Por Táta Nganga Kamuxinzela
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A gnōsis no Corpus Hermeticum (Livro IV, Verso 6) é estabelecida como o Conhecimento da Inteligência, i.e. o nous, possibilitando a contemplação do que é divino, a compreensão da natureza de Deus. Esse conhecimento é obtido por meio da contemplação espiritual e da ascensão da alma. Ele transcende o saber racional e conecta o indivíduo diretamente ao nous (mente divina), permitindo a compreensão de sua origem divina e de seu papel no Cosmos. No Corpus Hermeticum a gnōsis é compreendida como um dom divino, uma iluminação que revela as leis cósmicas e a unidade entre o homem e o divino. Esse processo envolve purificação interior e a harmonização com as forças do Cosmos, conduzindo à apoteose ou deificação. No gnosticismo, a gnōsis é igualmente um conhecimento esotérico e salvífico, mas se distingue por sua ênfase em revelar a verdadeira natureza do mundo e do sofrimento humano. Para alguns gnósticos de visão dualista (porque existem àqueles não-dualistas), o mundo material é frequentemente visto como uma criação imperfeita, ou até maligna, feita por um Demiurgo. A gnōsis, nesse contexto, é o despertar da centelha divina presente na alma humana, que está aprisionada no mundo material. Essa revelação permite ao indivíduo transcender a ilusão material e retornar à plenitude divina (pleroma). A gnōsis aqui é frequentemente associada ao desvelar de segredos ocultos e à libertação espiritual. No platonismo teúrgico a gnōsis não é muito diferente da interpretação do hermetismo alexandrino, salvo que no processo o teurgo se veste com a capa dos deuses estando no reino da geração, recebendo deles a sua luz e obtendo deles o conhecimento direto, para muito além do construto pensante da mente; dessa maneira, se aproximando das noções teológicas e soteriológicas do tantra śaiva da Caxemira onde o divino está entranhado nas profundezas da matéria: em ambos os casos o conhecimento obtido pela gnōsis busca a transcendência total da dualidade.
Na Quimbanda o conceito de gnōsis se estende sobre muitos processos mágicos, teológicos (ou demonológicos), soteriológicos e escatológicos do culto; por esse motivo utilizamos o conceito de Gnōsis de Exu para dar explicação, i.e. fundamentação, a estes inúmeros processos. Então ele é utilizado para compreensão dos símbolos hieráticos do culto, dos fundamentos de feitiçaria, da metafísica cosmológica e cosmogônica da Quimbanda etc. Por exemplo, o conceito de prognōsis que ocorre na mantikē (divinação oracular por meio da possessão divina), refere-se à capacidade de antecipar ou compreender eventos futuros por meio de uma conexão direta com os deuses. Essa antecipação não é meramente um exercício de adivinhação do futuro, mas resulta de um alinhamento espiritual profundo entre o teurgo e os deuses, levando-o ao conhecimento da atividade (energeia) fundamental deles. A prognōsis é alcançada através de rituais teúrgicos e do contato com os daimōnes ou deuses, que revelam verdades ocultas sobre o destino e o funcionamento cósmico. A ideia central é que, ao elevar a alma aos reinos superiores, o teurgo acessa um conhecimento além do tempo linear, permitindo-lhe vislumbrar o futuro ou compreender a ordem divina por trás dos eventos. Na Quimbanda este mesmo fenômeno nós damos o nome de Gnōsis de Exu e, tal qual no platonismo teúrgico e no tantra śaiva, na Gnōsis de Exu o kimbanda busca a transcendência da dualidade, representada hieraticamente pela ideia conceitual do Chefe Império Maioral, assim como é Bhāirava no tantra.
Outro exemplo: a estética diabólica da Quimbanda revela uma Gnōsis de Exu, demonstrando a natureza indômita e visceral da feitiçaria ctônica do culto. O imaginário diabólico e infernal da Quimbanda se configura como uma ruptura simbólica e teológica com o cristianismo hegemônico, utilizando elementos demonizados pela tradição judaico-cristã para afirmar uma espiritualidade de resistência e transformação. Este imaginário, marcado pela figura de Exus e Pombagiras associados ao Inferno, não deve ser interpretado literalmente, mas como um arquétipo que abraça as forças marginais, caóticas e ctonianas da existência. Ele ressignifica conceitos como pecado, transgressão e rebeldia, transformando-os em símbolos de poder, autonomia e liberdade espiritual. Na Quimbanda, a iconografia infernal reflete a integração de forças primordiais, ancestrais e telúricas, desafiando as dicotomias dualistas entre bem e mal, céu e inferno, e reivindicando um espaço sagrado para aquilo que foi historicamente excluído ou reprimido pelas tradições monolátricas. Assim, o imaginário infernal não representa uma adesão ao mal, mas uma reapropriação de símbolos de subversão como ferramentas de emancipação e transcendência espiritual.
Exerto da Revista Nganga No. 12, editorial.
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