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TEURGIA: A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO RITUAL

Foto do escritor: Fernando LiguoriFernando Liguori


 

Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br

 


Este é um livro para amantes da teurgia. Ele foi escrito por um praticante de teurgia tal qual sistematizada por Jâmblico e mais bem elaborada por Proclo. O aspecto da teurgia sobre o qual este livro se debruça é o ritual[1] ou, mais especificamente, as técnicas rituais hieráticas[2] como a telestikē (animação de estátuas),[3] o sacrifício e seu poder deificante, a divinação (possessão divina), a phōtagōgia (indução da luz)[4] etc. A teurgia trata-se de uma tradição ritual cuidadosamente elaborada com o objetivo de se alcançar a henosis – a união mística com o Uno-Bem. Mais do que um conjunto de práticas antigas, a teurgia é uma construção intencional de rituais projetados para facilitar uma experiência espiritual transformadora e arrebatadora. Trata-se de uma tradição construída e surgiu através de um processo deliberado de seleção, adaptação e reinterpretação de rituais existentes de diferentes origens culturais e religiosas. Suas principais influências foram:

 

A filosofia grega, especialmente o platonismo,[5] forma a base intelectual da teurgia. A concepção platônica do Demiurgo, como um artífice divino que molda o mundo material a partir das Formas eternas, forneceu o arcabouço para o platonismo teúrgico compreender a relação entre o homem e o Cosmos. As ideias platônicas sobre uma hierarquia de seres divinos emanando de uma única fonte (o Uno-Bem) influenciaram a visão teúrgica dos planos espirituais e a possibilidade de acessar diferentes níveis de divindade por meio de rituais. Jâmblico desempenhou um papel essencial ao integrar a contemplação filosófica com a ação ritual, consolidando a teurgia como uma prática distinta dentro do platonismo teúrgico.[6]

 

A religião egípcia exerceu uma profunda influência na teurgia, especialmente na ênfase na prática ritual e na compreensão da magia. Os sacerdotes egípcios eram altamente habilidosos na execução de rituais e no uso de forças mágicas, dissolvendo as barreiras entre religião e magia. Isso influenciou a visão teúrgica dos rituais como ferramentas poderosas para interagir com o Cosmos. A abordagem rigorosa egípcia da prática de convocar espíritos, frequentemente utilizando linguagem enfática e ameaças para compelir as divindades, foi incorporada à teurgia. Essa influência é particularmente evidente no trabalho de Jâmblico, que frequentemente cita sacerdotes egípcios e seu conhecimento ritual como autoritativos. Conceitos egípcios como heka (poder mágico), o uso de amuletos e talismãs e a animação de estátuas ressoavam com os objetivos teúrgicos de manipular forças praeter-humanas e alcançar transformação espiritual.

 

Os Oráculos Caldeus, uma coleção de textos místicos que combinam ideias filosóficas gregas com astrologia babilônica e práticas mágicas, foram fundamentais para o desenvolvimento da teurgia. Esses oráculos apresentavam uma visão do Cosmos permeada por forças divinas criativo-cosmogônicas que poderiam ser acessadas por meio de rituais e contemplações. Jâmblico utilizou amplamente os Oráculos Caldeus para defender a teurgia e sua capacidade de promover a união com o divino. Estes oráculos, atribuídos a Juliano o Caldeu e seu filho, Juliano o teurgo, surgiram por volta do Séc. II d.E.C. Eles apresentaram uma cosmologia única e um sistema de práticas rituais que enfatizavam o uso de symbola (objetos, palavras ou ações simbólicas) para criar conexões entre os reinos da geração e divino. Eles descreviam técnicas como a phōtagāgia e o uso de iynges[7] para invocar forças divinas e facilitar a ascensão da alma. Técnicas essas, como veremos, caras a sistematização ritual da teurgia.

 

A popularidade dos cultos de mistério no mundo greco-romano também contribuiu para o surgimento da teurgia. Esses cultos, como os Mistérios de Elêusis, ofereciam aos iniciados conhecimento secreto e experiências transformadoras por meio da participação ritual. A teurgia adaptou elementos dessas tradições de mistério, incluindo o uso de senhas secretas, ritos purificatórios e a promessa de uma união mística com o divino.

 

Outra influência importante foram os Papiros Mágicos Gregos. Eles são o exemplo par excellence de sincretismo mágico na Antiguidade, miscigenando práticas mágicas egípcias com elementos gregos e romanos, refletindo o ambiente multicultural que deu origem à teurgia.

 

Por outro lado, as práticas teúrgicas de purificação e ascetismo conectam-se aos ensinamentos de Pitágoras, que foi iniciado nos mistérios egípcios e trouxe essas influências para a Grécia. E além do pitagorismo, outra influência importante na teurgia foi o orfismo. Com seu foco na purificação ritual e na jornada da alma, o orfismo contribuiu para a visão teúrgica do potencial da alma em alcançar a união divina, a deificação.

 

A teurgia, portanto, demonstra um processo complexo de síntese e sincretismo ou miscigenação cultural: por um lado uniu elementos diversos de tradições distintas, como a filosofia grega e a religião egípcia, criando um sistema coerente que combinava compreensão intelectual e prática ritual. Por outro absorveu e mesclou crenças e práticas de diferentes culturas, resultando em um sistema diverso e adaptável. Os Papiros Mágicos Gregos exemplificam esse processo ao integrar elementos egípcios, gregos e romanos.

 

A teurgia desenvolveu-se, portanto, em um ambiente multicultural onde ideias e práticas de várias culturas interagiam e se influenciavam mutuamente. A disseminação da cultura helenística pelo Mediterrâneo e pelo Oriente Próximo facilitou essa troca cultural, criando um terreno fértil para o surgimento de tradições sincréticas como a teurgia.

 

A capacidade da teurgia de adaptar-se e incorporar elementos diversos foi essencial para sua longevidade e relevância. Ao invés de um sistema rígido, ela era uma prática dinâmica, evoluindo ao longo do tempo e abraçando novas ideias e influências. Esse caráter adaptativo permitiu que a teurgia atendesse às necessidades espirituais de diferentes contextos culturais, consolidando-se como uma tradição profundamente enriquecida pela confluência de culturas, baseada em uma tradição ritual.

 

No primeiro volume do Daemonium apresentei uma estrutura ritual para a teurgia da perspectiva magístico-cerimonial que possuía na época, sobre a qual resumo nesta introdução:

 

  • Purificação: Consistentemente destacada como a etapa fundamental de qualquer ritual teúrgico, envolvendo tanto a limpeza física quanto a espiritual para preparar o teurgo para o contato com o divino. A purificação física pode incluir banhos rituais, jejum e abstinência de certos alimentos ou atividades; a purificação espiritual foca no cultivo de virtudes, controle dos pensamentos e emoções, e alinhamento com princípios divinos.

  • Criação de um espaço sagrado: Essencial para marcar a separação entre o mundo profano e o sagrado. Esse espaço serve como ponto focal do ritual e recipiente das forças espirituais convocadas. Um círculo sagrado pode ser desenhado no chão com substâncias específicas e consagrado com invocações e orações. O espaço também pode incluir um altar e objetos rituais cuidadosamente selecionados e organizados para simbolizar a ancoragem e a conexão com os planos divinos hierárquicos do Cosmos.

  • Invocação: A invocação é o ato central de um ritual teúrgico, envolvendo a convocação de divindades ou daimōnes por meio de linguagem precisa, hinos e cânticos. A escolha da linguagem e dos nomes é crucial, refletindo a hierarquia divina e a compreensão do teurgo sobre ela. Os voces magicae ou nomes bárbaros de evocação são frequentemente usados, sendo considerados de grande poder espiritual para facilitar uma conexão profunda com o divino.

  • Sacrifício e oferendas: Os sacrifícios e oferendas são frequentemente incorporados como forma de honrar as divindades e estabelecer uma relação recíproca com elas. Os sacrifícios envolvem o abate ritual de animais, a queima de seus corpos (ou o consumo deles), a queima de incenso e a oferenda de alimentos e libações. O propósito dessas oferendas é reconhecer o poder das divindades e demonstrar a devoção e o compromisso do teurgo para com elas, possibilitando que atuem em suas causas místicas e mágicas.

  • Encerramento e agradecimento: Encerrar o ritual de maneira adequada, expressando gratidão às divindades e dissolvendo o espaço sagrado, é uma etapa essencial. Isso assegura um retorno seguro e respeitoso ao mundo profano, reforçando a relação recíproca entre o teurgo e o divino.

 

Na teurgia, o ritual é uma tecnologia sofisticada de transformação espiritual. Não se trata apenas de um ato simbólico, mas de um engajamento deliberado na ordem do Cosmos, projetado para purificar a alma, elevar a consciência e proporcionar uma experiência direta com o Sagrado. A intenção ritual é criar uma ponte entre o humano e o divino, permitindo ao teurgo participar no reino divino e alcançar uma união transformadora com a fonte de toda a existência, o Uno-Bem.

 

A estrutura a seguir foi elaborada a partir dos elementos essenciais a execução ritual da teurgia.[8] Embora Porfírio e Jâmblico tenham nos fornecido a teoria geral por trás da teurgia, seria apenas quando Proclo publicou seu comentário sobre os versos 192–32 do Livro XXIII da Ilíada de Homero – especificamente, o Ensaio 6 (I.152.8–153.18) em seu comentário platônico sobre a República – que teríamos uma ideia de como poderia ser a praktikê (prática) ritual da teurgia[9] e alguns de seus elementos ritualísticos ou procedimentos sacerdotais fundamentais.

 

  • Purificação: Passo fundamental inicial tal qual descrito acima.

  • Iynges: Uso de ferramentas mágicas para diversos propósitos. O termo iynx podia se referir a um pássaro, geralmente o torcicolo, conhecido por sua habilidade de girar o pescoço quase completamente. Também podia se referir a uma roda perfurada que girava rapidamente em uma corda, produzindo um som agudo que atraía os espíritos, muito utilizada no culto a Hécate. Os teurgos acreditavam que os iynx-daimōnes (espíritos intermediários) viajavam entre os reinos superiores e inferiores do Cosmos, utilizando o som da roda iynx para atravessar as fronteiras entre esses reinos. Iynges eram usados para invocar deidades dos reinos superiores, emitindo sons indiscriminados ou indescritíveis enquanto giravam a roda, criando conexões entre os mundos material e divino.

  • Phōtagōgia: Descrita como indução da luz, a phōtagōgia buscava alcançar a sustasis (o estado de estar junto a uma divindade) ou autopsia (a visão face a face de uma divindade). Esse processo envolvia atrair a luz divina para obter informações confiáveis através da divinação (que envolvia a possessão divina) e promover o desenvolvimento psíquico, i.e. um refinamento da paranormalidade pessoal. A luz divina era considerada essencial para a transformação espiritual e a expulsão dos elementos impuros da alma. Os teurgos preparavam seu ochēma-pneuma (o veículo pneumático da alma)[10] para receber essa luz divina por meio da indução da luz solar, lunar e das estrelas, com assistência praeter-humana de daimōnes e anjos. Incorporar a luz de uma divindade no ochēma-pneuma era considerado essencial para a interação bem-sucedida da alma com a divindade. Os teurgos praticavam a indução da luz de uma divindade por meio de práticas rituais, como a utilização de espelhos, e por meio de técnicas psicofisiológicas como a respiração cadenciada, tal qual o prāṇa-nigraha ou prāṇyāmā dos tāntrikas hindus,[11] como uma forma de tornar seu ochēma-pneuma mais receptivo à luz dos deuses.

  • Telestikê: Referia-se a rituais que envolviam a criação de estátuas que os deuses poderiam habitar temporariamente para transmitir oráculos e manipular diretamente o Destino dos homens. Essas estátuas, chamadas estátuas telésticas, eram feitas usando symbola (objetos naturais diversos como pedras, ervas, partes de animais ou até mesmo de seres humanos etc., palavras ou sons que conectavam elementos materiais a suas contrapartes divinas por meio da simpatia).[12] Os symbola usados em uma estátua correspondiam à divindade específica invocada, acreditando-se que atraíam a presença dessa divindade. Por exemplo, uma estátua para a deusa Hécate podia ser feita com arruda selvagem, resina, mirra, incenso e pequenos lagartos.

  • Anagōgē: A anagōgē refere-se à ascensão temporária da alma do teurgo aos planos de luz e perfeição para alcançar uma visão da face do divino, de modo a promover a purificação e a deificação da alma, estando o indivíduo imerso na matéria. Para se preparar para a anagōgē, os teurgos purificavam seu ochēma-pneuma por meio de sacrifícios e rituais purificatórios, evitavam se envolver diretamente com os objetos das paixões, e praticavam exercícios espirituais contemplativos. Eles também utilizavam symbola verbais ou senhas mágicas específicas durante a ascensão para intensificar sua conexão com os deuses e provar sua dignidade para receber favores divinos. Estes exercícios espirituais combinavam intencionalmente ações rituais com princípios filosóficos para alcançar um resultado mágico desejado.

     

A teurgia é, acima de tudo, uma jornada de transformação espiritual, onde o ritual se torna o veículo para o encontro entre o humano e o divino. É através da prática teúrgica que o indivíduo purifica sua alma, eleva seu ochēma-pneuma e se conecta com as forças superiores que governam o Cosmos. Neste processo, o teurgo não apenas busca transcender as limitações do mundo material, mas participa ativamente na manifestação da ordem divina no tecido da Realidade. A teurgia nos ensina que o sagrado não está distante, mas pode ser alcançado por meio de um engajamento consciente e profundo com os mistérios do Cosmos. Ela celebra a capacidade do ser humano de se alinhar com o Uno-Bem, revelando que, no cerne da existência, reside a possibilidade de união com a fonte primordial de toda luz e perfeição.




NOTAS:

[1] Para teurgia como a invenção da tradição ritual veja Ilinca Tanaseanu-Döbler. Theurgy in Late Antiquity: The Invention of a Ritual Tradition. Vandenhoeck & Ruprecht, 2013.

[2] O termo hierático deriva do grego hieratikos (ἱερατικός), que significa sacerdotal ou relativo ao sagrado. Ele se refere a tudo que está associado ao domínio do sagrado, seja em rituais religiosos, linguagens simbólicas ou funções litúrgicas. No contexto cultural e histórico, o termo é amplamente utilizado para descrever práticas ou formas de expressão que possuem uma função religiosa ou espiritual, como a escrita hierática egípcia, que era uma forma simplificada de hieróglifos usada pelos sacerdotes para textos religiosos e administrativos. Em um sentido mais amplo, hierático também pode descrever posturas, gestos ou estilos artísticos marcados por solenidade, formalidade e reverência ao divino, simbolizando uma conexão direta entre o humano e o sagrado.

[3] Telestikē (τελεστική), do grego antigo, refere-se a práticas rituais associadas à ativação ou consagração de objetos e espaços como receptáculos para a força ou presença divina. Central ao contexto da teurgia, telestikē envolvia a animação de estátuas, amuletos ou talismãs, infundindo-os com poder mágico para que se tornassem moradas de deuses e daimōnes. Essas práticas utilizavam invocações, sacrifícios, símbolos e elementos materiais como canais para conectar o mundo material ao divino, criando uma ponte entre os planos terrestres e transcendentais. Telestikē não era meramente uma técnica mágica, mas uma ferramenta espiritual profunda que refletia a visão de que o Cosmos é permeado por forças divinas, acessíveis por meio de rituais cuidadosamente realizados, e era equivalente a própria iniciação teúrgica, como ficará claro neste livro.

[4] Phōtagōgia (φωταγωγία), derivado do grego antigo e significando literalmente indução da luz ou iluminação, é um termo utilizado no contexto da teurgia e das tradições esotéricas para descrever o processo de elevação espiritual por meio do qual a alma é guiada em direção à luz divina. Essa prática simboliza a transcendência das trevas da ignorância ou do mundo material, levando o praticante a uma união com o divino ou ao entendimento superior do Cosmos, estando ele imerso na materialidade, sem fugir dela. Phōtagōgia envolve tanto rituais quanto meditações que buscam a recepção direta da iluminação espiritual, frequentemente utilizando símbolos de luz, como fogo ou raios, para representar a presença do sagrado. No platonismo teúrgico, esse conceito reflete a jornada da alma em direção ao Uno, um processo de purificação e ascensão que culmina na visão ou comunhão direta com o princípio divino. No contexto do ritual, envolve a manipulação direta da luz através de espelhos mágicos e outros objetos consagrados. Veja abaixo ainda nesta seção.

[5] Embora o desenvolvimento da teurgia como sistema ritual voltado para a união com o divino tenha sido profundamente influenciado pelo platonismo e pelo misticismo de Plotino, elementos teúrgicos já podem ser encontrados nos épicos homéricos e no pensamento grego pré-homérico. Um exemplo disso é a interpretação de Porfírio sobre a Caverna das Ninfas, na Odisseia, que ele considerava uma alegoria do Cosmos e da jornada da alma, com suas características simbolizando níveis de realidade e a ascensão espiritual. Da mesma forma, Proclo analisou a pira funerária de Aquiles para Pátroclo, na Ilíada, como um modelo de ritual teúrgico, enxergando Aquiles como um oficiante teúrgico que auxiliava a ascensão da alma de Pátroclo aos céus. Além disso, temas como a catábase (descida ao Submundo), presentes no pensamento pré-homérico e nos pré-socráticos como Pitágoras, Parmênides e Empédocles, eram vistos como rituais de busca por sabedoria e comunicação com o divino, influenciando posteriormente a ênfase na anábase (ascensão) da teurgia. Platão serviu como ponte entre o pensamento pré-homérico e as práticas teúrgicas, com suas ideias sobre a alma tripartida, a Alegoria da Caverna e o Mito de Er, fornecendo uma estrutura filosófica para a compreensão da jornada da alma e a ascensão espiritual. Assim, a teurgia, embora consolidada na Antiguidade tardia, emergiu de uma rica tradição de práticas rituais e ideias filosóficas que já buscavam a conexão com o divino, demonstrando continuidade e adaptação desses elementos antigos. Veja P.D. Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2024.

[6] Na existência de um reino transcendente de Formas ou Ideias perfeitas, o mundo material era visto como um reflexo imperfeito dessas realidades superiores, e a alma humana, inerentemente divina, era considerada aprisionada no reino material. O objetivo da teurgia era facilitar a ascensão da alma de volta à sua fonte divina por meio de práticas rituais. Mas o platonismo teúrgico de Jâmblico se diferenciava do platonismo místico de Plotino (205-270); diferente do platonismo místico, o platonismo teúrgico não propunha uma fuga do mundo, mas uma imersão no Sagrado estando no mundo, tal qual a doutrina não-dualista do Śaivismo da Caxemira de Abhinavagupta. Neste ponto, tal qual o não-dualismo de Śaṅkarācārya (788-820), que inaugurou o Vedānta, o não-dualismo do platonismo místico de Plotino flertava com o dualismo; ao tratar da alma encarnada na geração, a argumentação de Plotino é completamente dualista, assim como Śaṅkarācārya tratou a questão de māyā (ilusão) no Vedānta. Veja o ensaio Dualidade vs Não-Dualidade na Teurgia & na Cabalá Crioula, neste livro.

[7] Na teurgia, iynges são ferramentas mágicas ou espíritos intermediários que desempenham um papel crucial na conexão entre o mundo material e o divino. O termo pode se referir tanto a objetos rituais quanto a espíritos limiares (daimōnes) que facilitam a comunicação com as esferas superiores. Tradicionalmente, as iynges incluem instrumentos como as famosas rodas giratórias do culto de Hécate, conhecidas por emitir sons específicos que atraem os daimōnes durante os rituais, e amuletos que carregam símbolos hieráticos poderosos. Essas ferramentas são associadas à capacidade de criar pontes entre os diferentes níveis da realidade, funcionando como canais para a transmissão de força mágica e o fluxo de comunicações espirituais. Na prática teúrgica, a manipulação correta das iynges é fundamental para invocar deuses, acessar o conhecimento divino nas divinações e realizar ascensões espirituais, destacando-se como um elemento essencial na eficácia ritual. Veja abaixo ainda nesta seção.

[8] Veja Sarah Iles Johnston. Magic and Theurgy. Em David Frankfurter. Guide to de Study of Ancient Magic. Brill, 2019.

[9] Consequentemente, tanto em relação à sua teoria quanto à sua práxis, embora a teurgia, como tal, não remonte além dos Julianos e dos Oráculos Caldeus no Séc. II d.E.C., é notável que tanto Porfírio quanto Proclo localizem os épicos homéricos como os precursores e os protótipos da teurgia. Veja P.D. Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2024.

[10] O ochēma-pneuma é um conceito central no pensamento do platonismo místico e teúrgico, definido como o corpo sutil e energético que atua como veículo da alma, mediando entre o reino imaterial da alma e o mundo material do corpo. Composto de pneuma (o quinto elemento aristotélico, associado ao sopro ou espírito vital), o ochēma-pneuma é descrito como um corpo luminoso e etéreo, semelhante à um ovo de luz (augoeides). Ele possibilita que a alma interaja com o corpo físico e o mundo sensorial, servindo como o instrumento por meio do qual a alma experimenta emoções, sensações e a imaginação. Seu estado reflete o nível de pureza da alma, podendo ser purificado e elevado através de práticas teúrgicas, como orações, invocações e rituais, que o preparam para facilitar a ascensão espiritual da alma e sua reconexão com o divino. Após a morte, o destino do ochēma-pneuma depende do grau de purificação alcançado, podendo ascender a reinos superiores ou permanecer vinculado ao mundo material. Veja abaixo ainda nessa seção.

[11] O prāṇa-nigraha são exercícios que possibilitam a expansão da capacidade pulmonar. Na maioria das vezes esses exercícios de prāṇa-nigraha são confundidos com prāṇāyāma na literatura popular de yoga. Mas se trata de um equívoco. O prāṇāyāma é conquistado apenas com o aperfeiçoamento dos diversos níveis de prāṇa-nigraha e é definido como a capacidade de dominar e de dar direção dos prāṇas, internos (os vayūs) e externos. Veja minha sequência de livros sobre yoga e meditação.

[12] Simpatia é definida como uma prática mágica que se apoia na conexão mística entre objetos materiais e suas contrapartes divinas, astrais ou espirituais, fundamentada na lei universal das correspondências. Essa prática opera a partir da ideia de que elementos com características similares ou simbólicas estão interligados por forças ocultas, permitindo que ações realizadas sobre um objeto ou elemento repercutam em outros níveis, seja no plano material ou espiritual. No universo da Quimbanda e da cabalá crioula a simpatia é uma técnica acessível e eficaz, que canaliza a força do Cosmos através de bases materiais para transformar o tecido da realidade, estabelecer cura ancestral, proteção espiritual, prosperidade ou resolução de conflitos. Ela reflete o princípio fundamental da magia prática, onde intenção, elemento e ritual se fundem para gerar impacto. Veja o terceiro volume do Daemonium: a Quimbanda & a Nova Síntese da Magia.



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