconjuros e desencantos para garantir que o operador não seja prejudicado.
Dentre os feitiços e práticas descritas nas edições ibéricas e brasileiras, algumas das mais comuns incluem a convocação de espíritos que guardam tesouros ocultos, como almas penadas e demônios. Estes espíritos atuam como guardiões que só permitem que o tesouro seja desenterrado sob certas condições rituais. Para tal, O Livro de São Cipriano instrui sobre o uso de símbolos mágicos, selos e sigilos que, quando desenhados corretamente, podem ajudar na localização de riquezas escondidas, servindo como uma espécie de bússola mágica. Inclusive há instruções para construção de lamparinas mágicas e uso de pêndulos, baqueta mágica, espelhos negros, bacias de água e velas para esse objetivo, revelar locais ocultos através da visão astral e do contato com espíritos ctonianos.
O Livro de São Cipriano, no escopo da descoberta de tesouros, reflete uma forte influência da tradição popular ibérica, mesclando cristianismo com práticas de magia cerimonial e feitiçaria rural. Ele simboliza o desejo humano por riqueza e poder, mas também alerta sobre os perigos e responsabilidades espirituais envolvidas na obtenção desses segredos ocultos.
Essa busca fáustica-cipriânica por riqueza e poder, por outro lado, se estende a Quimbanda, nos trabalhos com Exus e Pombagiras, deidades capazes de prover caminhos para a prosperidade material e a revelação de segredos ocultos aos kimbandas. Neste sentido, o tesouro do feiticeiro está oculto pelos caminhos que os Gangas da Quimbanda oferecem aos kimbandas iniciados, na riqueza mágica que o trilhar destes caminhos e encruzilhadas revela a cada adepto da Quimbanda individualmente.
A tradição fáustico-cipriânica, conforme apresentada em O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, resgata a interseção entre a busca pelo conhecimento oculto e o desejo de poder material, elementos fundamentais tanto na figura de São Cipriano quanto no arquétipo de Fausto. O livro sintetiza práticas de Quimbanda com herança na feitiçaria popular ibérica, no cristianismo esotérico, na magia cerimonial, no diabolismo europeu, e no fetichismo animista afro-ameríndio, refletindo o anseio humano por riquezas ocultas e a necessidade de proteção espiritual para desvendar tais mistérios no que chamamos de a nova síntese da magia. Essa tradição fáustico-cipriânica ressoa profundamente na Quimbanda, onde Exus e Pombagiras atuam como guardiões e reveladores de caminhos para o sucesso e a sabedoria oculta. Assim, a busca pelos tesouros encantados transcende o aspecto meramente material, tornando-se uma jornada espiritual e iniciática, na qual a verdadeira riqueza se revela na conexão com os segredos ancestrais e na prática mágica eficaz, alinhada às forças da Quimbanda e à sabedoria dos antigos mestres espirituais.
NOTAS:
[1] El Libro Magno de San Cypriano. Citado em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus. Vol. II. Clube de Autores, 2016, pp. 525.
[2] Por cultura da macumba compreenda todo culto e cosmovisão derivados da Macumba carioca, paulista, capixaba e mineira.
[3] As edições brasileiras de O Livro de São Cipriano trazem a imagem de Baphomet, no frontispício ou no corpo da edição. Alguns dos livros de N.A. Molina não citam diretamente a Quimbanda, mas trazem o Brasão Imperial de Maioral, como a obra Saravá Exu, Editora Espiritualista, 1982, quarta edição.
[4] N.A. Molina. Antigo Livro de São Cipriano: o Gigante e Verdadeiro Capa de Aço. LivroPostal Editora, 2010, reedição, pp. 122.
[5] O termo tantra tangencial é um conceito cunhado por Kenneth Grant (1924-2011) e se refere à interação entre diferentes planos de realidade e suas manifestações sutis no mundo físico através da prática mágica. Grant descreve essa ideia como uma extensão da magia sexual, onde o praticante não apenas busca a fusão direta com entidades ou forças cósmicas, mas também explora as intersecções periféricas e inesperadas que surgem como efeitos colaterais das operações mágicas.
O tantra tangencial sugere que, ao invés de uma abordagem linear e controlada da magia, os praticantes podem experimentar efeitos mágicos que emergem de ângulos indiretos ou tangenciais à intenção original. Grant argumenta que esses fenômenos resultam da interpenetração de diferentes zonas ou éteres das forças astrais, criando uma rede complexa de interações que podem se manifestar na vida cotidiana, nos sonhos e em estados alterados de consciência.
Esse conceito está relacionado a outro conceito também criado por Grant, a perichorese astral, ideia central na sua obra, que descreve como diferentes níveis de realidade e consciência se entrelaçam e se influenciam mutuamente. No contexto do tantra tangencial, essa interpenetração ocorre de forma imprevisível, sugerindo que a prática mágica pode levar a descobertas inesperadas e a estados de consciência ampliados, muitas vezes além da compreensão imediata do magista.
Grant associa o tantra tangencial à figura de Hécate, a deusa das encruzilhadas, simbolizando a capacidade de acessar múltiplos caminhos simultaneamente e explorar as interconexões entre o consciente e o inconsciente, o mundano e o divino. Veja Kenneth Grant. Hecate’s Fountain. Starfire, 1992.
Gostaria de saber a relação entre a árvore qliphothica e a quimbanda, tanto no contexto dos túneis como das esferas
Estará nova obra em curso nos apresentando o desenvolvendo deste paradigma mágico-diabólico ?