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MANGANEUMATAS DAS SOMBRAS: ÀQUELES QUE VAGAM À NOITE

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @tatangangakamuxinzela | @goeteia.com.br

 

Por volta de 2004 eu preparei um ensaio chamado manganeumatas[1] das sombras. A intenção era demonstrar o estilo de vida de um goēs grego. Esse texto passou por duas revisões, uma no verão de 2007 e outra no outono de 2009. Reavaliando estes papeis hoje, 2024, decidi refazer todo o texto, porque nos últimos dez anos avançaram as pesquisas acadêmicas sobre o goēs e o que podemos concluir como goécia a partir das fontes que temos disponíveis.

 

Para essa seção do Capítulo 2, que originalmente se chamaria do goēs grego ao kimbanda brasileiro, decidi manter o título do artigo escrito em 2004, manganeumatas das sombras, incluindo como subtítulo a pecha difamatória dada aos goētes por Platão (428-348 a.E.C.) em seu As Leis: àqueles que vagam à noite (nyktipolois).[2]

 

O objeto dessa seção é estabelecer a identidade do feiticeiro ou goēs da Grécia no Mundo Antigo e seu papel na cultura greco-egípcia no contexto do Mediterrâneo no fim da Antiguidade. E a partir daí construir as conexões entre este feiticeiro antigo e o kimbanda moderno no Brasil. A intenção é demonstrar a universalidade do papel do feiticeiro na sociedade, em qualquer sociedade: o indivíduo proscrito que vive à margem da cultura; temido por uns, àqueles que não compreendem sua função social; admirado por muitos, àqueles que precisam de seus serviços; mas também condenado por outros, àqueles que não dependem de suas intervenções mágicas. Para estes últimos, o feiticeiro é sempre um charlatão enganador, um aproveitador das fragilidades humanas; para os que precisam de seus serviços, o feiticeiro é um herói, profeta, curandeiro ou filósofo; e para os que não o compreendem, o feiticeiro caminha no limiar entre homens, lendas e feitos prodigiosos; para estes o feiticeiro é uma figura misteriosa, aterrorizadora, quase mítica.

 

No fim a intenção é levar o leitor a compreensão do caráter universal da feitiçaria e do feiticeiro, de forma a entender que o kimbanda no Brasil não faz nada diferente do goēs grego antigo, do mago ou teurgo do fim da Antiguidade. Neste período, por volta do Séc. V d.E.C. pós triunfo do cristianismo, já não havia uma distinção nítida no imaginário Mediterrâneo entre esses três tipos de magistas. Eles representavam naquele tempo o exemplo par excellence do mago que inspiraria a carreira mágica de muitos praticantes interessados nas ciências ocultas, como as entendemos hoje, desde a Idade Média até a Contemporaneidade, e cujos ícones míticos são figuras como Salomão, São Cipriano e Fausto. O Oriente próximo ofereceu aos gregos a ideia do mago que poderia tanto ser um sacerdote quanto um rei, ou ambos e, como vimos anteriormente, que acabou por substituir a figura do goēs no fim da Antiguidade. Dá ideia helenizada do mago oriental nascem heróis icônicos como Zoroastro, Histaspes e Ostane. Os teurgos neoplatônicos concentraram os últimos esforços de revisão e revitalização do paganismo helênico já em franco declínio há muito tempo, oferecendo uma fundamentação filosófica e teológica refinada dos mitos e das práticas mágico-religiosas. Os teurgos do fim da Antiguidade equiparavam-se aos magos persas; de igual modo ambos alegavam ser sacerdotes de uma casta real ou imperial de deuses. Mas no contexto religioso que eclodiu com a vitória do cristianismo e toda miscigenação cultural que apareceu nos Papiros Mágicos Gregos, feiticeiros, magos e teurgos tornaram-se condenados e proscritos sócio-religiosos pela cristandade que passava a reconstruir todo imaginário cultural do Ocidente.

 

Como vimos desde o primeiro volume do Daemonium, universalmente, seja em qualquer cultura que apareça, o feiticeiro sempre ocupa o lugar de párea social, porque suas práticas mágico-religiosas se distanciam da ideia de religião comum, quer dizer, a religião de todos conectada aos santuários e cultos estabelecidos. Suas práticas obscuras realizadas à noite em locais ermos como cemitérios ou cavernas profundas, causavam consternações, suspeitas e temores. Olhe para a nossa sociedade hoje: não é essa a imagem de um kimbanda no imaginário brasileiro?[3] O feiticeiro, universalmente, está à margem da sociedade em que está inserido; perseguido como retrógrado por não atualizar e alinhar suas práticas e crenças religiosas a religião do status quo, mas também como selvagem ou bárbaro, porque em seus rituais há sacrifícios de animais, utilização de signos e símbolos demoníacos etc., toda sorte de exercício religioso antinomiano.

 

Se estivéssemos vagando pelas ruas de Atenas no Séc. V a.E.C. poderíamos procurar por conta própria os indivíduos que chamamos de goētes; no entanto, esses indivíduos não identificavam a si mesmos como goētes. Diferente disso, eles eram acusados por outros de serem goētes, porque a palavra designava um estereótipo-social e era indiscriminadamente utilizada para insultar uma pessoa por qualquer motivo. Até Jesus, a caminho do fim da Antiguidade, foi acusado de ser um goēs. Clemente de Alexandria (150-215 d.E.C.) acusa o goēs de mago (magoi), bacante (bakchoi), ménade (lênai) e iniciado (mystai) nos Mistérios. Platão critica severamente o goēs, porque na busca por seu estado ideal, ele condenava a prisão perpétua qualquer tipo de culto religioso privado como uma prática de manutenção da ordem da pólis. Em correspondência privada com Jake Stratton-Kent acerca do goēs na Grécia antiga, ele me disse:

 

Na Grécia Antiga, o goēs desempenhava o papel de um feiticeiro ou operante mágico frequentemente situado nas margens da sociedade e do contexto religioso formal da pólis. Seu trabalho envolvia práticas espirituais e rituais incomuns, como conjuração dos mortos e manipulação de espíritos, que os distanciavam das instituições religiosas e políticas estabelecidas. A figura do goēs frequentemente misturava práticas de feitiçaria, encantamento e necromancia, atraindo tanto fascínio quanto repulsa da sociedade. Platão, por exemplo, via o goēs como uma ameaça à ordem da pólis, associando-o a práticas religiosas privadas que subvertiam as normas e criavam uma relação autônoma com o divino, o que contrariava o controle estatal sobre o espiritual, sobre a religião.

O goēs também é comparado a um artista ou ator que adota várias formas e disfarces, misturando-se ao mundo espiritual de maneira fluida, o que reforçava sua aura de mistério e transgressão. Ele assumia uma postura desafiadora e independente, operando em áreas limítrofes do que era culturalmente aceito e considerado seguro. Suas habilidades estavam mais associadas ao relacionamento direto com os espíritos e à compreensão de «limiares» entre o mundo humano e o sobrenatural, sem a necessidade de um sistema teológico codificado.

Essa figura singular representava tanto a violação das normas sociais quanto a possibilidade de acesso direto a poderes espirituais, papel que o tornava um ponto de tensão entre as necessidades espirituais individuais e a estrutura coletiva da pólis.

[...] Na Grécia Antiga, o goēs desempenhava um papel central como praticante de ritos religiosos e espirituais que se misturavam com magia e rituais de purificação. Originalmente, os goēs eram respeitados como sacerdotes que realizavam lamentos e cerimônias funerárias, ajudando a guiar as almas para o submundo, função que os conectava com a morte e a transformação. Eles agiam como «psicagogos» ou guias de almas, combinando habilidades de adivinhação e necromancia, práticas essenciais nos cultos ctônicos que reverenciavam forças ancestrais e deidades pré-olímpicas. Com o tempo, especialmente sob a influência das novas culturas urbanas e do surgimento da pólis, esses feiticeiros passaram a ser vistos com desconfiança e foram gradualmente marginalizados. Filósofos como Platão os criticaram por suas práticas esotéricas e influência sobre as comunidades, vendo-os como ameaças à ordem estabelecida, especialmente ao abusarem de sua posição para ganhos pessoais.[4]

 

Platão via o goēs como uma figura subversiva que ameaçava a ordem religiosa e social da Grécia antiga. Ele o considerava um charlatão que desrespeitava a religião tradicional e manipulava os poderes espirituais para interesses pessoais, rompendo com as normas aristocráticas e a estrutura de poder. Esse julgamento reflete uma visão moralista, onde o goēs, ao transitar entre o mundo dos mortos e o dos vivos, era visto como um infrator das regras divinas e sociais, assumindo um lugar marginal e temido entre o mago formal e o manipulador de raízes, mas abaixo de ambos na hierarquia da sociedade grega. Frater Archer esclarece:

 

Platão, portanto, destaca o princípio central do goēs, e todos os seus companheiros andarilhos noturnos, como as bruxas, os magoi e os pharmakoi, que operavam com um espírito de autossuficiência imprudente: eram tolos impiedosos que negociavam ilegalmente com a religião e ousavam destruir linhagens familiares inteiras e estados por causa de dinheiro. O feiticeiro entoando encantamentos, envolvido com os mortos inquietos e navegando nas marés telúricas, era ao mesmo tempo representante de um tipo peculiar de trabalho espiritual, além de, especialmente desde o Século V a.E.C., um estereótipo comum e difamatório.

Ao mesmo tempo, suas personalidades e trabalhos eram desconsiderados como «fraudulentos e ilusórios» e, no entanto, temidos como «ainda assim algo perigoso». Localizado na escada social (descida) um pouco acima do cortador de raízes comum, mas abaixo do mago profissional, o goēs apresenta o esboço (quase esquecido) da figura demoníaca da bruxa desde o início da Antiguidade Greco-Romana. Ambas representam figuras de transgressão, de violações não apenas da religião normativa, mas ainda mais essencialmente da convivência social.

Sua comunhão constante não era com outros humanos, mas com espíritos que permaneceram em grande parte sem nome e fora do controle dos líderes sacerdotais dos cultos formais dos templos e, mais tarde, das igrejas.

Em um campo de tensão permanente, a representação ética do goēs oscilava entre dois reinos: de um ponto de vista da ordem cosmológica, eram identificados como transgressores perigosos, violadores e causadores de crises no mundo natural, social e divino. De um ponto de vista de interesse econômico, porém, eram os agentes operativos de um mercado ilícito que negociava o acesso ao poder [espiritual, mágico].[5]

 

No entanto, o goēs simbolizava algo muito além de uma ameaça ética: ele era a personificação de um mercado espiritual paralelo e proibido, que oferecia acesso ao poder para além do controle sacerdotal. Sua conexão com forças não regulamentadas pelos templos e com espíritos situava-o como uma figura de resistência ao sistema. Essa dualidade – ao mesmo tempo desprezado e temido, charlatão e agente de poder – revela a tensão entre as forças estabelecidas e a autonomia do indivíduo em buscar o sobrenatural.

 

A visão do goēs como transgressor e causador de crises no sistema social reflete uma estratégia de alteridade, na qual ele é utilizado para definir o que está fora da norma em contraponto ao que a sociedade considerava aceitável e legítimo. Falar dos goētes e das bruxas era uma forma de acentuar a alteridade, ajudando a refletir sobre a própria identidade coletiva. Essa construção da alteridade, portanto, tem mais a ver com uma necessidade de autoafirmação da sociedade do que com uma compreensão genuína ou respeitosa das práticas dos goētes.

 

A alteridade, no contexto da Quimbanda no Brasil, da goēteia grega e goécia conectada a tradição demonológica, refere-se à construção e à percepção do outro como uma forma de definição e demarcação das próprias crenças, valores e normas vigentes da sociedade. No presente contexto, essa alteridade se manifesta em duas dimensões principais: a demonização dos espíritos locais e do feiticeiro,[6] que são vistos como agentes de transgressão da ordem social e religiosa, e a criação de uma imagem marginalizada e, muitas vezes, negativa do outro para reforçar uma identidade central ou aceitável.

 

Na Grécia antiga, por exemplo, o goēs era considerado uma figura marginal e, segundo Platão, um transgressor, alguém que ameaçava a ordem da pólis com sua independência e práticas religiosas autônomas. Ele era visto como um outro perigoso, alguém que não respeitava as normas estabelecidas. Essa ideia do goēs se reflete também na construção simbólica dos Exus e Pombagiras da Quimbanda, que, embora integrados à prática religiosa e à magia brasileira, continuam a carregar o estigma de diabos ou espíritos transgressores, muitas vezes temidos pela sociedade mais ampla.

 

Alteridade, nesse caso, é a separação entre a norma e aquilo que escapa ao controle das instituições ou dos valores hegemônicos. Esse distanciamento reforça uma identidade que está em contraste com o que é marginal ou liminar. Esse outro – o goēs, os Exus, os demônios e os feiticeiros – serve como espelho, ajudando a sociedade a se definir por oposição, seja como um espaço de ordem divina ou de moralidade. Alteridade, então, não é apenas a diferença; é um processo ativo de identificação do que é externo ao eu cultural e espiritual, que permite uma autoafirmação por contraste e, no caso da Quimbanda e da demonologia, também como fonte de poder que desafia e redefine esses limites normativos.

 

A goécia como aqui definida e a Quimbanda, portanto, aglutinam alteridade e resistência ao sistema, o que resumo:

 

  1. Alteridade: Neste contexto, a alteridade representa a construção do outro – uma figura que encarna o que está fora das normas e do controle estabelecido. Figuras como o goēs na Grécia antiga ou os Exus e Pombagiras na Quimbanda e seus feiticeiros são exemplos de alteridade porque representam aquilo que é temido, marginalizado ou incompreendido pela sociedade dominante. A alteridade aqui funciona como um contraste que ajuda a sociedade a definir seu próprio eu, seu conjunto de normas e sua ordem religiosa e social. Esses outros são vistos como ameaças à estabilidade social e religiosa, pois operam com poderes, conhecimentos e práticas que não seguem as instituições e dogmas oficiais.

  2. Resistência ao Sistema: A resistência ao sistema, por sua vez, é a postura ativa e autônoma desses agentes de alteridade em relação ao controle e às regras impostas. No caso do goēs, Platão o via como alguém que desafiava a ordem da pólis ao operar práticas religiosas e mágicas fora do controle estatal. Esse desafio é também evidente na Quimbanda, onde Exus, Pombagiras e seus feiticeiros, apesar de serem integrados a uma tradição cultural afro-brasileira, são rotineiramente demonizados ou incompreendidos pela sociedade mais ampla, principalmente por sua associação com o Diabo e o mundo dos espíritos. Contudo, essa associação se torna uma forma de resistência ao sistema que tenta controlar ou excluir tais práticas e entidades, transformando-as em figuras de poder e autonomia.

 

Assim, a alteridade e a resistência ao sistema se reforçam mutuamente: a alteridade define essas figuras como externas e transgressoras, enquanto a resistência ao sistema é a reação ativa desses seres ou praticantes à imposição de uma ordem que tenta dominá-los ou apagá-los. Este ciclo de oposição e resistência transforma Exus, goētes e outros agentes de alteridade em símbolos de uma tradição que se recusa a ser assimilada, mantendo-se à margem, mas, ao mesmo tempo, profundamente enraizada e influente nas práticas espirituais e culturais.

 

As perseguições sofridas pelos goētes na Grécia antiga e pelos kimbandas no Brasil colonial e até a década de 1950 compartilham traços significativos de rejeição social e cultural. Ambos os grupos eram vistos como transgressores das normas religiosas e sociais, sendo alvo de acusações e estigmatização como corruptores da ordem, ameaças ao status quo e desviantes da religião oficial e seus dogmas.

 

Perseguições aos Goētes na Grécia antiga: Na Grécia, os goētes (feiticeiros ou conjuradores) eram considerados figuras marginais e frequentemente acusados de charlatanismo. Filósofos como Platão viam os goētes como perigosos, pois eram considerados elementos disruptivos da ordem divina e social, acusados de comércio ilegal com o espiritual e de manipulação para ganho próprio. Essas práticas eram também vistas como uma ameaça ao controle do Estado sobre a espiritualidade e ao comportamento correto dentro da pólis. Ao operar rituais considerados não oficiais, muitas vezes noturnos e em locais afastados, como cemitérios, os goētes eram considerados portadores de uma espiritualidade independente e perigosa, alimentando a imagem de alteridade e subversão.

 

Perseguições aos Kimbandas no Brasil Colonial e Pós-Colonial: Os kimbandas no Brasil enfrentaram um cenário similar. Durante o período colonial e pós-colonial, práticas religiosas afro-brasileiras eram vistas como cultos subversivos, descontrolados e bárbaros pelas autoridades coloniais e religiosas. Nas décadas de 1930 a 1950, essas práticas foram tratadas pela imprensa brasileira como rituais obscuros e perigosos, frequentemente associados a imagens de demônios e práticas cruéis. Matérias jornalísticas e editoriais, especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo, chamavam esses rituais de macumba e descreviam os praticantes de Quimbanda, Umbanda e Candomblé como feiticeiros de práticas selvagens e amoral, perpetuando o estigma de bruxaria.

 

Exemplos de matérias jornalísticas descreviam detalhadamente cerimônias e rituais de macumba com um tom sensacionalista, associando-os a cultos do Diabo e a práticas que colocavam em risco a ordem social. Os cultos eram frequentemente caracterizados como um ataque à moralidade cristã e à segurança pública, mobilizando o medo e preconceito contra os praticantes, tal como ocorria com os goētes na Grécia. A presença de elementos de magia, espíritos, sacrifícios e contato com entidades espirituais eram apresentados como provas de práticas de feitiçaria que ameaçavam a ordem e a segurança. Os paralelos entre as duas perseguições são:

 

  1. Estigmatização e Demonização: Tanto os goētes quanto os kimbandas foram estigmatizados como praticantes de magia negra e bruxaria, sendo vistos como perigosos e enganosos. Assim como os gregos antigos associavam os goētes à manipulação espiritual ilegal e ao controle das forças de vida e morte, os kimbandas eram rotineiramente descritos como feiticeiros que manipulavam forças demoníacas.

  2. Rejeição pelo Sistema Religioso e Estatal: Em ambos os contextos, havia uma rejeição do sistema estatal e religioso. Enquanto o Estado grego buscava controlar o acesso ao sagrado e rejeitava os goētes por ameaçarem a ordem da pólis, no Brasil, o Estado e a Igreja Católica exerciam pressão direta para suprimir cultos afro-brasileiros, resultando em batidas policiais, prisões de líderes religiosos e campanhas de difamação.

  3. Sensacionalismo e Mídia: A demonização da macumba no Brasil foi amplamente difundida pela mídia. Manchetes e artigos de jornal sensacionalistas exploravam o medo popular dos feiticeiros, reforçando a imagem dos cultos afro-brasileiros como algo selvagem e perigoso. Esse tipo de representação é paralelo às descrições de goētes como vagabundos noturnos e subversores da ordem na Grécia.

  4. Perseguição Legal e Social: Assim como as leis de Atenas condenavam práticas religiosas privadas e ritos de conjuração de espíritos, no Brasil, práticas religiosas africanas foram criminalizadas por meio de códigos penais que consideravam essas práticas como charlatanismo ou curandeirismo. A repressão policial aos cultos afro-brasileiros, especialmente entre as décadas de 1930 e 1950, foi vista como necessária para limpar a sociedade.

 

A perseguição tanto aos goētes quanto aos kimbandas reflete um ciclo de repressão à alteridade espiritual e cultural que não se alinha com os sistemas dominantes de poder, revelando a tentativa do sistema em domesticar ou apagar práticas e crenças não normativas.

 

Podemos resumir e sintetizar todos os pontos que conectam o papel dos goētes na Grécia antiga e dos kimbandas no Brasil da seguinte maneira: tanto os goētes na Grécia quanto os kimbandas no Brasil representaram figuras de resistência cultural e espiritual, operando em espaços de marginalidade e transgressão em relação às normas estabelecidas pelo poder dominante.

 

Na Grécia, os goētes eram perseguidos por romperem com a religião oficial e a estrutura estatal da pólis. Eles eram vistos como figuras que detinham saberes alternativos, exercendo práticas mágicas que desafiavam as narrativas oficiais da divindade e da ordem social. A prática dos goētes pode ser vista como um símbolo de alteridade por não se alinhar aos valores públicos da religião e filosofia gregas. Nesse sentido, a prática mágica dos goētes representava uma forma de resistência ao sistema que negava sua autonomia espiritual e que buscava enquadrar todo o conhecimento religioso em um sistema de controle.

 

De maneira análoga, os kimbandas no Brasil eram alvo de uma forte repressão social e jurídica, especialmente durante o Estado Novo e a modernização industrial. O governo brasileiro, ao definir uma identidade nacional mestiça, buscava também apagar ou controlar os traços religiosos e culturais de origem africana. O código penal de 1890 e a perseguição aos praticantes da Macumba refletiam uma tentativa de eliminar práticas religiosas e culturais que eram percebidas como uma ameaça à nova ordem social e moral. As religiões afro-brasileiras foram estigmatizadas e reprimidas por não se encaixarem nos padrões da modernidade e moralidade cristã imposta.

 

Assim como os goētes, os kimbandas foram tratados como figuras marginalizadas e demonizadas, o que reforçou sua posição como outros e fortaleceu sua resistência cultural. A resistência ao sistema se expressava não só na prática contínua da magia e da feitiçaria, mas também na adaptação e incorporação de elementos de outras culturas, incluindo aspectos do catolicismo e da magia europeia, o que resultou em uma prática sincrética que desafiava as tentativas do sistema de enquadrá-los em uma categoria moral inferior.

 

A Quimbanda como um campo de resistência simbólica e espiritual evoluiu através das transformações sociais e econômicas do Brasil. A perseguição e repressão legal aos kimbandas serviram como um catalisador para o desenvolvimento de uma tradição sincrética, que incluía não apenas elementos africanos, mas também europeus e indígenas, como uma forma de sobreviver e resistir ao controle. Isso ressoa com o conceito de alteridade, pois a Quimbanda se definiu e se estruturou como uma tradição outra, situada na margem do sistema dominante e em constante oposição às tentativas de controle ideológico e cultural, especialmente pela Igreja e pelo Estado.

 

Assim, tanto os goētes quanto os kimbandas representam a alteridade enquanto figuras forasteiras no contexto de sua época, e suas práticas podem ser vistas como uma forma de resistência ao sistema que buscava domesticar suas crenças e poderes. Em ambos os casos, a resistência toma a forma de preservação de saberes ancestrais, transformando suas práticas conforme o contexto, sem abrir mão de sua essência de resistência espiritual.

 

Finalmente, esta seção, portanto, sugere uma compreensão ampla e universal sobre o papel do feiticeiro ou goēs na sociedade, tanto na Grécia Antiga quanto na contemporaneidade, particularmente dentro da Quimbanda no Brasil. Historicamente, o goēs foi marginalizado, visto como transgressor e charlatão, mas simultaneamente temido e respeitado por seu poder de intermediar o mundo espiritual. Platão e outros pensadores antigos consideravam o goēs uma ameaça à ordem e moralidade da pólis, devido a suas práticas privadas e seu acesso ao invisível, desafiando os cultos e instituições tradicionais. Essa marginalização, no entanto, também revela como os goētes representavam uma alternativa ao status quo, oferecendo um tipo de poder espiritual não regulado e acessível a quem buscasse proteção, cura ou orientação fora das normas estabelecidas.

 

No contexto brasileiro, o kimbanda ocupa papel semelhante, refletindo esse arquétipo universal do feiticeiro que opera às margens da sociedade e que, através de práticas noturnas e rituais em locais ermos, provoca fascínio e temor. A sociedade contemporânea muitas vezes vê o kimbanda como uma figura liminar e até ameaçadora, associada ao demoníaco e ao antinomiano, tal qual o goēs grego. A Quimbanda e o kimbanda moderno, como o goēs da Grécia antiga, canalizam uma função espiritual fundamental que transcende contextos históricos e culturais: a do indivíduo que lida com o poder espiritual de maneira autônoma, navegando entre as fronteiras do sagrado e do profano.

 

Essa continuidade entre o goēs e o kimbanda ilustra a permanência do arquétipo do feiticeiro como figura de transgressão, resistência e mediação entre mundos. Para muitos, ele é um herói sombrio, necessário e essencial para a sobrevivência espiritual, mas, para a sociedade dominante, ele será sempre uma ameaça, uma lembrança de que existem forças espirituais que escapam ao controle e à compreensão institucionalizada.



NOTAS:

[1] Manganeumata é um termo difamatório utilizado primeiro para se referir aos adoradores noturnos do deus-serpente Glycon na vila romana de Abonútico por volta do Séc. II d.E.C. Esse deus foi introduzido por Alexandre, o falso profeta ou monge-oráculo, difamado por Luciano de Samósata (120-190 d.E.C.) em uma sátira com o nome do satirizado. No fim da Antiguidade o termo, no entanto, foi inserido no rol de expressões semânticas difamatórias do goēs. Veja Georg Luck. Witches and Sorceres in Classical Literature, artigo em Bengt Ankarloo e Stuart Clark, eds. Witcraft and Magic in Europe, Vol. II. PENN, 1999, pp. 91.

[2] Platão, As Leis, 909b. Edipro, 2010, pp. 432.

[3] Para contextualização da perseguição e condenação do feiticeiro na sociedade brasileira veja três obras de Diamantino Fernandes Trindade: Feiticeiros e Feitiçaria no Segundo Império do Brasil. Editora do Conhecimento, 2019. História da Umbanda no Brasil Vol. 7: Macumbas e perseguições religiosas. Editora do Conhecimento, 2018. História da Umbanda no Brasil Vol. 9: Notícias históricas da macumba. Editora do Conhecimento, 2018.

[4] Comunicação pessoal com o autor através de e-mail, 13 de abril de 2021. Os itálicos e a correção diacrítica no texto são meus.

[5] Frater Archer. Goêtic Common Sense: An interlude for the inveterate chthonic sorcerer. PDF do autor, disponível na Theomagica, pp. 11-2. A correção diacrítica é minha.

[6] Veja Capítulos 12, 13 e 15.



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