Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Recebi essa indagação ontem e fiquei concatenando as ideias. Não é possível afirmar com certeza se ouve influência religiosa egípcia na goécia grega no período anterior ao platonismo e cultura helênica, período este na Antiguidade tardia onde diversas ideias e cultos religiosos orientais tiveram sua inserção no contexto greco-romano. Fustel menciona sobre isso que
é impossível entrar aqui nos pormenores dos esforços que fizeram, dos meios que imaginaram, das dificuldades ou recursos que se lhes apresentaram. Esse trabalho, durante muito tempo individual, constituiu por muito tempo segredo de cada inteligência, do qual somente podemos perceber os resultados. Às vezes uma família plebeia constituía um lar, ou ousando acendê-lo por si mesma, ou buscando em outros lugares o fogo sagrado; então passou a ter seu culto, seu santuário, sua divindade protetora, à imagem da família patrícia. Outras vezes o plebeu, sem possuir culto doméstico, teve acesso aos templos da cidade; em Roma, os que não tinham lar e, consequentemente, não tinham festas domésticas, ofereciam seu sacrifício anual ao deus Quirino. Quando a classe superior persistia em afastar de seus templos a classe inferior, esta passou a edificar templos próprios; em Roma já possuía um sobre o Aventino, consagrado a Diana, e o templo consagrado à pureza da plebe. Os cultos orientais que, a partir do século sexto, invadiram a Grécia e a Itália, foram acolhidos prazerosamente pela plebe; eram cultos que, como o budismo, não faziam acepção nem de castas, nem de povos. Muitas vezes, enfim, viu-se a plebe adotar objetos sagrados análogos aos deuses das cúrias e das tribos patrícias. Assim o rei Sérvio levantou um altar em cada bairro, para que a multidão tivesse ocasião de oferecer sacrifícios; do mesmo modo, os pisistrátidos levantaram hermas nas ruas e praças de Atenas. Esses foram os deuses da democracia. A plebe, outrora multidão sem culto, teve daí por diante suas cerimônias religiosas e suas festas, podia rezar; era o bastante, em uma sociedade em que a religião constituía a dignidade do homem.[1]
A maioria dos plebeus na cultura greco-romana eram bastardos ou estrangeiros, portanto, sem direito a cidadania ou participação da religião, tanto na Grécia, quanto em Roma. Considerava-se que o plebeu era tão impuro, que sua presença nos ritos sacrificiais aos deuses, poderia corromper todo o ritual. Não era permitida nem a sua presença como espectador. Estes mesmos plebeus, por outro lado, sem direitos à cidadania, participação na religião, ou propriedade e a família, começaram a ascender socialmente por meio de feitos militares, porque a pólis começou a depender deles para compor seus exércitos. E a partir disso os plebeus começaram a reivindicar direitos.
— O plebeu é estrangeiro e, consequentemente, somente sua presença já torna impuro um sacrifício. Ele é rejeitado pelos deuses. Entre o plebeu e o patrício há toda a distância que a religião pode colocar entre dois homens. A plebe é uma população desprezada e abjeta, fora da religião, fora da lei, fora da sociedade, fora da família. O patrício não pode comparar essa existência senão à do animal, more ferarum. O contato do plebeu é impuro.[2]
A goécia nasce quando os plebeus começaram a imaginar e a fabricar práticas religiosas ancestrais que eram proibidas pelo Estado aristocrata, que só permitia o culto realizado pelos eupátridas na Grécia e pelos patrícios em Roma. Somente essa classe aristocrata detinha o poder de culto religioso, pois pensavam participar da linhagem ancestral dos deuses. Os plebeus não possuíam sangue, quer dizer, não participavam da ancestralidade dos deuses.
Como prática mágico-religiosa, a goécia nasce da observação e absorção das técnicas religiosas utilizadas pelos aristocratas e por àquelas derivadas dos -povos estrangeiros, orientais. As raízes religiosas gregas são derivadas dos cultos a ancestrais. Muitas das divindades eleitas como forças da natureza eram originalmente espíritos dos mortos (nekydaimon - νεκυδαιμον). A partir das concepções religiosas ancestrais da Grécia, junto as técnicas mágico-religiosas da religião aristocrata, e da influência mágico-cultural dos povos do Oriente, começam a nascer as práticas religiosas que hoje classificamos como goécia. Humberto Maggi destaca a influência dos povos do Oriente na formação das concepções mágico-religiosas que deram estrutura as práticas da goécia:
Até esse período, os mortos eram enterrados na propriedade da família, mas o renascimento da cultura grega que começa mesmo na era de Homero (depois dos séculos que se seguiram ao colapso da civilização micênica) levaram ao surgimento da pólis, a grande cidade, e a pólis forçou uma separação entre os vivos e os mortos, colocando os enterros fora de seus muros e restringindo severamente as práticas funerárias. Ao mesmo tempo, a intensificação do comércio colocou os gregos em maior contato com as culturas do Oriente Próximo, onde se acreditava que os mortos tinham muito mais autonomia e a capacidade de prejudicar os vivos. Esse distanciamento entre vivos e mortos e as ideias trazidas pelos navegantes, pelos comerciantes, e disseminadas nas novas colônias no leste do mar Egeu, criaram novos temores em relação aos mortos e, com isso, surge o goes grego para oferecer serviços necromantes para aqueles que acreditavam estarem sendo perturbados pelos mortos.[3]
O termo goécia vem do grego goētes, que se traduz como feiticeiro, bruxo, encantador ou adivinho. O singular goēs tratava-se de um especialista em lidar com os mortos e sua arte foi chamada de goēteia. Esses termos foram elaborados a partir da raiz goos, que significa chorar, lamentar, porque as conjurações aos mortos nesse período clássico grego, Séc. V a.C., se tratavam de lamentações fúnebres. Essas lamentações eram executadas diretamente na cova ou tumba dos falecidos e a eles eram oferecidos sacrifícios e oferendas como libações de mel e leite. Com o tempo a prática da goécia grega foi associada a convocação não só de mortos que poderiam agir para auxiliar os vivos, os nekydaimones, mas também a toda sorte de espíritos ctônicos sob a autoridade mágica de deusas como Hécate ou Serápis. Na interpretação cristã dessa prática de feitiçaria grega, a goécia então passou a ser considerada uma prática ainda mais ilícita associada a todo tipo de demônios.[4]
Como uma prática religiosa a goécia via todos os participes do Cosmos como espíritos ancestrais, i.e. deuses e antepassados eram diretamente conectados. Na tumba de um familiar poderia ser encontrada a inscrição theos chthonios (θεος χθονιος), significando que o morto ali enterrado jaz como uma divindade ctoniana.
Essa espécie de apoteose não era privilégio dos grandes homens; não se faziam distinções entre os mortos. Cícero afirma: «Nossos ancestrais quiseram que os homens que deixaram de viver fossem contados entre os deuses.» — Não era necessário ter sido um homem virtuoso; o mau tornava-se deus tanto quanto o homem de bem; apenas continuava, nessa segunda existência, com todas as más inclinações que tivera na primeira. Os gregos de boa mente davam aos mortos o nome de deuses subterrâneos. Em Ésquilo um filho invoca deste modo o pai morto: «Ó tu, que és um deus sob a terra.» — Eurípides diz, falando de Alceste: «Junto a seu túmulo o viandante há de parar, e dizer: Esta é agora uma divindade feliz.» — Os romanos davam aos mortos o nome de deuses manes: «Prestai aos deuses manes as honras que lhes são devidas — diz Cícero — pois são homens que deixaram de viver; reverenciai-os como criaturas divinas.» Os túmulos eram os templos dessas divindades. Assim exibiam eles, em latim e em grego, a inscrição sacramental: Dis Manibus, theõis ethoníois. — Era lá que o deus permanecia sepultado: Manesque sepulti — diz Virgílio. Diante do túmulo havia um altar para os sacrifícios, como diante do túmulo dos deuses.[5]
Na primeira citação de Fustel, acima, ele fala sobre as hermas, pilares quadrados reverenciados como Hermes, o psicopompo que encaminhava as almas ao Submundo, e que acabou por se tornar o mensageiro entre os homens e todos os deuses. No alto deste pilar costumava-se erigir a cabeça de alguma divindade, como Zeus por exemplo. A partir dali um Hermazeus, o mensageiro entre os homens e Zeus. As oferendas e sacrifícios eram depositadas ao redor da herma. Esta, por sua vez, possuía quatro lados significando o poder de Hermes alcançando as quatro dimensões do espaço. Nos termos da cabalá crioula,[6] as hermas eram assentamentos públicos itifálicos as divindades ancestrais dos plebeus, desenvolvidas, muito provavelmente, das hérmaion, um monte de pedras dedicado a Hermes colocado nas estradas e encruzilhadas, porque Hermes era também o patrono dos viajantes. Junito Brandão diz:
Hermes, deus dos pastores, protetor dos rebanhos, é a divindade por excelência da sociedade campônia aquéia. Pois bem, enriquecido pelo mito cretense, Hermes tornou-se mais que nunca o «companheiro do homem». Deus da pedra sepulcral, do umbral, do hérmaion e das «hermas», guardião dos caminhos, protetor dos viajantes, cada transeunte lançava uma pedra, formando um hérmaion, literalmente, lucro inesperado, descoberta feliz, proporcionados por Hermes e, assim, para se obterem «bons lucros» ou agradecer o recebido, se formavam verdadeiros montes de pedra à beira dos caminhos. Possuidor de um bastão mágico, o caduceu, com que tangia as almas para a outra vida, tornou-se o deus psicopompo, quer dizer, condutor de almas, sem o que estas não poderiam alcançar a eternidade e felicidade que a religião cretense prometia aos iniciados. Deus indo-europeu dos pastores, cuja lenda estava ligada ao carneiro de velocino de ouro, «verdadeiro talismã das riquezas aquéias e garantia de fecundidade», Hermes transformou-se no mensageiro dos imortais do Olimpo, em deus psicopompo e em deus das ciências ocultas.[7]
Assim, a goécia grega, reverenciava deuses e antepassados como ancestrais; não havia uma distinção precisa entre deuses e mortos; todos eram divindades. Por causa dessa indistinção entre deuses e ancestrais, costuma-se pensar na goécia apenas como necromancia, quando, em verdade, goécia trata-se da comunicação com todo tipo de espírito ou divindade, um estado de ser e modo de viver em comunicação com o mundo espiritual que, na Antiguidade, era o mesmo mundo dos mortos.
Pode ser que a goécia grega tenha tido alguma influência egípcia a partir do que Fustel define como cultos orientais pela intensificação do comércio que colocou os gregos em maior contato com as culturas do Oriente Próximo, como diz Maggi. O Egito era Oriente Próximo...
NOTAS:
[1] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Editora das Américas S.A. 1961, pp. 168. Os itálicos são meus.
[2] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Editora das Américas S.A. 1961, pp. 168.
[3] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 23.
[4] Fernando Liguori. Daemonium (Vol. II). Clube de Autores, 2022, pp. 81. Veja Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Autores, 2020. Veja também Sarah Iles Johnston. Restless Dead: Encounters between the Living and the Dead in Ancient Greece. University of California Press, 1999. Para o entendimento de goécia como Religião Antiga veja Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Martin Claret, 2009.
[5] Fustel de Coulanges. A Cidade Antiga. Editora das Américas S.A. 1961, pp. 16.
[6] O termo cabalá crioula, cunhado por mim em 2018, representa a sabedoria oculta (a arte arcana da magia) transmitida secretamente, de lábios a ouvidos, derivada dos cultos mágico-religiosos nascidos no contexto da diáspora africana nas Américas e da miscigenação mágico-cultural crioula entre os povos negros, brancos e ameríndios. A cabalá crioula é o termo que uso para me referir aos sistemas de magia derivados daquilo que Jake Stratton-Kent chama de a nova síntese da magia, como a Quimbanda, o Palo e o Vodu. Veja o terceiro volume do Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia. Veja também Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula.
[7] Junito de Souza Brandão. Mitologia Grega Vol. I. Editora Vozes, 2015, pp. 72.
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