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INCURSÃO DIABÓLICA

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori

Atualizado: 5 de ago. de 2024



Nos meus livros anteriores, o segundo volume do Daemonium e o Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia, bem como nas edições da Revista Nganga, comecei a me debruçar sobre duas áreas que acredito serem basilares para estudo e compreensão mais abrangentes da importância da Quimbanda no atual renascer da magia dos grimórios e a própria ideia de uma nova síntese da magia.

 

1. A Incursão Diabólica: Goécia, Demonologia & Diabologia na Quimbanda:


Nestes ensaios trato do influxo diabólico e demoníaco que ocorreu na gênese da Quimbanda como a conhecemos hoje a partir de Aluízio Fontenelle, que sincretizou os Exus com os demônios do Grimorium Verum. O plano é identificar dentro de uma temporalidade linear constatável a incursão diabólica dos espíritos do Grimorium Verum na Quimbanda e, a partir disso, demonstrar a Quimbanda como a filha mais bem sucedida da nova síntese da magia no Brasil, porque ainda existe uma ignorância generalizada acerca da influência dos grimórios, fundamentalmente àqueles derivados da Bibliothèque Bleue e aqueles derivados da feitiçaria ibérica, na identidade mágica brasileira. Jake Straton Kent diz:

 

Na Espanha e em Portugal, São Cipriano substitui o rei Salomão como herói mágico e como autor de textos mágicos. Seu Livro é um grimório popular nesses países e em suas antigas colônias, especialmente no Brasil. Tem muitas variantes e, embora bem conhecido a partir do século XIX, pode se originar de alguma forma já no século XVI. O núcleo mágico folclórico do livro é semelhante ao clássico Pow-Wows de 1820 de John George Hohman, e aos Segredos Egípcios relacionados de Albertus Magnus etc., assim como aos Segredos Sobrenaturais do próprio Verum. Segredos semelhantes são encontrados no Grand Grimoire, que de fato menciona São Cipriano em seu Prelúdio.

Algumas semelhanças são genéricas, as instruções para o feitiço de invisibilidade têm muito em comum com a versão do Verum,[1] mas ambas refletem um gênero de longa data que remonta a fontes gregas. Mais importante, o texto inclui instruções para escrever o pacto que se assemelha muito as do Verum e não parece ser genérico. Curiosamente, diz-se que algumas versões em espanhol do Livro de São Cipriano incluem hierarquias espirituais retiradas do Verum. Também é significativo que o Livro de São Cipriano seja uma característica padrão da Umbanda brasileira,[2] que pode ter ajudado na difusão dos espíritos do Verum dentro dessa tradição.[3]


 

Quando falamos em grimórios de feitiçaria europeia, existem dois gêneros, os eruditos aristocratas, e os populares folclóricos. Ambos se influenciaram mutuamente e é possível encontrar miscigenações. Esse gênero popular dos grimórios deriva do que ficou conhecido em francês como Bibliothèque Bleue (biblioteca azul), e são chamados de grimórios azuis, pelo fato de serem publicados no formato brochura com uma capa azul, de material barato e preço popular acessível. Neste gênero de grimórios entram o Grimorium Verum, o Grand Grimoire e o Honorius, dentre outros.


Três pontos importantes sobre esse gênero de grimórios franco-italianos: i. são eles que, em verdade, inauguram a ideia da palavra grimório estar associada a livros de instruções magísticas; ii. são eles os grimórios que mais se espalharam para fora da Europa e; iii. segundo Owen Davis, são eles os grimórios que mais se crioulizaram, se miscigenando com as práticas de feitiçaria ameríndia das Américas e Caribe, e com as técnicas de feitiçaria africana disaspórica. Davis diz que a colonização, a escravidão e o trabalho de imigrantes no Caribe e nas Américas geraram uma fusão fascinante e diversificada de crenças e práticas em relação à religião, magia e medicina, derivadas de europeus, africanos, asiáticos e indígenas. Ele nomeia os cultos derivados dessas fusões: o Obeah, o Quimbois, o Vodu, a Santeria, entre outros.[4] Jake Stratton-Kent diz:


O aspecto folclórico dos grimórios em ambos os casos, mas particularmente nos livros azuis, é bastante diferente. Envolve sobrevivências da goécia e, no caso do gênero azul, um renascimento da goécia. Sua natureza é essencialmente ctônica, e as relações com espíritos são realizadas em uma base bastante diferente. [...] O gênero azul obtém essa identidade através de uma variedade de meios, e nenhum deles é inteiramente responsável. Estes incluem, em primeiro lugar, a continuidade da vertente hermética dentro da tradição Salomônica, onde os daimones elementais são vistos mais positivamente [...].


Há então a questão das novas afiliações formadas pelo gênero. Enquanto os grimórios franceses desta época tinham uma influência muito além da França, o gênero do grimório impresso como um todo deveria exercer uma influência para muito além da Europa. O mais cabalístico de todos, O Livro de Moisés, certamente influenciou o Hoodoo nos Estados Unidos, mas não concerne ao São Cipriano ou às fusões goécia dentro de tradições como a Quimbanda. O primeiro é melhor ilustrado pelos grimórios ibéricos e o último pelos textos franco-italianos, como o Grimorium Verum e o Grand Grimoire. [...] Estes textos ibéricos incorporam o renascer da goécia acima mencionado, em comum com os franco-italianos da Bibliothèque Bleue. [...] Também é importante reconhecer sua influência e harmonia com as tradições vivas e prósperas no Novo Mundo.[5]

 

Jake Stratton-Kent explica que essa fusão dos grimórios populares com as tradições afro-diaspóricas e ameríndias trata-se de uma nova síntese da magia, um renascer da goécia em seu sentido amplo e pré-salomônico. Segundo ele em sua Encyclopaedia Goetica, de cinco volumes,[6] a goécia é uma tradição viva universal e que vivifica toda a magia ocidental. Uma vez que a goécia como corrente mágica vivifica os grimórios ctônicos noturnos como o Grimorium Verum, assim como os grimórios ibéricos dos quais deriva O Livro de São Cipriano, e que também permeia os diversos cultos vivos ancestrais necromântico-ctônicos, foi isso o que possibilitou essa profunda fusão entre as culturas africana, europeia e ameríndia. A Quimbanda é fruto, portanto, dessa nova síntese da magia, onde a feitiçaria crioula-ameríndia funde-se com os espíritos noturnos e sublunares do Grimorium Verum em um sistema próprio e original que supera as técnicas e tecnologias formais da magia cerimonial tradicional.

 

2. Quimbanda & Magia Cerimonial:


Uma série de ensaios que estabelece convergência entre as técnicas de feitiçaria da Quimbanda e àquelas encontradas nos grimórios noturnos nigromânticos, bem como àqueles que derivaram do hermetismo neo-alexandrino renascentista, o que se conveniou chamar de orientalismo platônico. Mas o objeto de estudo aqui se expandiu para também abarcar aspectos filosóficos, religiosos e simbólicos da área de convergência. Isso significa cruzar referências não apenas entre a Quimbanda e a tradição dos grimórios salomônicos, eruditos ou populares, mas entre a Quimbanda e culturas arcaicas da magia. Esse é o tipo de abordagem apresentada na Encyclopaedia Goetica de Jake Stratton-Kent, obra de cinco volumes tendo como eixo literário o Grimorium Verum, O Livro de São Cipriano e O Testamento de Salomão.


Inicialmente a intenção seria demonstrar equivalência de trabalho entre as técnicas de feitiçaria da Quimbanda e àquelas derivadas da magia cerimonial para o atual renascer da magia dos grimórios, apresentando a Quimbanda como a alternativa mais confiável, viável e eficiente aos magistas cerimoniais brasileiros. Os motivos, é claro, são àqueles delineados nos ensaios do tópico anterior, a incursão diabólica.


Em paralelo, esses escritos buscam apresentar a Quimbanda como uma genuína corrente mágica integrando do esoterismo ocidental, dentro da matéria de estudo Ocultismo a partir do trabalho e síntese de Aluízio Fontenelle na década de 1950, como veremos na Parte III deste livro.


Minha área de pesquisa atual, portanto, está centrada dentro destes dois tópicos de estudo e ainda há muito material para nos debruçarmos nas próximas edições da Revista Nganga e nos próximos livros.


NOTAS:


[1] [N.T.] Relação estabelecida e comparada no primeiro volume do Daemonium. Clube de Autores, 2019.

[2] [N.T.] Leia-se Quimbanda.

[3] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia Goetica. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2022, pp. 22. É interessante notar que os espíritos da hierarquia infernal que tanto aparecem no Grimorium verum quanto em O Livro de São Cipriano, já eram mencionados (senão convocados) pelos kimbandas das antigas Macumbas.

[4] Owen Davies. Grimoires: A History of Magic Books. Oxford University Press, 2009, pp. 155-6.

[5] Jake Stratton-Kent. The Testament of Cyprian the Mage. Vol. 1. Scarlet Imprint, 2014, pp. 2-5.

[6] Scarlet Imprint, 2010-2023.


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