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O ESPÍRITO DO DAEMONIUM

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

 

Anteriormente, eu mencionei que este livro é sobre goécia, um estado de Ser de comunicação com os espíritos do Cosmos. Na cosmovisão da Quimbanda, a goécia brasileira, todos os espíritos do Cosmos – encantados da natureza, espíritos de todo tipo de mortos, almas divinizadas e divindades – são diabos.[1] Então este livro não é apenas sobre goécia, mas também sobre a demonologia brasileira, que nasce de um intricado processo de miscigenação cultural que levou o Exu das antigas Macumbas a se tornar o Exu-Diabo da Quimbanda. A demonologia, de modo geral, é um movimento natural da cultura, do folclore e da religião, e se estabelece de maneira distinta no contexto destes ambientes. As religiões tentam sistematizar e estabelecer demonologias oficiais, demonizando, domesticando ou se apropriando dos espíritos locais ou regionais, tornando-os, por exemplo, em santos católicos, divindades hindus, bodhisattvas budistas e, Exus na Quimbanda. No folclore e na cultura se desenvolvem demonologias mais elásticas, de tipos diferentes a depender da geografia, dos costumes e crenças religiosas de um povo ou região. David Gordon White resume esse movimento natural que dá nascimento a demonologia de uma cultura da seguinte maneira:

 

Muitas, senão a maioria, das religiões do mundo situaram um grupo mutável de seres espirituais em algum lugar entre seus deuses geralmente benevolentes e seus demônios geralmente malévolos. Conhecidos pelos antigos gregos como daimōns e pelos antigos romanos como dæmons, sua característica mais distinta tem sido sua ambiguidade. Alternando entre benignos e malignos, poderosos e vulneráveis, inatos e remotos, terráqueos e aéreos, inertes e evanescentes, os dæmons frequentemente constituem uma horda sem nome cujos membros se transformam entre formas humanas, mamíferas e aviárias, de gênero frequentemente indeterminado. Historicamente, essa ambiguidade, essa indeterminação, conferiu aos dæmons uma mobilidade notável. Os dæmons sempre viajaram com mais leveza do que os deuses. Aqui, não estou falando de agência e mobilidade por parte dos próprios dæmons, mas sim dos movimentos e atividades dos humanos que buscam contato ou alívio deles. A dæmonologia, a «ciência dos dæmons», é um vernáculo religioso que, sem estar preso a restrições teológicas e institucionais exclusivistas, tem sido compartilhado por todas as culturas, modernas e não modernas, sendo incorporado em suas respectivas tradições literárias e escriturais, observâncias rituais, culturas materiais e programas iconográficos. Em sua maioria, é um vernáculo para o qual não é necessária intervenção hierática. Manipular ou transacionar com dæmons não requer um sistema de crença sofisticado ou uma instituição sacerdotal: o essencial é que as técnicas empregadas sejam eficazes. Gestos rituais, atos de fala sem conteúdo semântico (ou seja, feitiços), substâncias de poder silenciosas e dispositivos fabricados por humanos são o que os especialistas têm oferecido a seus clientes por milênios. Como os próprios dæmons, esses agentes humanos geralmente constituem um grupo ambíguo, sendo a linha divisória entre um feiticeiro e um contra-feiticeiro ou entre um mago negro e um mago branco muitas vezes situacional, se não reversível.[2]

 

Para um feiticeiro da Quimbanda, como veremos com mais detalhes no Capítulo 15, o mundo está cheio de diabos. Essa é a inspiração por trás da capa deste terceiro volume do Daemonium, que ilustra um feiticeiro imerso nas profundezas do Inferno, o Submundo ou reino ctoniano, em comunicação com os diabos da Quimbanda no Reinado do Chefe Império Maioral. O estado de Ser de comunicação com os diabos que caracteriza a goécia é o daemonium, a interface de conexão com o mundo dos espíritos. O feiticeiro ou goēs em comunicação com os diabos do Cosmos está em daemonioum, que é um adjetivo para se referir àquilo ou àquele que tem um ser divino, enviado pela divindade e que traz o destino e o fado.[3]

 

No mundo contemporâneo ocidental, no que concerne aos temas de estudo deste livro, duas ideias concorrem quando pensamos na imagem acústica (significante) e no conceito (significado) da palavra grega daimon.[4] Por um lado, da cultura greco-romana o daimon é um espírito tutelar intermediário, com influência nas tomadas de decisão do homem, o impulso por trás de suas escolhas e ações, o condutor, portanto, de seu destino, podendo trazer coisas boas (sorte, prazer e felicidade) ou coisas ruins (azar, infortúnio, dor e sofrimento). Por outro lado, da cultura judaico-cristã, o daimon ou daemonium sofreram mudanças de significados no judaísmo do período helenístico (entre 333-63 a.E.C.) quando esse movimento religioso já havia recebido o influxo do dualismo persa (no período pós-exílico 539-333 a.E.C.). Ademais, posteriormente, a conotação negativa das palavras veio a ser quase que predominante nas literaturas cristãs.[5] Então da ressignificação dos termos daimon e daemonium que vemos amplamente na Septuaginta, e do desenvolvimento da demonologia cristã com influência do judaísmo apocalíptico a partir do Séc. II d.E.C., nasce a concepção que o daimon, agora demônio, trata-se de um anjo caído.[6]

 

Sobre o daimon na cultura greco-romana, Lira diz:

 

Deve-se compreender que o termo daimōn poderia ser empregado para designar um poder divino, e não um deus pessoal. Assim, δαίμων seria o poder divino enquanto θεός seria o deus pessoal. Esse poder divino é entendido como uma espécie de poder sobrenatural e controlador que rege o destino, a sorte ou o acaso. Destarte, poder-se-ia usar intercambiavelmente a expressão κατὰ δαίμονα (de acordo com daimōn) ou τύχῃ (pela sorte ou por acaso). Em Aves, Aristófanes emprega daimōn com o mesmo sentido de sorte, acaso ou destino: σὺ δέ μοι κατὰ δαίμονα καὶ τινα συντυχίαν ἀγαθὴν ἥκεις ἐμοὶ σωτήρ (tu tens vindo a ser, pelo destino e por uma boa sorte, um salvador para mim). Note que o emprego de daimōn pressupõe um sentido de destino e de sorte juntamente com συντυχία (incidente, ocorrência, chance, acaso, acidente, feliz evento). A relação do daimōn com o destino não é algo sem propósito. Esse significado se fundamenta na ideia do daimōn como uma entidade ou poder que controla ou rege individualmente o destino de cada pessoa. O daimōn expressa a ideia de dar uma herdade, de lotear algo, de distribuir a fortuna ou a sorte.


No entanto, os gregos antigos também tinham uma concepção do daimōn como uma entidade personificada, ou seja, uma espécie de gênio do bem ou do mal que protegia uma família ou uma pessoa. No contexto dos cultos domésticos e municipais da Grécia Antiga, os daimones eram espíritos dos mortos, seres divinos ou divinizados, deidades, espíritos guardiões, gênios, e por extensão, guardiões do destino, divindades que exercem influências sobre o destino dos homens (representação do destino). Os daimones poderiam atuar ambiguamente, proporcionando o bem ou o mal de acordo com a devoção (ou de acordo com o destino) de alguém.[7]

 

Frater Archer também ilustra essa concepção greco-romana acerca do daimon assim:

 

Originalmente a palavra daimon não descrevia uma categoria particular de seres espirituais, mas sim um modo peculiar de atividade. Estar sob a influência de um daimon era estar em um certo estado [de Ser]. Assim como distinguimos os estados de transe e gnose do estado da mente normal desperta, os gregos antigos usavam a palavra daimon para indicar um estado específico de ser que era diferente da consciência cotidiana normal. Este estado não estava confinado à experiência humana, pois quase tudo podia ser afetado por ele: humanos, heróis e até deuses.

Mesmo que todas as declarações sobre ele [o daimon] possam ser muito difíceis, a definição que ajuda a abordar o tópico é aquela que o entende como uma imensa força motriz, nem boa nem má, e que aumenta o nível de experiência por meio de uma tensão perigosa.


Infelizmente, ao contrário da tríade de thumos, eros e logos de Platão, os gregos antigos nunca parecem descrever a «imensa força motriz» do daimon de nenhuma forma abstrata ou generalizada. [...] O daimon sempre representou algum tipo de força oculta, algum poder sem nome que dominou as pessoas [...]. Sob a influência do daimon, as causas das ações de uma pessoa se tornaram arcanas e veladas para o reino humano. Algo tomava conta delas e começava a trabalhar através delas. Era o poder do daimon que podia transformar qualquer ser até então autodeterminado em um agente voluntário de alguma força oculta.


[...] Com tal interpretação do termo, a importância de estar em bons termos com o daimon se torna óbvia. Era uma força oculta e invisível que só podia ser percebida indiretamente por meio de suas ações e efeitos. Era o poder motriz por trás das marés do destino e, portanto, por trás da fortuna da vida de uma pessoa.


Agora podemos entender por que o homem comum experimentava seu daimon não apenas como profundamente estranho, mas principalmente como algo a ser temido. Não era porque estava ligado a qualquer tipo específico de ser espiritual ou categoria moral, mas simplesmente porque era completamente desconhecido e além do controle humano. O daimon surgiu da escuridão, tomou posse dos seres que usou como seus agentes por um período de tempo e então desapareceu novamente. Um homem não podia controlar se era o sujeito de um daimon bom ou mau, que trazia fortuna ou infortúnio. É assim que os termos daimon «bom» e «mau», o agathodaimon e o kakodaimon, precisam ser compreendidos. Originalmente, eles não se referiam a diferentes categorias de seres espirituais, mas seus efeitos, para o bem ou para o mal, por trás das ações e traços humanos. O daimon definia a qualidade do destino.[8]

 

No contexto bíblico as palavras daimon e daemonium tomam significados completamente distintos daqueles encontrados na cultura greco-romana. A origem dessa mudança de significado surge justamente com o contato entre o judaísmo e o dualismo zoroastrista (no período do Exílio e posteriormente). O Zoroastrismo pregava o combate entre as forças do bem e do mal. As forças do bem eram lideradas por Ahura Masda (deus do bem); e as forças do mal, lideradas por Ahriman (deus do mal); cada qual com seus exércitos de anjos, arcanjos, demônios e espíritos inferiores. Os antigos deuses da Pérsia foram relegados a uma condição de espíritos menores e de demônios maléficos que caracterizavam o pecado e incitavam os homens a se desviar da verdade através de doutrinas religiosas falsas. Acrescentaram aí as ideias sobre o Fim dos tempos, o Julgamento Final, a Vitória do Bem, a destruição dos poderes do mal e uma Nova Era.[9]

 

Na cosmovisão de grimórios como A Goécia de Salomão ou o Grimorium Verum, essas duas ideias concorriam: por um lado os espíritos desses grimórios podiam ser espíritos intermediários, mas por outro, anjos caídos, i.e. demônios. No contexto da Quimbanda, que sofre a incursão diabólica dos espíritos do Verum a partir da síntese de Aluísio Fontenelle,[10] essas duas ideias, aparentemente antagônicas, convergiram nos Espíritos Gangas: Exu é tanto um diabo quanto um espírito intermediário.

 

O Espírito dos volumes Daemonium converge todo esse desenvolvimento no sentido que se torna uma interface de comunicação com a miríade de diabos do Cosmos. É o Espírito de Cipriano Feiticeiro.



NOTAS:

[1] Veja Capítulos 12 e 15.

[2] David Gordon White. Daemons Are Forever: Contacts and Exchanges in the Eurasian Pandemonium. The University of Chicago Press, 2023, pp. 2.

[3] David Pessoa de Lira. A Demonologia no Ambiente do Novo Testamento: Uma Análise Ideológico-Conceptual da Palavra daimōn no Corpus Hermeticum. Protestantismo em Revista, Vol. 25, 2011, pp. 91.

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

[6] Veja Capítulos 12, 13 e 15.

[7] David Pessoa de Lira. A Demonologia no Ambiente do Novo Testamento: Uma Análise Ideológico-Conceptual da Palavra daimōn no Corpus Hermeticum. Protestantismo em Revista, Vol. 25, 2011, pp. 91.

[8] Frater Archer. Holy Daimon. Scarlet Imprint, 2023, pp. 55-6.

[9] David Pessoa de Lira. A Demonologia no Ambiente do Novo Testamento: Uma Análise Ideológico-Conceptual da Palavra daimōn no Corpus Hermeticum. Protestantismo em Revista, Vol. 25, 2011, pp. 93-4.

[10] Veja Capítulo 13.




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