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POSSESSÃO DIVINA VS INCORPORAÇÃO MEDIÚNICA

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori

Série: Teurgia & Cabalá Crioula

  

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

INTRODUÇÃO

 

O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através desse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca. Mas tão logo a realidade cotidiana torna a ingressar na consciência, ela é sentida como tal com náusea; uma disposição ascética, negadora da vontade, é o fruto de tais estados. Nesse sentido, o homem dionisíaco se assemelha a Hamlet: ambos lançaram alguma vez um olhar verdadeiro à essência das coisas, ambos passaram a conhecer e a ambos enoja atuar; pois sua atuação não pode modificar em nada a eterna essência das coisas, e eles sentem como algo ridículo e humilhante que se lhes exija endireitar de novo o mundo que está desconjuntado.[1]

 

Prefiro não utilizar o termo incorporação mediúnica, uma expressão que, embora popularizada, carrega distorções semânticas oriundas do espiritismo e amplamente absorvidas pelas casas de àṣẹ na cultura afro-brasileira. Expressões como bolar ou virar no santo e baixar a entidade tentam descrever esse fenômeno, mas frequentemente falham em capturar sua profundidade. A ideia de que a incorporação ocorre com a permissão do médium, em contraste com a possessão – entendida como uma intrusão não consentida de uma entidade –, é uma simplificação equivocada. Essa distinção revela mais os limites culturais do conceito do que o fenômeno em si.

 

No platonismo teúrgico, encontramos um termo muito mais rico: katōchē. Termo grego que significa retenção ou posse e descreve o estado em que o corpo ou a alma do teurgo é tomado por uma força divina. Aqui, o objetivo não é simplesmente ceder espaço, mas se tornar um receptáculo das virtudes dos deuses, um canal por onde a luz dos deuses atua diretamente sobre a alma. Esse processo está longe de ser uma invasão vulgar ou um fenômeno sinistro, tal qual as famigeradas possessões demoníacas que abalaram e antagonizaram o poder clerical a partir da Idade Média.[2] No platonismo teúrgico katōchē é uma prática ritualística de transcendência e iluminação, um movimento de ascensão espiritual em que a alma é moldada para se tornar um ovo luminoso deificado, o augoeides. A possessão divina, assim compreendida pelos teurgos platônicos, transcende a visão limitada de permissão ou intrusão. Não é algo negociado; é algo que simplesmente acontece no curso do ritual.

 

Em katōchē, o construto pensante – ou seja, a mente racional – nunca é o agente ativo. No máximo, é uma testemunha passiva, em estado consciente, ou um recipiente em repouso profundo, num sono sem sonhos. A consciência humana não comanda, apenas testemunha silenciosamente. A mente (mantis) não possui envergadura ou capacidade para inferir ou compreender a luz dos deuses. Tal compreensão está para além do logos; o homem pode apenas conhecer os deuses na gnōsis. Nesse sentido, as classificações contemporâneas que se originam na cultura afro-brasileira a partir do espiritismo são insuficientes para abordar a complexidade desses fenômenos. Prefiro, portanto, a semântica robusta e filosófica do platonismo teúrgico, que oferece uma visão técnica mais substancial.

 

E para muito além do platonismo teúrgico, na concepção de religiosos, iniciados nos mistérios, magos (magoi) e feiticeiros (goētes) do Mundo Antigo e da Antiguidade tardia, a ideia de dar permissão à deidade seria quase risível. Nas concepções religiosas deste período o homem não podia nada para com os deuses. A relação do homem religioso com os deuses nessa época, segundo a moral hipócrita da sociedade moderna ocidental, era de estupro: os deuses invadiam e se apossavam do corpo e da alma.



A KATŌCHĒ NO MUNDO ANTIGO:

A POSSESSÃO COMO EXPERIÊNCIA DIVINA

 

Na religião grega antiga, o conceito de katōchē ocupa um papel central na compreensão das experiências espirituais que conectavam os homens aos deuses. Esse estado transcendental era visto como um momento em que uma força divina tomava o corpo ou a mente de um indivíduo, permitindo a fusão entre o mortal e o imortal, ou melhor, o imortal por meio do mortal. A katōchē não era apenas um fenômeno espiritual, mas também um elemento ritualístico essencial nos cultos de mistérios, na teurgia e nos rituais populares.

 

Diversas divindades gregas estavam associadas à possessão e ao transe. Dionísio, por exemplo, era o deus do êxtase e da loucura sagrada, que frequentemente tomava seus devotos durante os rituais. Da mesma forma, Apolo, através do oráculo de Delfos, possuía a pítia para revelar profecias.

 

Durante o estado de katōchē, o corpo humano era visto como um intermediário entre os mundos mortal e imortal. O indivíduo perdia temporariamente seu controle consciente e permitia que o divino agisse diretamente através dele.

 

Nos cultos de mistérios, como os eleusis e os órficos, a katōchē desempenhava um papel fundamental. Esses rituais, muitas vezes secretos, buscavam oferecer aos iniciados uma experiência de união com o divino e uma compreensão mais profunda dos mistérios da vida e da morte.

 

Nos mistérios de eleusis, nos rituais dedicados a Deméter e Perséfone, os participantes passavam por um processo de purificação e renascimento simbólico. O estado de katōchē podia ser induzido por meio de cânticos, danças e substâncias enteógenas, permitindo que os iniciados experimentassem a presença divina de forma direta.


Na tradição órfica, katōchē era uma ferramenta para transcender os ciclos de reencarnação e alcançar a união com os deuses. Os rituais envolviam música, poesia e dança, que criavam um ambiente propício para o transe.

 

Dionísio, o deus do êxtase e da transgressão, era a divindade mais associada ao estado de katōchē. Seus rituais, marcados por danças frenéticas, cânticos e o consumo de vinho, buscavam levar os participantes a um estado de êxtase em que as fronteiras entre o indivíduo e o cosmos se dissolviam.

 

Nas celebrações dionisíacas, as bakkhai (bacantes) eram tomadas pelo espírito de Dionísio, manifestando um comportamento frenético e extático. Esse estado de possessão divina era visto como um momento de libertação e conexão com as forças primordiais da vida.

 

Dionísio representava a ruptura das normas sociais e a aceitação do caos como elemento criativo. A katōchē induzida em seus rituais era uma forma de transcender as restrições da vida cotidiana e se reconectar com a essência divina.

 

A teurgia, uma prática espiritual desenvolvida por filósofos platônicos como Jâmblico, colocava katōchē no centro de seus rituais. Para os teurgos, ser possuído por um deus era a chave para alcançar a deificação através de uma purificação espiritual. A katōchē era induzida por cânticos e símbolos sagrados que conectavam o praticante às forças superiores. Durante esse estado, o teurgo se tornava um instrumento para a manifestação divina, recebendo conhecimento ou poder espiritual diretamente dos deuses.

 

Os Papiros Mágicos Gregos descrevem rituais que induzem possessão divina ou estados de transe, muitas vezes com o uso de músicas, fórmulas mágicas e ervas. Esses textos sugerem que a katōchē era uma prática comum para acessar o divino e realizar feitos extraordinários, como profecias ou curas.

 

No contexto filosófico, a katōchē era mais do que uma experiência espiritual; era um momento de fusão entre o humano e o divino, que revelava a natureza transcendente da existência. Durante o estado de katōchē, o indivíduo transcendia sua identidade pessoal e se tornava parte de algo maior. Essa experiência era vista como um vislumbre da unidade entre o mortal e o imortal.

 

No platonismo teúrgico, o estado de katōchē era associado à purificação da alma e à transformação em augoeides (ovo luminoso), um símbolo de deificação e eternidade.

 

Assim, na religião grega antiga, katōchē era uma prática espiritual que transcendia as barreiras entre o humano e o divino. Seja nos cultos de mistérios, nos rituais de Dionísio ou na teurgia, esse estado de possessão divina era um portal para a transformação pessoal e a comunhão com o Cosmos. Mais do que uma experiência isolada, a katōchē era uma expressão da busca universal por transcendência, onde o caos, o êxtase e a fusão com o Sagrado revelavam o sentido mais profundo da existência.



MANÍA & KATŌCHĒ

 

A relação entre manía e katōchē no pensamento grego antigo encontra uma profunda conexão na ideia de estados alterados de consciência que facilitam a transcendência e a comunhão com o divino. Ambos os conceitos envolvem a suspensão das barreiras racionais e a entrega do indivíduo a forças superiores, permitindo a fusão do humano com o Sagrado. A manía, frequentemente associada a Dionísio, refere-se ao êxtase e à loucura sagrada que levam o participante a um estado de desordem criativa, enquanto a katōchē, especialmente no contexto teúrgico, descreve a possessão divina como uma prática ritual intencional e transformadora.

 

Nos rituais dionisíacos, a manía provoca a ruptura das normas sociais e a dissolução do Ego, permitindo a união temporária com o divino em meio ao caos do êxtase. Por sua vez, a katōchē, vista como um processo mais estruturado no platonismo teúrgico, busca moldar a alma em direção à deificação, usando cânticos, símbolos e práticas ritualísticas que conectam o teurgo às forças superiores. Ambos os estados enfatizam o papel do corpo e da mente como intermediários entre o mortal e o imortal, e enquanto a manía sublinha o poder do desejo e do frenesi como instrumentos de transformação, a katōchē refina essa experiência ao orientar o êxtase para objetivos espirituais mais elevados. Assim, tanto na manía quanto na katōchē, o abandono do controle consciente se torna uma chave para acessar as dimensões mais profundas do Cosmos e do Ser.

 

Os estados de manía no pensamento grego antigo eram profundamente associados a experiências de êxtase e possessão divina, sendo compreendidos como manifestações de inspiração e conexão com o transcendente. Diferentemente da visão contemporânea que frequentemente associa a manía a desordens psiquiátricas, os gregos antigos viam-na como um estado alterado de consciência que podia ter origem divina e desempenhar um papel crucial em práticas religiosas, artísticas e filosóficas.

 

Platão, especialmente em seus diálogos como o Fedro e o Ion, é uma das fontes mais influentes sobre o tema. Ele categorizava a mania em quatro tipos distintos, cada um relacionado a uma deidade e associado a diferentes aspectos da vida humana:

 

Manía profética: Inspirada por Apolo, relacionava-se à divinação e à comunicação com o divino. Era a base para a prática oracular, como no caso da sacerdotisa de Delfos que, em transe extático, transmitia mensagens dos deuses.

 

Manía teléstica ou ritualística: Associada a Dioniso, este tipo de mania era alcançada em rituais extáticos, envolvendo música, dança e consumo de substâncias. Representava a quebra das barreiras racionais, permitindo uma conexão direta com forças cósmicas e um retorno ao estado primordial da alma.

 

Manía poética: Inspirada pelas Musas, tratava-se do êxtase criativo que permitia aos poetas compor obras sublimes, consideradas mais fruto da inspiração divina do que do esforço humano.

 

Manía erótica: Relacionada a Afrodite e Eros, era a força que conduzia as almas ao amor ideal e à contemplação do belo, funcionando como um veículo para a ascensão espiritual em direção ao mundo das Ideias.

 

Os estados de manía eram frequentemente explorados em cultos de mistério, como os de Dioniso e Orfeu, onde o objetivo era transcender os limites do Eu e atingir uma união mística com o divino. Esse êxtase era entendido como uma forma de transformação, libertação e purificação da alma, preparando-a para sua jornada além do mundo material.

 

Em suma, a manía, no contexto grego antigo, era vista como uma experiência que transcende o domínio racional e conecta o humano ao divino. Embora fosse considerada perigosa se não adequadamente guiada, quando bem orientada, representava uma das vias mais poderosas para acessar verdades superiores e atingir estados de iluminação espiritual.



O REINO DA LIRA & A CULTURA DO ÊXTASE:

PORTAIS PARA O DIVINO E A TRANSCENDÊNCIA

 

O Reino da Lira, um dos reinos da cosmogonia da Quimbanda, encontra profundas ressonâncias com a cultura do êxtase associada ao culto de Dionísio na Grécia antiga e com o conceito de katōchē – a possessão divina – praticado nos mistérios e rituais da Antiguidade. Esses sistemas espirituais, embora separados por contextos históricos e culturais, compartilham uma essência comum: a celebração do prazer, da arte e do êxtase como caminhos para a transcendência e a fusão com o divino.

 

Nos mistérios do Reino da Lira, a música, a dança, o álcool e os prazeres boêmios são instrumentos espirituais que promovem a conexão com as deidades ctonianas da Quimbanda através da transcendência dos limites racionais. Exus e Pombagiras ligados à boemia e ao poder transformador da arte, como o Exu Rei das Sete Liras, agem como mediadores entre o caos e ordem, dissolvendo suas delimitações em um êxtase criativo de força e poder.

 

A música, elemento central no Reino da Lira, é vista não apenas como entretenimento, mas como um portal que rompe barreiras psicológicas e espirituais. Assim como a música dionisíaca levava os participantes a estados de transe, no Reino da Lira ela atua como um condutor para o transe e a possessão divina. As práticas desse reino subvertem os limites sociais e morais, transformando o prazer e o caos em forças criativas. O álcool e a dança são usados para desestruturar o Ego, permitindo a possessão divina e o contato com os Gangas. Aqui, o prazer não é superficial, mas uma ferramenta para acessar as dimensões mais profundas da existência.

 

Na Grécia Antiga, Dionísio, o deus do vinho, do teatro e do êxtase, era o patrono dos estados alterados de consciência. Seus cultos envolviam rituais onde a música frenética, a dança e o vinho induziam a katōchē, permitindo que os participantes fossem tomados pelo deus. O culto dionisíaco era caracterizado por uma dissolução da individualidade. Durante o êxtase, os participantes experimentavam a fusão com o todo, onde as distinções entre o eu, os outros e o Cosmos desapareciam.

 

Dionísio simbolizava a ruptura com a ordem e o controle, oferecendo aos seus seguidores um espaço para explorar os aspectos primordiais e caóticos da existência. Esse mesmo espírito é encontrado no Reino da Lira, onde o caos criativo é celebrado como parte do caminho espiritual.

 

O estado de katōchē, presente tanto nos rituais gregos quanto nas práticas espirituais modernas, é o momento em que o praticante é tomado por uma força divina. Seja no contexto de Dionísio ou nos mistérios do Reino da Lira, a possessão divina envolve a entrega total, onde o Ego é suprimido para que forças superiores, i.e. os espíritos Ganga, possam agir. Esse arcano é um elemento comum entre a Quimbanda e os mistérios gregos, marcando a transcendência das limitações geográficas e a universalidade das técnicas de feitiçaria.

 

Tanto no Reino da Lira quanto nos rituais dionisíacos, a música e a dança são ferramentas que facilitam a katōchē, permitindo que o corpo e a mente do praticante sejam abertos ao divino. Essa fusão de arte e êxtase cria uma conexão direta com as deidades convocadas.

 

Um ponto central de convergência entre o Reino da Lira e os cultos dionisíacos é a celebração da arte como um meio de transcendência. No teatro grego, as tragédias dionisíacas exploravam as profundezas da psique humana, enquanto no Reino da Lira, a música, a dança e o frenesi do transe revelam os aspectos mais ocultos da alma, espelhados pelos Gangas no momento da possessão divina. Assim como a tragédia dionisíaca refletia a tensão entre ordem e caos, a música no Reino da Lira expressa a luta entre o prazer e a introspecção espiritual. Ambos usam a arte como uma ponte entre o humano e o divino.

 

E em ambos os contextos, a experiência estética não é apenas entretenimento, mas uma forma de transcendência. O toque de Exu permite que o kimbanda acesse as realidades ocultas do Cosmos, seus abismos mais profundos, e transforme sua compreensão do mundo e do ser humano.

 

Tanto o culto de Dionísio quanto o Reino da Lira reconhecem o desejo como uma força espiritual poderosa. O êxtase provocado pela música, pelo vinho e pela dança não é uma fraqueza, mas uma forma de comunhão com o divino. No Reino da Lira o prazer é um caminho para explorar as profundezas da psique e as forças espirituais que moldam a própria existência. De maneira semelhante, Dionísio celebra o desejo como um elemento central da experiência humana, capaz de elevar ou destruir, mas sempre transformador.

 

Tanto nos rituais dionisíacos quanto nos mistérios da Lira, a subversão das normas sociais cria um espaço onde o kimbanda pode se libertar das restrições sociais e explorar dimensões espirituais mais amplas. É uma catarse.

 

Finalmente, o Reino da Lira, os rituais de Dionísio e a prática de katōchē compartilham uma visão de espiritualidade que valoriza o prazer, o êxtase e a arte como meios para acessar o divino. Em todos esses sistemas, a música e a dança funcionam como portais para estados de possessão e transcendência, dissolvendo as barreiras entre o humano e o sagrado. No Reino da Lira, a cultura do êxtase se manifesta como uma celebração da vida em toda a sua intensidade, onde o caos, o prazer e a arte não são apenas instrumentos, mas caminhos para a transformação espiritual. Assim como nos mistérios gregos, esse reino espiritual abraça o desejo e a subversão como forças criativas, convidando os praticantes a explorar os limites da existência e a se conectar com o Cosmos.

 

Todo toque, toda gira, é no Reino da Lira.


 

NIETZSCHE & A POSSESSÃO DIONISÍACA

 

Valiosos foram os argumentos de Friedrich Nietzsche sobre a ideia do transe e da possessão dionisíaca como experiências fundamentais para compreender a relação entre o humano, o divino e o processo criativo. Em sua obra O Nascimento da Tragédia, Nietzsche contrasta as forças apolíneas e dionisíacas como princípios complementares e conflitantes da existência. Enquanto o apolíneo representa a ordem, a racionalidade e a medida, o dionisíaco simboliza o êxtase, o caos e a fusão com o todo. O transe e a possessão dionisíaca, nesse contexto, são expressões máximas da força vital que rompe as barreiras do indivíduo e o conecta ao pulsar da vida.

 

Para Nietzsche, o transe dionisíaco é um estado de ruptura com a individualidade, no qual o sujeito deixa de se perceber como um ser isolado e se dissolve na totalidade da existência. Esse estado é caracterizado pela perda do Ego, pelo êxtase e pela comunhão com forças primordiais da natureza.

 

O transe dionisíaco é um movimento de superação das limitações impostas pela racionalidade apolínea. Em oposição à lucidez moderada do espírito apolíneo, o êxtase dionisíaco emerge como um momento de liberdade radical, onde as fronteiras entre o eu e o outro se dissolvem. Essa fusão é, para Nietzsche, uma experiência regeneradora, pois conecta o indivíduo à força criadora e destruidora do Cosmos.

 

No transe, o humano é tomado por uma energia vital incontrolável, um fluxo de emoções intensas e contraditórias. Dioniso não apenas representa o deus do vinho e da celebração, mas também do sofrimento, da destruição e da renovação. Assim, a possessão dionisíaca não é um estado exclusivamente prazeroso; ela é uma rendição às forças primordiais que moldam a existência, muitas vezes através do caos e da dor.

 

Nietzsche identifica no estado dionisíaco o motor da criação artística. Para ele, o artista dionisíaco não cria a partir da calma ou do controle, mas é arrebatado por uma força criativa que transcende sua vontade consciente. Esse estado de possessão é o momento em que o artista se torna um veículo para a expressão do universal.

 

Sob a influência de Dioniso, o artista transcende sua individualidade e torna-se uma voz da natureza. Esse processo lembra a possessão ritualística dos cultos antigos, onde o corpo do possuído era tomado pelo divino. Para Nietzsche, a tragédia grega nasceu desse impulso dionisíaco, combinando a intensidade emocional da música e da dança com a estrutura narrativa apolínea.

 

Na tragédia, a fusão das forças apolíneas e dionisíacas cria uma obra que reflete tanto a ordem quanto o caos da existência. O transe dionisíaco fornece a energia bruta e vital que é moldada pelas formas apolíneas, resultando em uma experiência estética que celebra a vida em toda a sua complexidade.

 

Nietzsche também usa o transe dionisíaco como uma ferramenta para criticar a cultura moderna que, em sua visão, perdeu o contato com essas forças primordiais. Ele argumenta que o racionalismo excessivo e o moralismo cristão reprimiram a vitalidade dionisíaca, substituindo-a por uma existência apática e conformista. A modernidade, ao exaltar a razão e o progresso linear, renegou o êxtase e a irracionalidade como forças criativas. Para Nietzsche, isso resultou em uma cultura decadente, incapaz de abraçar o caos necessário para a renovação.

 

Então Nietzsche propõe um retorno às forças dionisíacas como uma forma de revitalizar a cultura e a existência. Ele vê na posse dionisíaca não apenas um estado de êxtase individual, mas uma possibilidade de transformação coletiva, onde a humanidade poderia reconectar-se com sua energia vital.

 

Para Nietzsche, o transe dionisíaco é uma forma de lidar com o absurdo da existência. Ele reconhece que a vida é cheia de sofrimento, caos e incerteza, mas argumenta que, em vez de negar esses aspectos, devemos abraçá-los como parte essencial da experiência humana. O estado de possessão dionisíaca ensina a aceitar e amar a vida em todas as suas facetas, incluindo o sofrimento. Esse amor ao destino (amor fati) é a essência da filosofia nietzschiana, que celebra a vida como um ciclo eterno de criação e destruição.

 

O transe dionisíaco, como experiência de fusão com o todo, reflete a ideia do eterno retorno, onde cada momento da existência é repetido infinitamente. Nesse sentido, o êxtase dionisíaco é uma forma de viver plenamente o presente, sem arrependimentos ou expectativas.

 

Nietzsche era fascinado pelos cultos de mistérios e pelos rituais dedicados a Dioniso na Grécia antiga. Ele via nesses rituais um modelo para sua visão filosófica, pois eles incorporavam a ideia de que a vida só pode ser compreendida e celebrada quando os limites do Ego são superados.

 

Nos rituais dionisíacos, a música e a dança desempenhavam um papel central em induzir o transe. Nietzsche enxergava nisso uma metáfora para a existência: a necessidade de se perder no ritmo da vida, em comunhão com os outros e com as forças cósmicas.

 

Para Nietzsche, portanto, Dioniso é o deus trágico por excelência, pois representa tanto a destruição quanto a renovação. A possessão dionisíaca é uma forma de abraçar o trágico e encontrar significado no aparente caos da existência.

 

Concluindo, a possessão dionisíaca em Nietzsche não é apenas uma experiência religiosa ou estética, mas um modelo existencial. Ela nos ensina a superar as limitações impostas pelo Ego e pela racionalidade, permitindo-nos experimentar a vida em sua plenitude caótica e criativa. Para Nietzsche, o transe dionisíaco é uma forma de renascimento contínuo, onde o indivíduo se reconecta com as forças primordiais da existência, transformando o sofrimento e o caos em celebração e criação. Dioniso, assim, permanece não apenas como um deus da Antiguidade, mas como um símbolo eterno da vitalidade humana.



DESCONSTRUÍNDO A POSSESSÃO DIABÓLICA

 

Essa escolha semântica acerca dos termos sobre o fenômeno paranormal da possessão divina também lança luz sobre a experiência extática com os Gangas da Quimbanda, cuja iconografia diabólica pode gerar confusão entre os profanos, que associam a possessão demoníaca aos toques inebriantes da Quimbanda. Sim, os Gangas são vistos como diabos, e essa é, de fato, a intenção. A aparência demoníaca, com suas associações de medo e rebeldia, é uma declaração simbólica contra o imaginário cristão ocidental e o status quo espiritual que ele representa. Contudo, essa imagem diabólica não reflete sua essência; trata-se de um símbolo, uma forma arquetípica no sentido platônico. Os Gangas são, na realidade, divindades ctonianas, almas glorificadas no Submundo, detentoras de sabedoria ancestral e poder transformador.

 

A Quimbanda com sua estética diabólica de oposição e resistência, emprega essa iconografia como uma ferramenta de ruptura. Sob a máscara de diabos, os Gangas revelam uma conexão com as forças primordiais da terra, aquelas que o cristianismo tentou suprimir, mas que sobrevivem como símbolos de liberdade e autenticidade espiritual. Não se trata de demonizar ou glorificar o mal, mas de reconhecer que na sombra reside a mesma luz que molda o mundo visível.

 

A katōchē no contexto da Quimbanda é àquela mesma do contexto religioso do Mundo Antigo e Antiguidade, muito antes da invenção da possessão demoníaca pelos teólogos da Igreja: estabelecer pontes entre o sagrado e o terreno, entre o visível e o invisível; pontes estas que nos convidam não apenas a presenciar o mistério, mas a habitá-lo. O corpo e a alma tornam-se, então, templos de um divino que desafia definições simples, um divino que é tanto resistência quanto transcendência.

 

Michel Foucault não dedicou uma análise direta e extensa à possessão demoníaca como tema central, mas suas reflexões sobre o poder, o corpo, a loucura e o discurso fornecem uma base interessante para interpretar a questão da possessão demoníaca em diferentes momentos históricos e culturais. Mais ainda, suas análises ajudam a desconstruir a ideia romântica que se desenvolveu no Ocidente acerca da possessão demoníaca. Abaixo, analiso como as ideias de Foucault podem ser relacionadas à este fenômeno, especialmente no contexto de suas obras principais, como História da Loucura na Idade Clássica e Vigiar e Punir.

 

Para Foucault, o corpo humano é um território onde se inscrevem as relações de poder. A possessão diabólica pode ser interpretada como um fenômeno em que o corpo se torna um campo de disputa simbólica e material entre forças religiosas, sociais e culturais.

 

Na Idade Média e no início da Modernidade, a possessão demoníaca era vista como uma invasão do corpo por uma força externa, um demônio. Contudo, Foucault poderia argumentar que o que estava em jogo era menos a invasão em si e mais o controle do corpo possuído por instituições religiosas. A Igreja, como detentora do saber sobre a possessão, exercia poder ao determinar quem estava possuído e ao realizar exorcismos, reforçando sua autoridade sobre os corpos dos fiéis.

 

Assim como a disciplina molda corpos dóceis para o trabalho e a obediência, a possessão demoníaca também pode ser vista como um meio de disciplinar corpos desviantes. A acusação de possessão recaía frequentemente sobre pessoas que apresentavam comportamentos considerados anormais ou subversivos, como mulheres rebeldes ou indivíduos que desafiavam as normas religiosas. Foucault explora como o discurso define o que é verdadeiro em uma sociedade. A possessão demoníaca, nesse sentido, pode ser vista como uma construção discursiva que reflete as ansiedades e o poder das instituições que a definem.

 

O discurso da Igreja sobre a possessão demoníaca servia para reforçar a distinção entre o sagrado e o profano, entre o normal e o anormal. A demonologia e os rituais de exorcismo eram formas de saber-poder que produziam a verdade sobre o fenômeno da possessão. Por meio desse discurso, a Igreja monopolizava a explicação e o tratamento do fenômeno, consolidando sua hegemonia espiritual e cultural.

 

Em História da Loucura na Idade Clássica, Foucault argumenta que o louco era excluído da sociedade porque sua condição desafiava a racionalidade emergente. De maneira semelhante, a possessão demoníaca pode ser vista como uma forma de patologização do diferente ou do outro na sociedade medieval e renascentista. A distinção entre loucura e possessão nem sempre era clara, e ambos os fenômenos estavam ligados ao controle social e ao uso de práticas disciplinares.

 

Foucault analisa como rituais e práticas disciplinares servem para organizar e perpetuar relações de poder. O exorcismo, nesse contexto, pode ser entendido como um ritual que não apenas busca libertar o possuído, mas reafirma a autoridade das instituições religiosas.

 

Assim como o suplício descrito em Vigiar e Punir era uma forma pública de exercer poder sobre o corpo, o exorcismo também pode ser visto como um espetáculo de poder. Ao expulsar o demônio em um ato visível e carregado de simbolismo, a Igreja demonstrava sua supremacia espiritual e reafirmava sua legitimidade perante a comunidade.

 

Em A História da Sexualidade, Foucault aborda o papel da confissão como um dispositivo de controle. No caso da possessão demoníaca, a confissão frequentemente desempenhava um papel central, pois a pessoa possuída era encorajada (ou forçada) a verbalizar seus pecados e renunciar ao Diabo. Esse ato consolidava o poder da Igreja como mediadora entre o humano e o divino.

 

Embora a possessão diabólica possa ser vista como uma forma de controle, ela também pode ser interpretada, à luz de Foucault, como uma forma de resistência. Para aqueles que eram excluídos ou marginalizados – como mulheres, camponeses e indivíduos considerados loucos –, a possessão diabólica poderia ser uma forma simbólica de expressar resistência contra as normas opressivas. O comportamento atribuído ao demônio muitas vezes desafiava as expectativas sociais, como obediência e conformidade, e essa é uma das características fundamentais dos toques de Quimbanda, o sabbath brasileiro das bruxas. Ao expressar uma força demoníaca dentro de si, o possuído também subvertia as hierarquias religiosas e culturais, colocando-se em um espaço ambíguo onde as instituições precisavam intervir, mas onde também eram desafiadas.

 

Embora Foucault não tenha tratado diretamente da possessão diabólica, sua análise das estruturas de poder, discurso e controle corporal nos permite reinterpretar o fenômeno como um produto histórico e cultural, mais do que uma manifestação puramente espiritual. A possessão diabólica, nesse sentido, é um campo simbólico onde diferentes forças – religiosas, políticas e culturais – entram em disputa, moldando não apenas o corpo e a mente do possuído, mas também a própria sociedade que testemunha e reage a esse fenômeno.

 

 

Concluindo, a análise dos estados de possessão divina, seja por meio do conceito grego de katōchē, seja pela visão contemporânea dos toques e possessões demoníacas da Quimbanda, revela uma busca universal por transcendência e conexão com o Sagrado. Essas experiências ultrapassam a dicotomia entre o profano e o divino, mostrando que o humano e o Cosmos se entrelaçam em um jogo dinâmico de forças. Seja na loucura sagrada de Dionísio, no êxtase ritualístico do Reino da Lira ou na possessão dionisíaca proposta por Nietzsche, a entrega à força superior simboliza um rompimento com os limites do Ego e da racionalidade, permitindo que o indivíduo se torne um canal para energias transformadoras.

 

Essa jornada extática não é meramente uma suspensão do consciente, mas um processo de autoconhecimento e renovação, em que a arte, o caos e o prazer se tornam ferramentas para explorar os mistérios do Cosmos e da existência. As possessões, sejam interpretadas como símbolos de resistência ou como expressões da potência divina, reafirmam o potencial humano de transcender o ordinário e acessar realidades mais profundas. No fim, a possessão divina não é apenas um fenômeno espiritual, mas um convite à experiência de uma vida plena, vibrante e em sintonia com as forças primordiais que sustentam a criação.

 



NOTAS:

[1] Friedrich Nietzsche. O Nascimento da Tragédia. Editora Schwarcz, 1999, pp. 55.

[2] As possessões daemônicas do Mundo Antigo e Antiguidade tardia, no contexto da religião pública e cultos de mistérios na Grécia, bem como nos desenvolvimentos platônicos posteriores, tornaram-se a partir do mundo cristianizado em possessões demoníacas. Veja Michal Foucault. Os Normais. Martins Fontes, 2001, pp. 255.




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