O CHAMADO DOS DEUSES PRÓPIOS
- Fernando Liguori
- 23 de mar.
- 18 min de leitura

JÂMBLICO, FORTUNE & LEALDADE A
ANCESTRALIDADE
Série: Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br
Introdução
O tema da adoção de divindades de outras culturas tem sido debatido em diversas tradições esotéricas e filosóficas com intensa seriedade. Tanto Dion Fortune (1890-1946) quanto Jâmblico (245-325 d.E.C.), separados por séculos, expressaram reservas sobre o culto a deuses estranhos às tradições nas quais o praticante está inserido, argumentando não apenas a partir de uma perspectiva religiosa, mas também ontológica, ritual e espiritual. Para Jâmblico, no De Mysteriis, há uma clara advertência sobre a inadequação de recorrer a deuses estrangeiros: É necessário adorar os deuses da própria nação, pois a afinidade natural e a disposição inata da alma estão em conformidade com as potências que presidem a sua geração.[1] A recusa em cultuar divindades alheias se baseia na concepção teúrgica de que a alma encarna sob a regência de determinados deuses que governam sua linhas ancestrais e destino cósmico. Ao recorrer a divindades que não lhe são destinadas, o teurgo corre o risco de romper sua harmonia cósmica, deslocando-se de sua órbita espiritual e comprometendo os efeitos rituais e a união com o divino.
Essa posição ecoa no pensamento da ocultista Dion Fortune que, escrevendo em A Cabala Mística, também adverte contra a apropriação superficial de sistemas espirituais orientais. Ela afirma que não devemos importar religiões que não são nossas; seus rituais e símbolos não nos pertencem e não despertam as respostas arquetípicas latentes na alma ocidental.[2] Para Fortune, os símbolos e rituais de uma tradição são chaves moldadas pela geografia espiritual, histórica e arquetípica do povo que os gerou. Ao tentar operá-los sem o devido enraizamento, o ocultista torna-se como um músico tocando um instrumento cujo idioma não conhece, produzindo ruído em vez de música.
Gregory Shaw, em sua análise da obra de Jâmblico, reforça essa ideia ao afirmar que a alma só pode ser elevada pelos deuses que presidem a sua linhas ancestrais; sem essa filiação divina, não há hierarquia, não há voz que ouça o chamado do sacerdote[3] O que está em jogo aqui é mais do que tradição – é uma ecologia espiritual onde o rompimento de vínculos sagrados implica em dissonância ontológica. A teurgia, portanto, exige uma fidelidade não cega, mas ritualística e ontológica à matriz cultural e ancestral da alma, reconhecendo que os deuses não são abstrações intercambiáveis, mas inteligências cósmicas acessaras e conectadas por pactos, nomes e símbolos à associados a ordem do Cosmos.
A tentativa de operar com divindades de outros panteões sem a devida iniciação e filiação pode gerar efeitos adversos: perda de orientação espiritual, dissociação arquetípica, esterilidade ritual e, em casos mais graves, uma fragmentação psíquica alimentada por potências que não reconhecem o operador como parte de sua economia simbólica. Essa visão não nega a existência e poder dos deuses estrangeiros, mas adverte que o sagrado não é neutro, e sua manipulação exige mais do que desejo: requer filiação, linhas ancestrais ancestral e compromisso com a ordem sagrada de sua própria alma. Assim, tanto Jâmblico quanto Fortune convergem em uma advertência sapiencial: é necessário florescer onde se está espiritualmente plantado – não por xenofobia esotérica, mas por fidelidade ao mistério que nos gerou.
Fortune argumenta que sistemas esotéricos não são apenas conjuntos arbitrários de símbolos e rituais, mas sim estruturas espirituais profundamente entrelaçadas com o inconsciente coletivo, o ethos e a configuração mística das civilizações nas quais se originaram. O racial stock, no vocabulário da época, deve ser entendido como uma referência ao imaginário cultural, e não como uma defesa de racismo biológico, ainda que hoje o termo exija uma leitura crítica.
Ela continua explicando que tradições orientais, como as do hinduísmo ou do budismo tibetano, foram moldadas dentro de estruturas simbólicas e éticas que diferem profundamente das tradições ocidentais, como o hermetismo, o cristianismo esotérico ou a magia cabalística. Nesse sentido, um ocidental que tenta praticar uma religião como o tantrismo ou o culto a Kālī, por exemplo, sem uma imersão radical e legítima na cultura que os gerou, corre o risco de desfigurar a prática ou de gerar efeitos psíquicos desordenados por não estar enraizado naquele sistema. Ela diz: Esses sistemas orientais evoluíram por uma linha tão diferente daquela das escolas ocidentais que seu simbolismo e métodos podem representar um perigo real para uma mente ocidental não treinada em sua técnica.[4]
Portanto, para Fortune, é fundamental que o caminho espiritual respeite o campo simbólico, iniciático e místico próprio à tradição do praticante, sob risco de provocar, não a libertação, mas a fragmentação psíquica ou espiritual. Ela não nega a validade dos sistemas orientais – pelo contrário, reconhece seu poder –. mas insiste na necessidade de integração verdadeira e cuidadosa para que um sistema exótico funcione fora de seu solo natal.
Ancestralidade ocidental vs oriental
No desenvolvimento da distinção entre Oriente e Ocidente no contexto esotérico, a questão da geografia espiritual emerge como um ponto crucial. Dion Fortune, em sua obra As Ordens Esotéricas e seus Trabalhos, reconhece a existência de uma sabedoria oriental poderosa e legítima, mas adverte que ela pertence a uma estrutura iniciática distinta da ocidental. Em suas palavras: Cada sistema é perfeitamente adaptado ao tipo racial e cultural para o qual foi desenvolvido, e é imprudente tentar enxertar uma tradição exótica em um tronco racial diferente sem uma adaptação cuidadosa.[5] A autora indica que sistemas espirituais não são apenas conjuntos de técnicas, mas expressões de uma psicologia coletiva, de um inconsciente racial e de uma geografia mágica.
Essa perspectiva é ecoada no platonismo teúrgico de Jâmblico. Em De Mysteriis, o filósofo sírio afirma que o culto aos deuses deve respeitar as disposições ancestrais e culturais do praticante. Ele escreve: Não é seguro alterar os ritos divinos recebidos dos deuses; nem é apropriado misturar costumes estrangeiros a eles.[6] A justificação filosófica para isso se apoia em sua doutrina da sustasis, ou co-pertencimento entre o sacerdote, o rito e a divindade. Os deuses se manifestam em contextos culturais específicos e seus símbolos, nomes e rituais são teofanias adaptadas às características espirituais dos povos. Invocá-los fora desse contexto compromete a eficácia do contato teúrgico e desestrutura o elo entre símbolo e essência divina.
A distinção entre Oriente e Ocidente, nesse sentido, não é meramente geográfica, mas iniciática. Adorar Kālī, uma deusa da tradição hindu, exige um sistema de símbolos, linguagens rituais, praxes devocionais e cosmologia que pertencem a um corpo cultural específico e a um ethos ancestral moldado por séculos. Como adverte Fortune, não se trata apenas de mudar um nome em um ritual. Você está lidando com um organismo espiritual completo e, a menos que esteja treinado em seus caminhos, corre o risco de desintegrar as forças envolvidas.[7]
Por outro lado, a adoção de divindades como Hécate por um praticante brasileiro, é plausível dentro dessa lógica, pois Hécate pertence ao panteão grego que, como demonstram diversos autores como Pierre Hadot em O que é Filosofia Antriga,[8] constitui a matriz espiritual da cultura ocidental. A tradição esotérica europeia moderna – do teosofismo[9] à magia cerimonial – construiu-se sobre esse legado greco-romano-judaico-cristão. Jâmblico compreendia Hécate, por exemplo, como uma das potências centrais da mediação entre o mundo sensível e o inteligível, e cultuá-la dentro dessa lógica implica uma continuidade e não uma ruptura de paradigmas.
Mas o que dizer dos deuses egípcios? Do ponto de vista grego antigo, o Egito era efetivamente considerado oriental em certa medida. No entanto, a relação entre o mundo grego e o egípcio foi marcada por uma intensa simbiose espiritual, como documenta Garth Fowden em The Egyptian Hermes,[10] especialmente no contexto do hermetismo alexandrino, onde Thoth-Hermes tornou-se um elo entre as duas culturas. Essa fusão produziu um corpus iniciático híbrido, e autores como Proclo (412-485 d.E.C.) no seu comentário ao Timeu de Platão (427-347 a.E.C.), se refere com reverência às doutrinas egípcias como parte da cadeia ininterrupta da sabedoria teúrgica. Neste caso, não se trata de importar deuses estrangeiros, mas de cultuar divindades que participaram ativamente da constituição da tradição esotérica ocidental através de um processo sincrético e histórico.
A inadequação, portanto, não reside em um xenofobismo mágico, mas na desconexão iniciática. Quando um praticante ocidental tenta integrar uma divindade de uma matriz iniciática estrangeira sem a devida formação, ele não apenas obtém resultados ineficazes, mas pode gerar desequilíbrios energéticos sérios. Como afirma Joscelyn Godwin: A experiência mística é moldada pelos símbolos e estruturas da cultura na qual está inserida. Uma mudança repentina de uma matriz para outra tende a causar desorientação psicológica e espiritual.[11]
Em suma, tanto Jâmblico quanto Dion Fortune defendem, a partir de distintas tradições esotéricas, que o culto deve respeitar a geografia espiritual do iniciado. Os deuses não são abstrações universais intercambiáveis, mas realidades espirituais encarnadas em formas culturais e simbólicas precisas. A prática espiritual eficaz e segura, portanto, depende do alinhamento entre a alma do praticante, os símbolos do culto e a linhas ancestrais espiritual que sustenta aquele trabalho.
O Chamado dos deuses ancestrais
A tradição esotérica ocidental sempre lidou com a tensão entre absorver influências externas e manter sua identidade espiritual. Desde o helenismo, com sua notória abertura ao sincretismo religioso, até os renascimentos mágico-filosóficos do Ocidente, vemos deuses sendo adotados, renomeados, fundidos. Contudo, esse sincretismo nunca foi arbitrário. Ele seguia princípios iniciáticos rigorosos, promovendo uma fusão simbólica que respeitava a integridade dos cultos e de suas forças espirituais.
Durante o período greco-romano, por exemplo, os deuses egípcios passaram a ser cultuados por romanos não como exóticos, mas como manifestações integradas a um universo espiritual expandido. Ísis tornou-se uma deusa universal, com templos em Roma e na Gália. Hórus foi sincretizado a Apolo. No entanto, esse processo ocorreu por meio da mediação cultural e ritualística do hermetismo alexandrino que, como lembra Peter Kingsley, era uma forma de iniciação profundamente enraizada na prática da filosofia como caminho de morte e renascimento.[12] O que possibilitava esse trânsito entre panteões era a presença de um corpo sacerdotal treinado, uma teologia compartilhada, e o que Jâmblico chamaria de sunthēmata – sinais e símbolos próprios que asseguravam a identidade mágica da divindade, mesmo sob nova roupagem.
Em contraste, o esoterismo contemporâneo, com as características típicas do pós-modernismo,[13] muitas vezes desprovido de linhas ancestrais, iniciação ou compreensão simbólica profunda, promove um ecletismo desestruturado, que colapsa as fronteiras espirituais e põe em risco tanto a saúde psíquica quanto a eficácia mágica dos praticantes. O problema não é meramente histórico, mas ontológico: ao invocar divindades com símbolos errôneos, sem o devido ritual e sem pertencimento à seira (série) ancestral,[14] o operador não apenas fracassa em estabelecer um contato genuíno, mas pode atrair forças incompatíveis, que o desestabilizam ou consomem.
Dion Fortune observava esse fenômeno já em sua época. Em Preparação e o Trabalho do Iniciado, ela alerta: A verdadeira ameaça é que uma força será de fato contatada, mas qualificada de maneira errada, resultando em obsessão ou confusão psíquica.[15] Ou seja, não se trata de duvidar da realidade espiritual dos deuses estrangeiros, mas de reconhecer que seus símbolos, palavras de poder, gestos rituais e até mesmo o formato do corpo do sacerdote estão profundamente enraizados em uma cultura e fisiologia específicas. A tentativa de fazer um enxerto mágico pode resultar em disfunção energética grave.
Jâmblico reforça essa advertência ao afirmar que somente por meio dos sinais e ritos apropriados o divino pode estar presente, e estes são dados a cada povo de acordo com os deuses que presidem sobre eles.[16] Os sunthēmata não são universais. São oferecidos pelos deuses a povos específicos, por meio de tradições vivas, oráculos, sonhos e revelações sacerdotais. Apropriá-los sem iniciação e sem conhecimento ritual é, nas palavras de Jâmblico, profana e estéril.[17]
A confusão esotérica atual, em que um mesmo altar abriga Kālī, Odin, Exu e Buda, é mais sintoma de uma crise espiritual ocidental do que um sinal de avanço iniciático. Trata-se da perda do sentido de linhas ancestrais, da erosão das hierarquias espirituais e da desintegração das escolas de mistério. Como resume Wouter Hanegraaff: A mentalidade da Nova Era presume que todas as tradições espirituais apontam, em última instância, para a mesma fonte – mas esse universalismo frequentemente carece de fundamentação histórica ou precisão ritual.[18]
Mesmo o sincretismo nas religiões afro-diaspóricas – como o catolicismo e os òrìṣà ou os encantados brasileiros na Quimbanda – se deu não por eclecticismo esotérico, mas por adaptação estratégica em contextos de opressão colonial. Houve transferência de atributos sim, mas jamais abandono de fundamentos. Como ensina um adágio da Quimbanda Nàgô: O Exu se manifesta no ferro, no barro e no sangue. Não há invocação sem fundamento. O mesmo princípio se aplica à teurgia antiga: o deus só responde quando chamado por seus símbolos verdadeiros, por mãos consagradas, e por uma alma que lhe pertence por série e destino.
Portanto, cultuar Hécate – uma deusa ancestral do mundo greco-romano – pode fazer pleno sentido a um brasileiro descendente dessas linhas ancestrais ocidentis, pois o que importa não é a geografia atual, mas a herança ancestral que nos atravessa. Já invocar Kālī, sem passar por uma via iniciática tāntrika autêntica, pode ser não apenas ineficaz, mas perigoso. Como afirmou Fortune, não devemos evocar levianamente aquilo que não estamos preparados para conter.[19]
Em tempos de globalização espiritual e de consumo esotérico via capitalismo tardio, o retorno à tradição – e à prudência iniciática — é o ato mais revolucionário. A alma só floresce onde suas raízes encontram o solo certo. E como falou Proclo: Toda alma possui uma afinidade natural com uma ordem específica de seres divinos.[20] Reconhecer essa afinidade é o primeiro passo no caminho da magia verdadeira, que não se dispersa, mas realiza.
Uma crítica ao esoterismo pós-moderno
O esoterismo pós-moderno caracteriza-se, em grande parte, por um ecletismo desprovido de estrutura, operando fora das balizas tradicionais que garantem coesão simbólica, coerência doutrinária e proteção espiritual. Diferente das tradições esotéricas clássicas – como a teurgia, a cabalá, o hermetismo alexandrino ou os cultos afro-diaspóricos tradicionais como a Quimbanda –, o esoterismo contemporâneo frequentemente abandona a ideia de linhas ancestrais, iniciação e transmissão. Essa ruptura com a cadeia da tradição leva ao que poderíamos chamar, nos termos de René Guénon (1886-1951),[21] de pseudo-esoterismo: um sistema que simula práticas espirituais sem tocar nas suas realidades metafísicas, reduzindo o esoterismo a ferramentas psicológicas, práticas de autoajuda ou experimentação estética.
Sob influência do pós-modernismo, que relativiza a verdade e rejeita metanarrativas, o esoterismo contemporâneo assume formas fragmentadas e descomprometidas, promovendo a ideia de que todos os símbolos são intercambiáveis, todas as divindades podem ser invocadas a qualquer tempo, e que qualquer indivíduo é, por si só, iniciado. Essa postura desconsidera que os símbolos não são neutros, mas veículos de potências específicas, codificados dentro de contextos culturais e cosmológicos definidos. Como ensina Jâmblico, não é seguro alterar os ritos divinos recebidos dos deuses, nem é apropriado misturar-lhes costumes estrangeiros,[22] pois cada rito é parte de um organismo espiritual integral e sagrado. Dion Fortune reforça essa mesma percepção ao afirmar que não se trata apenas de mudar um nome num ritual. Está-se lidando com um organismo espiritual completo, e a menos que se esteja treinado em seus caminhos, corre-se o risco de desintegrar as forças envolvidas.[23]
O esoterismo tradicional é, portanto, uma ciência espiritual rigorosa, com métodos, linguagens e graus. Ele é transmitido por iniciação, não apenas intelectual, mas sacramental, e estruturado por ritos, símbolos e formas arquetípicas que garantem sua eficácia e sua segurança. O esoterismo pós-moderno, ao dissolver essa estrutura, substitui a verticalidade iniciática pela horizontalidade do consumo espiritual, onde se escolhe livremente entre Yemọjá e Ísis, Kālī e Hécate, como quem escolhe um item em uma prateleira. Essa miscigenação descontextualizada, longe de representar uma abertura espiritual, gera, na verdade, dissonância simbólica, contaminação ritual, e frequentemente, processos de fragmentação psíquica – pois não há contenção iniciática para as forças invocadas.
Mais ainda, o colapso das fronteiras espirituais impulsionado por esse esoterismo de mercado não apenas compromete a saúde mental e energética do praticante, mas esvazia o sentido mesmo de tradição, convertendo caminhos de sabedoria milenares em bricolagens superficiais. O saber tradicional entende que o caminho espiritual é orgânico e exige fidelidade ao seu ritmo, à sua matriz e às suas provas. A espiritualidade pós-moderna, por outro lado, crê que pode escolher o caminho sem ser escolhido por ele.
Deste modo, torna-se urgente revalorizar os princípios da Tradição: a iniciação legítima, o respeito às linhagens espirituais, a linguagem simbólica herdada e, sobretudo, o reconhecimento de que nem toda prática é segura, nem todo símbolo é intercambiável, e nem toda divindade responde fora de seu mundo. O esoterismo é, antes de tudo, uma arte sagrada. E como toda arte sagrada, exige disciplina, reverência e uma estrutura viva para que seu fogo não queime, mas ilumine.
Conclusão: o fio invisível da tradição
Nas sendas ocultas do espírito, os caminhos não se cruzam por acaso, e as forças invocadas não são indiferentes ao nome com que são chamadas. Cada tradição autêntica é um corpo vivo – feito de símbolos, mitos, rituais, liturgias e uma metafísica que a sustenta – no qual habita uma alma, uma presença, que só pode ser verdadeiramente contatada por aqueles iniciados nos seus ritmos internos. Tocar um símbolo sem conhecer o seu espírito é como profanar um templo em nome da curiosidade. Há sabedoria no limite, e há proteção na forma. Os deuses respondem quando chamados de acordo com seus nomes verdadeiros, seus sinais sagrados e suas alianças espirituais ancestrais. Cruzar culturas espirituais sem essa compreensão pode resultar não apenas em ineficácia mágica, mas em rompimento psíquico, desintegração da consciência e desequilíbrio energético – pois se move forças cujo habitat não é o nosso.
Como bem compreendiam Jâmblico e Dion Fortune, há uma ecologia espiritual que deve ser respeitada. E cada buscador, para se elevar com segurança, deve enraizar-se na sua terra invisível – aquela matriz iniciática onde o seu daimōn pessoal e sua alma encontram eco genuinamente ancestral. Misturar sem integração, invocar sem aliança, adorar sem saber a quem: eis os erros do esoterismo pós-moderno. Em contraste, a tradição verdadeira ensina que só floresce quem retorna às suas origens espirituais. E que todo culto digno começa com reverência, não com escolha.
Suplemento de Estudo:
A Seira na Teurgia & na Quimbanda
No platonismo teúrgico, especialmente em Jâmblico, a seira (σειρά), ou cadeia divina, é uma linha ancestral ontológica que liga todos os seres a um princípio divino específico. Cada alma pertence a uma seira, e dentro dela recebe seu daimōn pessoal, ou seja, um espírito-guia que, segundo o próprio Jâmblico, é designado conforme o deus regente da seira à qual ela pertence.[24] Esse princípio implica que a alma não é um ser genérico e isolado, mas sim parte de uma filiação espiritual precisa e hierárquica. É por essa razão que, para Jâmblico, cultuar um deus fora da própria seira é ineficaz ou até perigoso: há uma ordem espiritual objetiva, uma cosmologia iniciática que estrutura o acesso legítimo ao divino.
Transpondo essa compreensão para a Quimbanda, especialmente dentro da perspectiva da cabalá crioula ou de uma teurgia afro-brasileira, podemos dizer que cada iniciado é igualmente inserido em uma seira, que neste caso é marcada pelo vínculo iniciático com o seu Exu Tutelar – espírito ancestral divinizado, ligado a uma linha de força específica, seja ela dos Malandros, dos Caveiras, das Encruzilhadas etc. O assentamento do Exu na Quimbanda é mais que um altar: é o ponto material e ontológico que ancora a seira do kimbanda neste mundo. O daimōn pessoal do iniciado (compreendido como uma interface astral e anímica, conforme o platonismo e o hermetismo) é, após a iniciação, subordinado ao Exu tutelar – i.e. inserido de forma ritual em uma nova seira afro-brasileira, marcada por sua linha ancestral mágica e pelos pactos feitos no momento iniciático.
Assim como no platonismo teúrgico o retorno à origem divina só é possível dentro da própria seira, na Quimbanda não se ascende espiritualmente fora da linha do Exu e da Pombagira que regem o caminho do iniciado. O daimōn pessoal não é rejeitado, mas reconfigurado ritualmente para servir à força telúrica da Quimbanda,
Esse processo é uma ressignificação afro-brasileira do conceito de seira: a Quimbanda estabelece linhas ancestrais mágicas e espirituais estruturadas, que respeitam os princípios tradicionais da hierarquia espiritual – e que rejeitam o ecletismo mágico e espiritual típico da modernidade desritualizada. Assim como Jâmblico advertia contra a adoração de deuses estrangeiros à nossa linha ancestral, a Quimbanda se organiza por séries telúricas vivas, herdeiras de um sistema próprio de sacralidade, que exige iniciação, assentamento do espírito e permanência no corpo iniciático ao qual se pertence.
A Quimbanda, portanto, não opera no vácuo. Suas práticas, seus assentamentos telésticos[25] e suas mirongas só possuem eficácia plena quando ligadas a uma linha ancestral viva, uma corrente com tradição, autoridade e potência. É nesse ponto que a Quimbanda se mostra, ao mesmo tempo, tradicional e atual. Ela não é sincretismo caótico, mas expressão de uma linhagem precisa e de uma seira espiritual enraizada nos mistérios do Diabo, dos Exus e Pombagiras que compõem o Reino Infernal. Na Quimbanda é o Exu tutelar quem assume o comando do destino do iniciado, e toda a força do daimōn pessoal passa a ser regida por esse chefe de sua linha ancestral.
Portanto, integrar os conceitos de seira como linhas ancestrais a Quimbanda é mais do que um exercício comparativo: é uma forma de compreender como tradições esotéricas distintas partilham de um mesmo princípio iniciático. A alma não pode deificar-se fora de sua linha ancestral.
NOTAS:
[1] Jâmblico. De Mysteriis, I:26. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 33.
[2] Dion Fortune. A Cabala Mística. Pensamento, 2012, pp.42.
[3] Gregory Shaw. Theurgy and the Soul: The Neoplatonism of Iamblichus. Angelico Press, 1995, pp. 162.
[4] Dion Fortune. As Ordens Esotéricas e seus Trabalhos. Pensamento, 1997, pp. 23.
[5] Dion Fortune. As Ordens Esotéricas e seus Trabalhos. Pensamento, 1997, pp. 22. Essa citação reflete uma perspectiva comum nos círculos esotéricos do início do Séc. XX sobre a importância da compatibilidade entre o sistema espiritual e a herança cultural do praticante.
[6] Jâmblico. De Mysteriis, II:4. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 81.
[7] Dion Fortune. A Cabala Mística. Pensamento, 2012, pp.46.
[8] Edições Loyola, 2014, pp. 231.
[9] A diferença entre teosofia e teosofismo é fundamental tanto histórica quanto conceitualmente. A teosofia, em seu sentido tradicional, é uma corrente filosófico-mística de raízes antigas, presente no platonismo teúrgico, no hermetismo e na mística cristã, sendo compreendida como uma forma de sabedoria divina (theos-sophia), adquirida por meio de iluminação interior e contemplação direta do divino. Já o teosofismo é uma escola moderna de pensamento universalista surgida no Séc. XIX com a fundação da Sociedade Teosófica por Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891) e outros, propondo um sincretismo entre doutrinas orientais, esoterismo ocidental e espiritualismo contemporâneo. Enquanto a teosofia, nas tradições antigas, busca uma união direta e experiencial com o divino através de práticas contemplativas e iniciáticas, o teosofismo estruturou-se como um movimento organizado com doutrina, mestres e textos próprios, sendo muitas vezes criticado por tentar universalizar símbolos e sistemas de origens diversas sem a devida contextualização iniciática ou antropológica. Assim, o teosofismo pode ser entendido como uma modernização e sistematização esotérica da ideia tradicional de teosofia, com ênfase em um ecumenismo espiritual, enquanto a teosofia antiga é uma via de gnōsis profundamente enraizada em linhas-ancestrais filosófico-religiosas específicas.
[10] Princeton University Press, 1993, pp. 58-75.
[11] Joscelyn Godwin. The Theosophical Enlightenment. State University of New York Press, 1994, pp. 218
[12] Peter Kingsley. Nos Lugares Escuros da Sabedoria. Vozes, 2024, pp. 36.
[13] Veja próxima seção.
[14] A palavra seira refere-se a uma cadeia ou linha ancestral contínua que conecta todos os seres – dos deuses superiores às almas humanas – em uma ordem descendente hierárquica, mas também em uma cadeia de afinidade e emanação. Ele diz: cada um de nós, seguindo a ordem da série divina, recebe um daimōn guardião de acordo com o deus regente da série à qual ele pertence. (De Mysteriis, IX:5). No pensamento de Jâmblico, a realidade está organizada em ordens divinas (taxeis) compostas por seres semelhantes em natureza, que pertencem à mesma seira. Cada alma humana, antes de encarnar, pertence ontologicamente a uma dessas séries, sendo presidida por um deus. O daimōn pessoal é designado a partir dessa série: ele atua como intermediário entre o ser humano e o deus que governa sua linha ancestral. Nessa perspectiva infere-se que seira é: i. uma estrutura espiritual vertical de correspondência entre os planos: o inteligível, o noético, o psíquico e o material; ii. uma garantia que cada ser está conectado a um princípio superior de sua própria natureza; iii. define a vocação e o destino espiritual da alma; iv. exige, na prática teúrgica, que o teurgo siga os rituais e invocações ligados à sua própria seira, pois só assim há harmonia com o Cosmos e eficácia espiritual. Como Shaw diz: Seirai são correntes do ser divino que ligam a alma à sua fonte divina. Cada alma nasce dentro de uma seira particular e, por meio da teurgia, retorna à sua origem dentro dessa cadeia. Gregory Shaw. Theurgy and the Soul: The Neoplatonism of Iamblichus. Angelico Press, 1995, pp. 135.
Assim, a ideia de seira nos protege contra o sincretismo desordenado: adorar um deus de outra seira, com a qual nossa alma não tem conexão ancestral, causa dissonância espiritual e pode ser ineficaz ou prejudicial – ideia que ecoa em Dion Fortune e nos fundamentos da magia iniciática ocidental.
[15] Dion Fortune. Preparação e Trabalho do Iniciado. Renovatio Livros, 2022, pp.38.
[16] Jâmblico. De Mysteriis, II:10. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 89.
[17] Jâmblico. De Mysteriis, III:31. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 140.
[18] Wouter Hanegraaff. New Age Religion and Western Culture. Brill, 1996, pp. 407.
[19] Dion Fortune. A Cabala Mística. Pensamento, 2012, pp.58.
[20] Proclo. Os Elementos da Teologia. Odysseus, 2024, pp. 302.
[21] René Guénon foi um influente metafísico, esoterista e crítico da modernidade nascido em Blois, França, em 15 de novembro de 1886, e falecido no Cairo, Egito, em 7 de janeiro de 1951. Fundador da chamada escola perenialista, Guénon dedicou-se ao estudo das tradições espirituais do Oriente e do Ocidente, buscando recuperar os princípios metafísicos universais que, segundo ele, haviam sido perdidos no mundo moderno. Autor de obras fundamentais como Introdução ao Estudo das Doutrinas Hindus (1921), O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos (1945) e O Homem e seu Devir segundo o Vedānta (1925), Guénon sustentava que toda civilização legítima é fundada sobre um eixo espiritual tradicional. No final da vida, converteu-se ao Islã e adotou o nome Abd al-Wāḥid Yaḥyá, vivendo no Egito até sua morte, onde aprofundou-se na tradição sufista. Seu pensamento exerceu profunda influência em autores como Frithjof Schuon (1907-1998), Ananda Coomaraswamy (1877-1947) e Mircea Eliade (1907-1986).
[22] Jâmblico. De Mysteriis, II:11. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 92.
[23] Dion Fortune. A Cabala Mística. Pensamento, 2012, pp.42.
[24] Jâmblico. De Mysteriis, I:27. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 39.
[25] Na Quimbanda, os assentamentos não são meros recipientes: são corpos vivos, animados ritualmente para conter a força mágica e divina dos espíritos Ganga. Chamá-los de telésticos é reconhecer que, assim como na antiga teurgia de Jâmblico, esses fundamentos são portais entre mundos, corpos sacralizados onde a potência espiritual se enraíza na matéria e se torna operativa. O kimbanda, como um verdadeiro teurgo afro-brasileiro, realiza a arte de encarnar o invisível no visível, transformando barro, ferro e sangue em tronos ctônicos, onde Exus e Pombagiras reinam com autoridade. Assim, cada assentamento é uma estrela caída na terra: um foco de poder, de destino e de transformação.
A palavra teléstico (do grego τελεστικός, telestikós) vem do verbo telein, que significa consagrar, realizar um rito, concluir algo sagrado ou levar algo a seu fim espiritual. No platonismo teúrgico, especialmente nos escritos de Jâmblico e seus sucessores como Proclo, um objeto teléstico é aquele que foi preparado ritualmente para se tornar um receptáculo de uma força divina ou espiritual – ou seja, animado por uma presença divina.
Um objeto teléstico (como uma estátua, imagem, pedra ou vaso) é vivificado ritualmente com o objetivo de servir como morada de uma divindade, inteligência espiritual ou daimōn, tornando-se então um ponto de contato concreto com o invisível.
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