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SALOMÃO, CIPRIANO & FAUSTO NA QUIMBANDA

  • Foto do escritor: Fernando Liguori
    Fernando Liguori
  • 20 de mar.
  • 5 min de leitura


Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

 


Nota: O presente texto é um excerto de O Livro de São Cipriano: o Tesouro do Feiticeiro, e está sendo publicado aqui como um Suplemento de Estudo as matérias que nos debruçamos em Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia, e Wanga: o Segredo do Diabo, a saber: a goécia como um estilo de vida de feitiçaria. Nesse estudo, Salomão, Cipriano e Fausto são os arquétipos par excellence do feiticeiro que tem sua alma Glorificada no Inferno.

 

 

Os chamados grimórios azuis, conhecidos na tradição esotérica europeia como Bibliothèque Bleue, formam um gênero popular de grimórios que se destacou entre os Sécs. XVII e XIX. Publicados em brochuras de capa azul e papel barato, esses grimórios se tornaram acessíveis ao público geral, distanciando-se da tradição erudita dos grimórios aristocráticos. Entre os principais títulos desse gênero, encontram-se o Grimorium Verum, o Grand Grimoire e o Honorius. Esses textos desempenharam um papel crucial na disseminação da magia cerimonial e da feitiçaria popular, tornando-se a base de sistemas mágicos sincréticos fora da Europa. Os grimórios azuis foram os que mais se espalharam pelo mundo, influenciando profundamente práticas de feitiçaria afro-diaspóricas e indígenas no Caribe e nas Américas, como o Obeah, a Quimbanda e o Vodu. Sua influência é visível na Quimbanda, onde os métodos de evocação demoníaca e de manipulação de espíritos ctônicos e telúricos refletem fortemente as práticas sistematizadas nesses grimórios.

 

A conexão entre O Livro de São Cipriano e os grimórios azuis reside na fusão entre a tradição mágica popular e a literatura esotérica acessível, ambos sendo produtos de uma feitiçaria enraizada na miscigenação cultural europeia. Os grimórios azuis, que derivam da Bibliothèque Bleue, foram responsáveis por democratizar a magia escrita ao popularizarem manuais de feitiçaria com preços acessíveis e linguagem simplificada, permitindo a ampla disseminação de práticas mágicas entre classes populares. Entre esses grimórios, o Grimorium Verum e o Grand Grimoire destacam-se como pilares essenciais da magia demoníaca e de pactos, influenciando diretamente o desenvolvimento da tradição cipriânica. Algumas versões ibéricas de O Livro de São Cipriano incorporam hierarquias espirituais e instruções ritualísticas diretamente extraídas do Grimorium Verum, evidenciando uma interseção entre essas tradições. Essa incorporação não é meramente estrutural, mas reflete um renascimento da goécia popular, em que espíritos e demônios descritos nesses grimórios foram absorvidos nas práticas folclóricas ibéricas e, posteriormente, na magia afro-diaspórica das Américas, especialmente na Quimbanda. O sincretismo entre as tradições demonológicas e a cultura mágica popular fez com que O Livro de São Cipriano se tornasse um verdadeiro portal para a tradição mágica que amalgamou influências salomônicas, fáusticas e do Grimorium Verum dentro da feitiçaria brasileira.

 

A Quimbanda emerge como um caldeirão caudaloso onde se entrelaçam as tradições cipriânica e fáustica, unindo o pacto demonológico dos grimórios europeus à espiritualidade afro-brasileira. A tradição cipriânica, com O Livro de São Cipriano, forneceu à Quimbanda a estrutura de invocações, selos e rituais de domínio espiritual, enquanto a tradição fáustica, marcada pelo mito do Doutor Fausto, consolidou a lógica da negociação e do pacto com entidades praeter-humanas. Essas influências moldaram a Quimbanda como um sistema mágico que ressignifica o Diabo e seus emissários na figura dos Exus, transformando a busca por conhecimento e poder em um caminho de profunda iniciação e alquimia espiritual. Dessa fusão nasce uma tradição única, onde a relação entre praticante e espírito não é de subjugação, mas de reciprocidade e comprometimento, tornando a Quimbanda uma via de magia operativa que transcende dogmas e abraça tanto a luz quanto as sombras em sua jornada de poder e transformação.

 

A tradição salomônica se entrelaça com as tradições cipriânica, fáustica e, por fim, com a Quimbanda, formando um eixo de magia operativa que atravessa séculos. Os grimórios salomônicos, como a Clavícula de Salomão e o Lemegeton, estabeleceram o arcabouço de conjuração e controle dos espíritos, influenciando diretamente os métodos demonológicos da tradição cipriânica, que incorpora pactos, exorcismos e encantamentos mágicos. O Livro de São Cipriano bebe dessas fontes, reinterpretando rituais salomônicos para um contexto popular e acessível, incorporando-os à feitiçaria ibérica. A tradição fáustica, por sua vez, atualiza a tradição salomônica, continuando-a, mas com ênfase na negociação direta com os espíritos, sem a necessidade de submissão absoluta ou controle rigoroso, estabelecendo uma via de troca e conhecimento oculto. A Quimbanda sintetiza esses elementos ao reformular a prática do pacto, adaptando a lógica de invocações e hierarquias espirituais dos grimórios salomônicos à sua própria estrutura de Exus e Pombagiras, onde o magista não apenas controla, mas dialoga e estabelece alianças espirituais. Assim, Salomão, Cipriano e Fausto convergem na Quimbanda como arquétipos do feiticeiro que, ao invés de temer o Inferno, o compreende como um reino de poder, magia e ancestralidade.

 

Assim, a Quimbanda, ao absorver e ressignificar os elementos das tradições salomônica, cipriânica e fáustica, revela-se como uma síntese singular da feitiçaria demonológica ocidental e da espiritualidade afro-brasileira. A tradição salomônica estabelece os fundamentos da goécia e da hierarquia dos espíritos, a tradição cipriânica adapta esses conhecimentos a uma feitiçaria popular e pragmática, e a tradição fáustica traz a lógica do pacto e do domínio sobre as forças ocultas. Na Quimbanda, essas influências convergem para forjar um sistema mágico no qual os Exus e Pombagiras não são meros demônios subordinados à vontade do magista, mas inteligências telúricas e ctônicas com as quais se negocia, se estabelece trocas e se trilha uma jornada de poder e transformação. O Diabo, presente em todas essas tradições como a figura do grande iniciador, é na Quimbanda o próprio Maioral, aquele que guia os iniciados pela senda da feitiçaria ctoniana. Dessa fusão nasce um caminho mágico onde a luz e as trevas se equilibram, e onde a feitiçaria se manifesta como um estilo de vida, um pacto com o próprio destino e um comprometimento com a realização da Vontade.

 

Finalmente, A Quimbanda, ao integrar as tradições salomônica, cipriânica e fáustica, também absorve o imaginário do Diabo romântico, figura central do pensamento esotérico e literário do Séc. XIX. O Romantismo, com sua exaltação do gênio rebelde, da transgressão e da busca pelo absoluto, redefiniu o Diabo como um arquétipo de libertação, sabedoria proibida e poder transcendente. Goethe (1749-1832), em Fausto, apresenta Mefistófeles como o grande provocador do despertar, enquanto Byron (1788-1824) e Baudelaire (1821-1867) o elevam à figura do anjo caído que desafia o dogma e a hipocrisia. Esse Diabo romântico encontra ressonância na Quimbanda, onde Maioral não é um símbolo de queda ou condenação, mas de potência iniciática, um mestre que conduz o feiticeiro na jornada de autoconhecimento e soberania espiritual. Assim como o Fausto romântico desafia os limites impostos pela moralidade e busca a experiência direta do divino por meio da feitiçaria, o kimbanda trilha a senda ctônica guiado por Exu e Pombagira, firmando pactos que transcendem a dualidade simplista entre bem e mal. A Quimbanda, portanto, não apenas herda os métodos rituais das tradições demonológicas, mas também incorpora a cosmovisão de um Diabo emancipador, tornando-se uma feitiçaria do empoderamento, do desafio às normas e da reintegração do homem com os mistérios profundos da Terra e do Cosmos.


 
 
 

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