
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago
Os pontos riscados ou zimbas que utilizamos na Quimbanda têm origem na cultura banto, diferente do que propõem alguns autores que supõem que sua origem está conectada as assinaturas dos espíritos dos grimórios europeus, chamadas de cabalá na cultura da macumba. A palavra zimba é um termo congo-angolano que denota a abertura de um espaço ritual por meio de demarcações e consagrações mágicas. Costuma-se entender as zimbas como signos ou sigilos na forma tridentes, cruzes, espirais, flexas, linhas retas, círculos, ondas, estrelas e todo tipo de símbolos astrais, labaredas, setas etc. utilizados para convocação de entidades praeter-humanas na forma de espíritos ancestrais, divindades e encantados de todo tipo. Neste sentido, são marcações simbólicas que abrem portais de ingresso e egressos dessas entidades, permitindo sua manifestação no plano material ou reino da geração. Essa técnica magística da cultura banto utilizada pelos ngangas (sacerdotes, curandeiros e feiticeiros) congo-angolanos, foi preservada pela cultura da macumba e todos os cultos e sub-cultos que dela derivam, como a Umbanda e a Quimbanda modernas. Inúmeros cultos afro-diaspóricos nas Américas herdaram essa tecnologia mágica da cultura banto, como as firmas (assinaturas) no Palo Santo cubano, ou os vevés do Vodu haitiano para acesso aos voduns etc.

É somente nos pontos riscados associados a Quimbanda que é possível ver uma influência das assinaturas dos espíritos demoníacos dos grimórios, em especial o Grimorium Verum. Na verdade, hoje é possível dizer que a Quimbanda aperfeiçoou a corrente fáustico-cipriânica mágico-noturna do Grimorium Verum, sendo a primeira tradição mágica associada ao que chamamos de a nova síntese da magia, como demonstrei no Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia. Isso ocorre porque foi a Quimbanda a tradição de feitiçaria brasileira que mais se associou ao Ocultismo europeu, em um primeiro momento, e americano em um período mais recentemente do desenvolvimento das vertentes. Portanto, é possível ver signos astrológicos, herméticos, alquímicos e letras hebraicas ao estilo dos pantáculos de A Chave Maior de Salomão nos pontos riscados dos Gangas da Quimbanda – como o Brasão Imperial do Chefe Império Maioral –, muitas vezes associados diretamente a selos de demônios do Grimorium Verum e da Goécia de Salomão.
Nos meus dois primeiros livros sobre Quimbanda, o segundo volume do Daemonium e o Ganga, ambos com o subtítulo a Quimbanda no Renascer da Magia, demonstro a profunda conexão ancestral que existe entre a Quimbanda e a magia e demonologia dos europeus. A intensão destes dois livros é demonstrar como a Quimbanda pode revitalizar a prática da magia cerimonial dentro de um movimento que ficou conhecido como grimoire revival, que traduzo livremente como o renascer da magia dos grimórios, cujo objetivo é revitalizar a prática da magia dos grimórios com tecnologias mágicas de culturas afro-diaspóricas nas Américas, mas também de culturas xamânicas como técnicas de êxtase através de plantas de poder. Desse movimento nasce a nova síntese da magia, que trato no terceiro volume do Daemonium.

Na cultura mágica da macumba, as zimbas compreendidas como símbolos mágicos, constituem um dos aspectos essenciais do trabalho magístico, o fazer macumba, propriamente dito. Então as zimbas podem ser i. marcas rituais riscadas no chão, em algum tronco, no piso de um templo; ii. símbolos sagrados de conexão com espíritos ancestrais, deuses ou encantados que servem como portais de ingresso e egresso; iii. signos para manipulação e projeção de força mágica; iv. signos para proteção e fechamento do corpo ou; v. signos para selar pactos com espíritos, abrir e fechar caminhos, unir ou separar casais etc. A zimbas são agregados outros elementos, condensadores fluídicos ou agentes mágicos como oferendas, sangue e partes de animais sacrificados, bebidas destiladas, feitiços etc. Na metalinguagem da Quimbanda, as zimbas como pontos riscados são, portanto, chaves de ativação mágica ou chaves de acesso mágico.
Dessa forma, não são as assinaturas dos espíritos dos grimórios os ancestrais diretos dos pontos riscados da Quimbanda. Existe a influência destes nos pontos riscados, mas não constituem sua origem. Esta, por outro lado, vem das zimbas da cultura religiosa congo-angolana, que funcionam como um sistema de comunicação espiritual, convocação e controle de entidades praeter-humanas. Essa influência da cultura banto continua viva nos terreiros e templos de Quimbanda, demonstrando, como sempre coloco ênfase, que se trata da cultura pano-de-fundo da Quimbanda.
No entanto, um dos aspectos mais importantes das zimbas dos ngangas congo-angolanos que herdamos na Quimbanda passa muitas vezes por desapercebido. Comumente encontramos na literatura popular de Quimbanda as zimbas como sinônimo de pontos riscados. Embora essa compreensão esteja correta, devidas as proporções de aculturação e miscigenação cultural, ela está incompleta, porque zimba vai muito além da estrutura do ponto riscado, e envolve uma complexa ação magística até o traçado dele com a pemba, o giz encantado com o qual riscamos os pontos cantados no chão. Para explicar isso, eu escolho um dos muitos temas associados a esta matéria, que é a mpemba, termo congo-angolano que origem a palavra pemba.

Na cultura religiosa congo-angolana, mpemba pode ser: i. a cor branca, que representa pureza e ancestralidade, indicando, portanto, o mundo espiritual e a própria manifestação da ancestralidade; ii. o pó branco utilizado para convocações de entidades ancestrais praeter-humanas e consagrações de fetiches; iii. na dikenga, representa a terra dos mortos ou o mundo dos ancestrais, logo abaixo de kalunga, o limiar que separa a legião dos vivos (nza yayi) da legião dos mortos (mpemba kalunga); iv. a força de conexão entre os vivos e os mortos, mas também o próprio equilíbrio que se estabelece entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos.
Na dikenga, o limiar que representa a separação entre o mundo dos vivos e dos mortos é, também, a entrada para o Submundo da legião dos mortos (npemba kalunga). Essa divisão é na forma de uma linha d’água, porque a água representa um meio de comunicação entre esses dois mundos. Essa é uma compreensão universal da feitiçaria, de que a água pode servir como portal de acesso ao mundo dos mortos. Neste contexto, a kalunga é o grande oceano invisível que separa a existência física da espiritual. Na Quimbanda, também neste sentido técnico do culto, a kalunga representa o limiar e o meio de comunicação com os Gangas, moradores da mpemba kalunga, que aqui mapeamos e estruturamos como os Reinos do Chefe Império Maioral. No que tange a prática da zimba associada a essa ideia teológica e metafísica, fabricar e consagrar o pó da pemba, manipulá-lo no contexto ritual, é ter o poder de abrir um portal de acesso para o mundo espiritual, o mundo dos ancestrais.

Então entenda que zimba é muito mais que um ponto riscado, mas um fundamento que capacita o kimbanda a manipular um poder de conexão entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Uma das maneiras pelos quais ele o faz é através do uso magístico da pemba, que pode ser: i. criar um portal de acesso através do risco do ponto riscado; ii. no processo iniciático, vincular o Exu no seu assentamento, mas também vincular a força mágica da Quimbanda na alma do kimbanda, assim como vincular a força mágica dos Gangas em seus fetiches de culto diversos; iii. purificação do corpo físico e psíquico para fins de cura, consagrações mágicas diversas, fortalecimento da conexão com os ancestrais, proteção, apaziguamento, afundamento ou afastamento de Exus negativados, égún obsessores (mortos sem descanso) e kiumbas. Assim, a zimba constitui o conhecimento e a aplicação fundamentada disso tudo.
A mpemba, dessa forma, é um poder mágico manipulado pelo kimbanda através da pemba para conectar, ligar e ativar as forças ancestrais da Quimbanda. A pemba, portanto, não é só um giz. Quando corretamente preparada, ela torna-se um instrumento mágico de poder, proteção e conexão com os espíritos. Dessa forma, associando os pontos riscados a ideia banto de zimba, toda uma estrutura magística envolve o tema, para muito além do ponto em si. Assim é correto dizer que, na Quimbanda – assim como ocorre com os padês – a zimba é um sistema de magia e comunicação com os espíritos.
As zimbas da cultura religiosa congo-angolana, constituindo i. um tipo de geometria sagrada; ii. A marcação de espaços rituais limiares entre os vivos e os mortos; iii. a ativação mágica de fetiches diversos como amuletos, anéis, patuás, firmezas e assentamentos; iv. proteção dos espaços rituais e fechamento do corpo, são a fonte por trás dos pontos riscados na Quimbanda, e elas dependem – assim como a própria Quimbanda – da dikenga como pano de fundo cosmológico.

A dikenga é um cosmograma da cultura banto, fundamentalmente do povo bakongo, e representa o pano de fundo cosmológico de quase todas as culturas religiosas afro-diaspóricas nas Américas. Trata-se de um símbolo circular que representa i. os ciclos da vida; ii. a dualidade do mundo dos espíritos vs mundo material e a conexão entre eles. No contexto de nossa discussão, este cosmograma dos bantos representa a estrutura da geometria sagrada que dá sentido aos pontos riscados da Quimbanda. É por meio da compreensão dessa estrutura que o kimbanda manipula os fluxos de forca ódica dentro dos pontos riscados, imprimindo-os na luz astral, o corpo de Maioral.
Como um cosmograma, a dikenga é apresentada na forma de um círculo dividido por uma cruz, formando quatro quadrantes que representam os estágios do ciclo da existência material: i. leste (musoni), o nascimento e a aurora da vida; ii. norte (kala), a juventude e a força vital; oeste (luvemba), a morte e a transição para o mundo espiritual; sul (tukula), o renascimento como uma alma deificada no Submundo ou o retorno ao mundo dos vivos. O centro da cruz simboliza o ponto de equilíbrio, a comunicação ou encruzilhada entre os mundos. Essa cosmologia está enraizada nos conceitos da ancestralidade, reencarnação, deificação, manipulação de forças mágicas e a presença dos espíritos entre os vivos. Na Quimbanda, todo este simbolismo encerrado pela dikenga está representado na frase Solve et Coagula nos braços de Baphomet, porque absolutamente tudo no reino sub-lunar é regido por essa fórmula mágica cosmológica: tudo nasce, morre e renasce.
O traçar dos pontos riscados na Quimbanda traz toda essa herança cultural e hierática. Riscados com pembas, eles: i. abrem portais entre mundos, permitindo o ingresso e egresso de entidades praeter-humanas; ii. quando alocados em determinados locais no templo ou nos pontos de força, organizam magicamente o espaço ritual, irradiando uma geometria sagrada adequada ao trabalho mágico e linha do Ganga; iii. representam ciclos existenciais e a conexão que se estabelece com os ancestrais por meio de entrecruzamentos mágicos; iv. a conexão com as forças da natureza e poderes do Cosmos. A própria ideia de encruzilhada, central na metafísica cosmológica banto por meio da dikenga, se reflete no traçar do ponto riscado na Quimbanda, e no fenômeno sobrenatural da possessão divina, onde o muntu (ideia de homem nesta cosmovisão congo-angolana) é a própria encruzilhada por onde a entidade praeter-humana se manifesta.
O presente texto é um excerto de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, oferecido como material de apoio as aulas em vídeo para os assinantes do Instagram.
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