A TELESTIKĒ NA TEURGIA & NA CABALÁ CRIOULA
- Fernando Liguori
- 21 de mar.
- 9 min de leitura

Série: Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br
O iniciado é divinizado como uma estátua hierática por meio de ritos sacramentais e visualizações contemplativas. [...] O falecido que foi preparado pelos ritos funerários sagrados – como no Egito, ou mesmo na terra natal de Aquiles e Pátroclo, Ftia – é considerado uma estátua animada, e a estátua é considerada uma múmia; ambos são formas transfiguradas e instrumentos dos poderes divinos de heká.[1]
Os estudos sobre a telestikē (τελεστική) na teurgia e na religião grega antiga revelam uma prática sofisticada de animação de estátuas e consagração de objetos materiais ou seres humanos como veículos da presença divina. No platonismo teúrgico, especialmente segundo Jâmblico, telestikē não se limita a um ato simbólico ou estético, mas é uma operação ontológica real, em que o divino é literalmente atraído e instalado em um receptáculo – seja uma estátua (agalma) ou o corpo humano.
Radcliffe Edmonds define a telestikē como a perfeição ou purificação das coisas mortais e materiais.[2] Ela pode ter dois objetivos complementares: i. a animação de estátuas – transformando imagens em presenças vivas e receptáculos reais de deuses; ii. a divinização do ser humano, cujo corpo é preparado como se fosse uma estátua viva através de ritos sacramentais e visualizações contemplativas.[3]
Segundo Algis Uždavinys (1962-2010),[4] o iniciado é divinizado como uma estátua hierática, sendo seu corpo preenchido por símbolos, phármaka (drogas, encantamentos, ervas sagradas, plantes de poder etc.), sunthēmata (sinais e elementos naturais ou produzidos considerados divinos) e fórmulas verbais que têm poder mágico real. Essa concepção transforma o corpo e o culto em expressões de heká,[5] ou seja, do poder mágico divino.
Nos Oráculos Caldeus, encontramos a aplicação prática da telestikē, como no ritual de consagração de uma estátua de Hécate, em que se utiliza arruda selvagem, mirra, incenso e animais pequenos. Esses elementos funcionam como synthēmata e symbola, ativando a presença da deidade no fetiche.[6]
No Egito e no helenismo tardio, como demonstrei no Wanga, a prática se entrelaça com ritos de necromancia, iniciação funerária e magia ritualística. A telestikē, nesse contexto, é vista como um tipo de teurgia kataphática – em oposição à anagógica (ascensional) – pois busca trazer o divino para baixo, para o mundo sensível, ao invés de elevar a alma aos céus.
Jâmblico interpreta essa operação como um meio pelo qual o divino desce para se unir à alma ainda no corpo. A alma, nesse processo, é transformada em um recipiente purificado e sagrado, dotado de um ochēma-pneuma capaz de receber e refletir a luz divina. Essa união não é apenas simbólica: o corpo ou a estátua são de fato ensoulados – tornam-se empnoös (cheios de sopro vital), produzindo o augoeides da alma.
A telestikē, portanto, é um dos pilares do platonismo teúrgico: uma alquimia sacra da matéria, que transforma o sensível em presença do inteligível, o mortal em suporte do divino. É a arte pela qual deuses habitam imagens, e humanos tornam-se imagens vivas dos deuses.
Esse tema é em demasia precioso. Ele é o cerne deste livro, que nasceu de um trabalho sobre a telestikē no hermetismo alexandrino em comparação com os assentamentos telésticos[7] da Quimbanda, a morada dos Gangas do culto.
Como as técnicas de magia e feitiçaria são universais, a arte de confeccionar os assentamentos telésticos dos Gangas da Quimbanda não é diferente da arte de confeccionar as imagens animadas no platonismo teúrgico e hermetismo alexandrino. Abaixo um excerto de meu trabalho inicial sobre a telestikē:
A telestikē é um termo utilizado no contexto das práticas religiosas da Grécia helenística, particularmente no platonismo teúrgico. A telestikē refere-se ao ato de aperfeiçoar ou purificar coisas materiais, incluindo a alma humana, com o objetivo de espiritualizá-las e aproximá-las do divino. Envolve, portanto, um processo de refinamento e elevação, buscando transformar o material em espiritual. Esse processo pode ser aplicado a objetos físicos, como estátuas, que são consagradas ritualmente e imbuídas de poder divino, tornando-se representações terrenas do divino. Mais importante, telestikē diz respeito à purificação da alma humana, permitindo-lhe transcender suas limitações materiais e alcançar a união com o divino.
A telestikē é frequentemente contrastada com anagogē, que se refere especificamente à ascensão ou elevação da alma a reinos espirituais superiores, os planos de luz e perfeição. Enquanto ambos os termos estão relacionados ao avanço espiritual, telestikē enfatiza a purificação e transformação do material também, enquanto anagogē foca na jornada ascendente da alma. As fontes sugerem que ambos os processos são interconectados e necessários para alcançar a verdadeira realização espiritual. No contexto da cabalá crioula, apenas a telestikē faz referência as práticas de vivificação de fetiches quanto a deificação catabática da alma.
O sacrifício, em particular, é visto como uma ferramenta poderosa para purificar tanto objetos materiais quanto a alma humana. Outras técnicas teúrgicas como orações, invocações e o uso de objetos simbólicos, também são empregadas para facilitar o processo de divinização.
A criação de estátuas animadas, imbuídas com o poder das divindades, exemplifica a aplicação de telestikē a objetos físicos. Essas estátuas serviam como pontos focais para o culto e podiam transmitir oráculos, conectando os reinos humano e divino. No contexto da Quimbanda, o assentamento teléstico é uma zona de poder que abriga representações dos espíritos Ganga, e desempenha uma função similar, atuando como um altar vivo onde os espíritos são nutridos e empoderados por meio de oferendas e rituais.
O conceito de telestikē reflete uma visão de mundo onde os reinos material e espiritual estão interconectados e onde a transformação do material é essencial para o avanço espiritual. A telestikē incorpora a ideia de que o mundo material não é inerentemente mau ou corrupto, mas pode ser refinado e elevado para se tornar um canal de poder divino.[8]
A telestikē é a expressão máxima de uma verdade universal: a magia, em suas formas mais arcaicas ou sofisticadas, é sempre a arte de tornar o invisível presente, de fazer habitar na matéria a potência do espírito. Seja nas câmaras silenciosas dos templos de Heliópolis, nos cultos de Hécate da Ásia Menor, nas oficinas teúrgicas de Alexandria, ou nas encruzilhadas de terra batida da Quimbanda no Brasil, a operação é a mesma – reunir, com precisão ritual e intenção sagrada, os elementos que transformam o mundo sensível em morada dos deuses. O corpo torna-se templo, a estátua torna-se deidade viva, o assentamento torna-se trono do Exu. Assim, a prática teléstica revela o princípio eterno da magia: não há separação real entre céu e terra, espírito e matéria, visível e invisível. Toda tradição que conhece a arte da consagração – da vivificação simbólica e energética da divindade – participa, em alguma medida, da mesma fonte ancestral. E a Quimbanda, com seus assentamentos vivos e seus pactos ctônicos, é herdeira legítima desse saber universal, que transforma o barro, o ferro e o sangue em veículos dos deuses glorificados.
Nota: este texto é um excerto de meu livro ainda no prelo, Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula. Sua publicação é feita como um Suplemento de Estudo aos iniciados da família Cova de Cipriano feiticeiro.
NOTAS:
[1] Algis Uždavinys citado em Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2024, pp. 131-2.
[2] Radcliffe G. Edmonds III. Drawing Down the Moon: Magic in the Ancient Greco-Roman World. Princeton University Press, 2019, pp. 316.
[3] Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2024, pp. 145.
[4] Algis Uždavinys (1962–2010) foi um filósofo, historiador da filosofia e professor lituano, reconhecido internacionalmente por seu trabalho na recuperação do simbolismo e da dimensão espiritual da filosofia antiga. Doutor em Filosofia e especialista em platonismo, neoplatonismo, hermetismo e tradições iniciáticas, Uždavinys dedicou sua carreira a investigar a filosofia como uma via de ascensão espiritual, enfatizando a unidade entre pensamento, ritual e cosmologia. Traduziu importantes obras do corpus neoplatônico e islâmico para o lituano, e foi autor de livros como Philosophy as a Rite of Rebirth e The Golden Chain, que influenciaram profundamente os estudos sobre teurgia, filosofia sagrada e tradição perene. Sua abordagem integra filosofia, mitologia e religião em uma visão viva e iniciática do saber antigo, destacando-se como um dos mais brilhantes representantes da philosophia sacra no Séc. XXI.
[5] Podemos compreender o conceito de heká (também transliterado como hekate, hecatic words, ou hekhal) como um termo-chave do platonismo teúrgico associado à palavra de poder ou voces magicae – uma fórmula sagrada que atua como veículo ritual para a manifestação da presença divina e ativação das hierarquias intermediárias espirituais, como os daimones, os logoi e os parédroi (espíritos servidores).
A palavra heká deriva do vocabulário ritual egípcio e helenístico, frequentemente associada a Hécate, deusa liminar patrona da magia e feitiçaria, mas no platonismo teúrgico ela passa a designar mais diretamente o poder performativo do logos ritualizado, que serve para alinhar a alma com os princípios superiores do Cosmos. Conforme Shaw destaca em Theurgy and the Soul (Angelico Press, 2014, pp. 131), as hekás são as fórmulas proferidas ou cantadas que não apenas representam os deuses, mas que são os próprios deuses manifestos em linguagem.
As hekás são centrais nos rituais teúrgicos por operarem como chaves cósmicas que abrem os canais de comunicação entre o teurgo e as divindades, sobretudo nas invocações dos deuses, astros e daimones. Elas atuam como mediadoras entre o plano inteligível e o plano visível, tornando possível a descida (epiphaneia) dos deuses à alma do teurgo. Proclo, em sua interpretação de Jâmblico, afirma que as hekás são palavras que contêm a própria substância dos deuses, proferidas na linguagem apropriada à sua natureza (Nicolas Spanu. Proclus and the Chaldean Oracles. Routledge, 2021, pp. 82).
Dentro dos rituais de fabricação e consagração de imagens animadas, telestikē – que visam animar imagens ou estátuas com presença divina – as hekás são indispensáveis. São elas que despertam a força teúrgica da forma material, permitindo que o daimōn passe a habitar a imagem, transformando-a em agalma, um receptáculo sagrado da força mágico-espiritual dos deuses.
Em Algis Uždavinys, o papel da heká é equiparado ao do logos universal, ou seja, o discurso criativo do Demiurgo. Em rituais, a voz do teurgo, carregada pela heká, imita o verbo criador dos deuses, e por isso ela não é simbólica, mas operativa: realiza o que diz (logos poietikós).
As hekás não são inventadas pelo teurgo – elas são recebidas por revelação, tradição iniciática ou transmissão espiritual, e só são eficazes quando pronunciadas com precisão, purificação e alinhamento interior. Como destaca Sarah Iles Johnston no seu ensaio acadêmico, Magic and Theurgy (disponível on-line), essas fórmulas sagradas não operam por coerção (como a magia vulgar), mas pela ressonância e pela receptividade aos fluxos divinos que o teurgo se preparou para acolher.
No platonismo teúrgico de Jâmblico, a eficácia da heká não está no praticante, mas no ergon dos deuses que respondem a ela por sua própria bondade. A voz ritualizada serve para ativar a presença dos deuses já imanentes no Cosmos e na alma, e é por isso que a heká não é um mero som ou nome, mas uma manifestação sonora do princípio divino ao qual ela corresponde.
A heká é, na teurgia e na religião grega tardia, a expressão mágica mais elevada do verbo sagrado, análoga ao mantra na tradição hindu ou ao nome inefável nas tradições semitas, assim como nos hinos do Santo Daime ou nos pontos cantados da cabalçá crioula. Ela não simboliza, ela presencia – e seu uso teúrgico visa transformar o operador, elevar sua alma, purificar sua identidade e abrir o caminho da deificação. Nas cerimônias da cabalá crioula, o canto dos pontos têm o mesmo poder sobre a alma dos operadores ou na transformação da realidade que eles desejam. Veja Fernando Liguori. Daemonium: Curso de Filosofia Oculta. Clube de Autores, 2019.
[6] Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2024, pp. 111.
[7] Na Quimbanda, os assentamentos não são meros recipientes: são corpos vivos, animados ritualmente para conter a força mágica e divina dos espíritos Ganga. Chamá-los de telésticos é reconhecer que, assim como na antiga teurgia de Jâmblico, esses fundamentos são portais entre mundos, corpos sacralizados onde a potência espiritual se enraíza na matéria e se torna operativa. O kimbanda, como um verdadeiro teurgo afro-brasileiro, realiza a arte de encarnar o invisível no visível, transformando barro, ferro e sangue em tronos ctônicos, onde Exus e Pombagiras reinam com autoridade. Assim, cada assentamento é uma estrela caída na terra: um foco de poder, de destino e de transformação.
A palavra teléstico (do grego τελεστικός, telestikós) vem do verbo telein, que significa consagrar, realizar um rito, concluir algo sagrado ou levar algo a seu fim espiritual. No platonismo teúrgico, especialmente nos escritos de Jâmblico e seus sucessores como Proclo, um objeto teléstico é aquele que foi preparado ritualmente para se tornar um receptáculo de uma força divina ou espiritual – ou seja, animado por uma presença divina.
Um objeto teléstico (como uma estátua, imagem, pedra ou vaso) é vivificado ritualmente com o objetivo de servir como morada de uma divindade, inteligência espiritual ou daimōn, tornando-se então um ponto de contato concreto com o invisível.
[8] Fernando Liguori. A Telestikē no Hermetismo e na Quimbanda. Ensaio para o Curso de Hermetismo Tradicional do Prof. Vinícius Pimentel Ferreira.
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