top of page
Buscar

QUIMBANDA: UM CULTO DO DIABO

  • Foto do escritor: Fernando Liguori
    Fernando Liguori
  • 1 de abr.
  • 5 min de leitura


Série: O Livro de São Cipriano

 

 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 

 

Ao longo da história da magia ocidental, a figura do Diabo assumiu funções múltiplas e paradoxais. De agente do mal a mestre oculto, de adversário divino a espírito tutelar, sua presença percorre os sistemas mágicos da tradição europeia e suas ramificações no Novo Mundo. Nesta seção, essa trajetória é reconstituída através de quatro quadros históricos fundamentais: a magia fáustica, a tradição cipriânica, a feitiçaria popular brasileira e, por fim, o romantismo esotérico que influenciou profundamente a concepção do Chefe Império Maioral na Quimbanda.

 

A tradição fáustica tem sua origem simbólica na figura do Doutor Fausto, cujo pacto com o Diabo em troca de poder e conhecimento tornou-se um dos mitos fundadores da cultura moderna ocidental e da própria modernidade mágica. A primeira versão impressa da lenda, o Faustbuch de Johann Spies (1540-1623), circulou amplamente na Alemanha luterana do final do Séc. XVI, ecoando os temores e aspirações de uma sociedade em transição entre o medievo tardio e os primeiros lampejos do racionalismo moderno. O Diabo, nesta narrativa, não é apenas o tentador cristão, mas o mediador de um saber interdito – saber que promete emancipação individual ao preço da danação. A imagem do pacto assinado com sangue tornou-se arquetípica, modelando a iconografia e a praxis dos grimórios mágicos posteriores. No Séc. XIX, Johann Wolfgang von Goethe (1749–1832) reinterpreta esse mito em seu Fausto, transformando Mefistófeles em uma força ambígua, quase prometeica, cuja presença obriga o protagonista à autossuperação. Segundo Goethe, o Diabo é aquela parte da força que eternamente quer o mal e eternamente opera o bem,[1] colocando-o em uma zona cinzenta entre destruição e criação. Essa ambiguidade ressoará diretamente no imaginário da Quimbanda, onde o Maioral, embora demonológico em suas origens iconográficas, torna-se força motriz da evolução e do poder espiritual.

 

A tradição cipriânica, por sua vez, nasce no contexto da religiosidade popular ibérica, profundamente marcada por um catolicismo mágico, penetrado por práticas de origem medieval e uma forte presença da cultura oral. O Livro de São Cipriano, em suas múltiplas versões portuguesas e espanholas, assume o papel de grimório da gente comum, um compêndio de orações, fórmulas mágicas, receitas de feitiços e invocações demoníacas. Cipriano, o santo-feiticeiro, encarna a ambivalência fundamental da figura do mago cristão: outrora aliado do Diabo, converte-se pela intervenção divina e, paradoxalmente, conserva o domínio sobre os demônios que outrora servia. Essa ambiguidade revela muito sobre a teologia tácita da magia popular peninsular: o Diabo é inimigo de Deus, mas pode ser compelido, domado, e até instruir o magista, desde que este detenha as palavras certas, os selos corretos e o pacto necessário. Essa perspectiva está estreitamente ligada ao conceito de daimōn pessoal, uma ideia de inspiração platônica, que sobrevive na figura do diabo pessoal cipriânico – espírito que guia o feiticeiro em sua jornada. Jake Stratton-Kent (1961–2018), em sua obra The Testament of Cyprian the Mage, observa que a magia de Cipriano preserva a essência da goécia arcaica, filtrada pela religiosidade popular e pelos mecanismos do catolicismo sincrético.[2] A influência de grimórios como o Grimorium Verum e o Grand Grimoire na tradição cipriânica é patente, demonstrando como a literatura mágica demonológica francesa e italiana foi absorvida e reinterpretada na península ibérica.

 

A chegada dessa tradição ao Brasil colonial se dá pelo entrelaçamento com o catolicismo popular e com os sistemas africanos e indígenas, formando o caldo espeço da cultura da feitiçaria brasileira. A figura do Diabo, já ambivalente no imaginário europeu, adquire novos contornos ao ser sincretizada com espíritos como Exu e Pombagira. Na Quimbanda – sistema mágico-religioso surgido da reorganização ritual dos cultos de origem banto no contexto urbano do Séc. XX – o Diabo aparece sob a forma do Maioral de todos os Infernos, também chamado de Chefe Império ou Regente do Mundo Subterrâneo. Essa transfiguração está longe de ser uma simples continuidade da demonologia cristã. Trata-se de uma reelaboração simbólica onde os atributos do Diabo europeu se fundem com os arquétipos do mensageiro africano e das potências telúricas indígenas. Como observei em Wanga: o Segredo do Diabo, o Maioral não é apenas o Lúcifer dos grimórios, mas também o ancestral soberano da feitiçaria brasileira, o eixo que articula os mundos. O pacto, elemento central da tradição fáustica e cipriânica, reaparece na Quimbanda como um contrato mágico baseado em àṣē, reciprocidade e sacrifício. Contudo, esse pacto não tem como fim a danação da alma, mas a conquista do poder espiritual, a resolução de demandas concretas e a ascensão do praticante por meio da convivência com os mortos e os espíritos da natureza.

 

Essa síntese não seria possível sem a mediação estética e simbólica operada pelo romantismo esotérico. No Séc. XIX, a figura do Diabo ganha nova dignidade filosófica e literária. John Milton (1608–1674), em Paraíso Perdido de 1667, já havia transformado Lúcifer em um herói trágico, cuja famosa exclamação Melhor reinar no Inferno do que servir no Céu influenciará decisivamente os românticos. William Blake (1757–1827) irá mais longe, declarando em O Casamento do Céu e do Inferno de 1790 que o Diabo é um gênio criador, resgatando o princípio do desejo como fundamento da existência. Já em Charles Baudelaire (1821–1867), o Diabo torna-se símbolo do artista maldito, do dândi, do transgressor. Esse Diabo romântico – elegante, filosófico, rebelde e fecundo – ressurge na Quimbanda como o Maioral que conduz o iniciado à superação dos limites, à expansão do desejo, à liberdade ontológica. É também essa imagem que permite à Quimbanda ocupar seu lugar na tradição e cultura da goécia: não como derivação pálida do Ocidente, mas como sua recriação radical no contexto afro-atlântico.

 

Dessa forma, ao acompanhar o percurso do Diabo da magia fáustica à Quimbanda, vemos emergir uma constelação simbólica que revela tanto os deslocamentos históricos da feitiçaria quanto sua profunda coerência interna. O Diabo, enquanto figura hierática, é mestre, inimigo, aliado, ancestral e regente. É ele que, nas palavras de Jâmblico (245–325 d.E.C.), descerra os véus do mundo visível para que o homem reconheça seu lugar entre os deuses.[3] Na Quimbanda, como nas tradições que a antecedem, o Diabo não é apenas a sombra do cristianismo, mas a luz oculta da iniciação. É essa luz que guia os passos do kimbanda como uma força mágico-ctônica que pulsa sob as encruzilhadas.





O presente texto é um excerto de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, oferecido como material de apoio as aulas em vídeo para os assinantes do Instagram.


















NOTAS:

[1] Johann Wolfgang von Goethe. Fausto. Martin Claret, 2016, pp. 137.

[2] Jake Stratton-Kent. The Testament of Cyprian the Mage. Vol. 2. Scarlet Imprint, 2014, pp. 132.

[3] Jâmblico. De Mysteriis, X:3. Society of Biblical Literature, 2003, pp. 320. Falando do daimōm pessoal.

 
 
 

Comments


bottom of page