top of page
Buscar

UM MUNDO POVOADO POR ESPÍRITOS

  • Foto do escritor: Fernando Liguori
    Fernando Liguori
  • 4 de ago. de 2024
  • 9 min de leitura


Nós vivemos em um mundo povoado por espíritos![1] Devido ao atual nível de consciência e conhecimento da população ocidental, a grande maioria das almas encarnadas desconhece essa realidade. Pessoas comuns, magos e feiticeiros da Antiguidade clássica e tardia, e até mesmo a maioria das pessoas da sociedade ocidental pré-moderna compreendiam que o mundo é vivo, animado e responsivo. Eles entendiam que a vida estava imersa em um pulsante e vívido ritmo de forças espirituais que subjaz a matéria em suas incontáveis formas de vida. Nós mesmos, as inúmeras almas encapsuladas em formas físicas para facilitar a interação com a estrutura fenomênica da natureza somos apenas uma espécie ou categoria de espíritos dentre a miríade de outros espíritos que já deixaram a existência física, nossos ancestrais, e outras formas como espíritos da natureza e deidades celestiais, fadas, djinns, anjos, demônios, encantados etc. Um mundo povoado por espíritos.


Nós vivemos entre e interagimos com espíritos o tempo todo; alguns são conscientes de sua existência e sabem como e onde encontrá-los; outros têm medo deles, não querem contato com eles e mesmo assim, acidentalmente (para não dizer inconscientemente) se conectam a eles. Aqueles que conhecem a realidade dos espíritos buscam inspiração neles, lhe pedem auxílio, instrução e proteção, procurando aprender mais e a refinar a conexão com eles. Seria incorreto dizer que os espíritos estão entre nós, almas encarnadas; o mais correto seria dizer que nós estamos entre eles.


Antigas culturas mágico-religiosas desenvolveram métodos seguros de interação com os espíritos. A iniciação espiritual tem sido o método mais seguro de se aprender a interagir com espíritos. Entenda dessa forma: através de um mestre, alguém que tem experiência no contato com espíritos, um aprendiz é ensinado a se comunicar com eles. É por isso que, tradicionalmente a iniciação espiritual tem sido o método mais seguro de se iniciar a comunicação com espíritos. Através da iniciação ocorre uma transmissão espiritual e o aprendiz recebe do mestre uma parcela de seu próprio poder, bem pequena, mas o suficiente para colocá-lo em contato com espíritos tutelares.


O conceito ou ideia de autoiniciação é moderno. Na Antiguidade clássica e tardia até a Idade Média, o método tradicional de iniciação sempre foi aquele de i. busca pessoal; ii. encontro com o mestre; iii. aprendizado e maestria; iv. uso pessoal e transmissão da magia pelos métodos do contato com espíritos. Algumas pessoas, no entanto, nascem com a capacidade de se comunicarem espontaneamente com espíritos. Este é o único caso de autoiniciação verdadeiro e fidedigno que existe. E muito embora hábeis magistas possam aperfeiçoar suas habilidades ou paranormalidade, entende-se que tradicionalmente o mestre é quem aperta o gatilho inicial da comunicação espiritual através do ritual de iniciação.


Outro ritual de autoiniciação, uma exceção que tradicionalmente tem sido considerada ser válida e fidedigna, é o processo de transmutação alquímica na alma que ocorre com um xamã, iniciado diretamente por espíritos. A verdadeira iniciação xamânica, aquela que confere a um homem, às vezes uma pessoa normal sem inclinações espirituais conscientes, o poder de se comunicar com espíritos e tornar-se digno do título de xamã, ocorre em um processo de quase morte. Nessa condição a alma é lançada ao mundo dos espíritos e é iniciada diretamente por eles. No seu retorno a matéria um processo de morte e renascimento espirituais pode ser visto claramente, pois notoriamente o xamã passa por um processo de transformação espiritual que mudou tudo ao seu redor; um xamã retorna de sua iniciação com espíritos um novo homem.


Em todos esses processos, tradicionalmente, ocorre uma transmutação alquímica na alma que, após levar uma surra, renasce para uma vida espiritual pé no chão e que produza frutos de sabedoria. A surra na alma que um espírito ou mais provocam é capaz de transformá-la completamente, diferente de autoiniciações falsas e charlatanescas, pois essas transformam apenas o Ego, fazendo dele uma carapaça cada dia mais dura.


Um mago, bruxo, feiticeiro ou xamã, trata-se de um iniciado que aprendeu a lidar com espíritos, é capaz de mediar como um sacerdote a comunicação dos espíritos com pessoas que não conseguem fazê-lo e a solicitar auxílio, instrução espiritual e proteção por e para elas.


No decorrer da história houve a expansão do cristianismo, seus dogmas e doutrina suplantando culturas mágico-espirituais e assimilando delas a maior parte de seu conteúdo filosófico, teológico e religioso. A Igreja Católica, por exemplo, desenvolveu seus magos-exorcistas que detinham o conhecimento da comunicação com espíritos. Fora do cristianismo algumas culturas de magia e feitiçaria sobreviveram, seja preservando seus métodos tradicionais ou os sincretizando com a tradição católica.[2]


Na Europa essa preservação dos métodos mágicos para comunicação com espíritos ocorreu em muitos níveis e em muitas formas.


Por outro lado, o cristianismo influenciou profundamente a Idade Moderna e para grande maioria das pessoas o mundo deixou de ser povoado de criaturas espirituais, tornando-se vazio e amorfo, uma realidade triste e sem vida. Condenada pela Igreja, a comunicação com espíritos foi considerada ser uma arte maligna de magia cujo pivô fundamental é o próprio Diabo. O frenesi inicial dessa famigerada caça as bruxas produziu profundos complexos de medo e ojeriza da comunicação com espíritos. Com advento da Reforma através de Martinho Lutero, a própria tradição católica que assimilou quase tudo do paganismo de muitas culturas foi acusada de supersticiosa e malignamente inspirada pelo Diabo. A Igreja então produziu a Contra Reforma ou Reforma Católica que influenciou profundamente nascimento do espírito amorfo e frio do pensamento cientificista moderno. Hoje o Diabo deixou de ser uma criatura espiritual para tornar-se uma ideia ou arquétipo, demônios se tornaram mazelas internas da mente e personalidade, anjos tornaram-se virtudes pessoais morais, fadas e gnomos se tornaram contos infantis. O materialismo cientifico aliado a visão colonialista protestante produziu um mundo moderno morto, tanto frio quanto amorfo.


O Brasil tornou-se um caldeirão mágico-religioso onde as culturas europeia, africana e ameríndia se uniram em grandes complexos religiosos como a Umbanda, Catimbó, Macumba, Quimbanda e outras tradições menos expressivas como o Santo Daime e a Barquinha. Em outros lugares do globo, principalmente no Oriente, muitas culturas preservaram a visão animada da realidade, negando a visão crua e materialista que o Ocidente produziu. Devido ao nível de preservação mágica global, hoje é tangível de se ver que o materialismo cientificista não conseguiu, de tudo, suplantar a Tradição Oculta da Magia. No entanto, seu impacto também é tangível de se ver. Por um lado, a insistência no materialismo e na racionalidade que faz parte de sua fórmula promoveu a extinção de memórias físicas dos relatos e estudo dos homens comuns e dos magos do passado. Por falta deste material histórico perseguido e dizimado, a ênfase racionalista produziu um novo tipo de magia, aliada ao espírito da modernidade e suas perspectivas. A partir do Iluminismo, a magia renascentista que tentava salubrizar a antiga feitiçaria foi alinhada as perspectivas maçônicas modernas e a magia/mitologia popular europeia que produziu uma espécie de renascimento magistico rosacruciano e ocultismo cristão. Desse renascimento nasceu a escola francesa de magia e diabolismo que inspirou magos modernos como Aleister Crowley, bem como o neopaganismo da feitiçaria europeia. De toda essa onda de renascimento magístico a mais destacada de todas escolas de iniciação foi a Ordem Hermética da Aurora Dourada. Foi através dela que a magia de tipo maçônica ou cerimonial moderna – de questionável antropologia, história e mitologia – foi refinada ao ponto de influenciar quase todos os movimentos ocultistas posteriores. Na falta de fontes verossímeis, a Ordem Hermética da Aurora Dourada tentou promover uma síntese da magia que produziu ocultistas como Aleister Crowley, Dion Fortune e Israel Regardie. Estes últimos, seguidos de discípulos e outros ocultistas por eles influenciados, uniram este ocultismo maçônico moderno às ideias de pensadores como Freud e Carl Joung, produzindo a moderna magia psicológica. É aqui, nesta moderna magia psicologizada, que toda sorte de espíritos se tornaram complexos da mente.


Após décadas de influência magística, neopaganismo, bruxaria wiccana e ordens como a Astrum Argentum e Ordo Templi Orientis, nasce o ápice do pensamento magístico moderno, a recém criada tradição da magia do caos, cristalizando uma metalinguagem cientificista e psicologizada, baseada em certo niilismo que promove diversas visões psicológicas da realidade unidas em um exercício mágico pragmático.


No entanto, depois de tudo isso, hoje testemunhamos um novo renascimento da magia, baseado nos princípios promovidos pelos magos e filósofos do passado. Uma vez que a magia moderna psicologizada não produz os efeitos taumatúrgicos que se espera da magia tradicionalmente falando, inúmeros ocultistas, feiticeiros, magos, mestres e aprendizes, têm voltado sua atenção a filosofia e magia do passado. Para estes magos e feiticeiros da Tradição Oculta que se libertaram dos encantamentos da magia moderna cientificista, o mundo tem se tornado vivo novamente, responsivo a interação magística com ele. Isso tem se dado em muitos níveis e um de seus elementos chave é o acesso a antigos textos e manuscritos, preservados cuidadosamente por ocultistas zelosos. Magistas de todas as partes do globo hoje podem escrever sobre suas experiências on-line, compartilhando métodos pessoais, recebendo de outros magistas conhecimentos para aprofundarem o exercício da magia. Hoje temos acesso a registros históricos desconhecidos até bem pouco tempo. Esse novo renascer da magia tem conscientizado ocultistas de que o contato com espíritos não se dá somente ou apenas em ocasiões de rituais dentro de círculos mágicos, mas o tempo todo no curso da vida secular: o ritual está sempre aberto, como alertam os feiticeiros. O mago tem descoberto que a magia não está somente dentro do círculo mágico, mas fundamentalmente fora dele. Com este conhecimento os magos são capazes de reconhecer o padrão pelo qual homens e espíritos estão em constante comunicação. Então gradativamente os magos estão tendo coragem de saírem de dentro do círculo mágico para se comunicarem com espíritos. Não é se isolando dentro de círculos de proteção que a Arte dos Sábios somente é praticada, mas fundamentalmente fora deles.


Esse renascer da magia antiga que hoje estamos testemunhando é um movimento de resgate desta comunicação primordial com espíritos. Seus métodos cerimoniais são mais simples, transcendendo a rigidez dos grimórios tradicionais. Escritores como Aaron Leitch[3] e Jake Stratton-Kent estão dentre os promulgadores deste renascer mágico, que valoriza a importância do resgate do êxtase e de técnicas xamânicas que estiveram ausentes nos grimórios tradicionais. Eles têm identificado este movimento com o nome de grimoire revival. Existe no Brasil uma tradição de feitiçaria que pode contribuir muito para com esse renascer da magia dos grimórios: a Quimbanda.


A Quimbanda é a feitiçaria tradicional brasileira. Alguns adeptos, os kimbandas, preferem o termo bruxaria ao invés de feitiçaria, destacando o fato de que se trata de um culto brasileiro ao Diabo. É uma tradição mágico-religiosa do ocultismo brasileiro que conseguiu unir as técnicas de transe, os ritos de oferendas e sacrifícios animais, ausentes em muitos grimórios tradicionais, a convocação de demônios associados aos espíritos dos mortos. E isso não é novo na história da magia. Desde pelo menos o período da Antiguidade a convocação de mortos esteve associada também a convocação de demônios.[4]


A Quimbanda uniu o melhor de três culturas: ameríndia, africana e ibérica em um sistema de demonologia e diabolismo prático com métodos únicos capazes de criar uma interface entre os éteres habitados por demônios e àqueles habitados pelos mortos. É a goécia brasileira.


O grimório que mais me familiarizei no curso de minha carreira mágica foi o Livro da Magia Sagrada de Abranelin, o Mago. O foco central, e também o objetivo último de minha jornada magística por mais de vinte anos foi a busca por uma experiência conhecida como o Conhecimento & Conversação com o Sagrado Anjo Guardião, pelo fato de meu envolvimento com a filosofia thelêmica, cujo tema central é o Sagrado Anjo Guardião. O Livro da Magia Sagrada de Abranelin, o Mago é tido como referência fundamental na filosofia de thelema e todos os thelemitas são encorajados a colocá-lo em prática, seja no seu formato original ou adaptado as condições modernas e individuais. Durante um bom tempo eu pude experimentar a magia de Abramelin e escrevi um livro dedicado ao tema, adaptado a filosofia de thelema. Eu o nomeei como Corrente 93: A Corrente Solar do Novo Aeon e está disponível no site do Clube de Autores.


Mas foi somente com a iniciação na Quimbanda que o Livro da Magia Sagrada de Abranelin, o Mago se abriu para mim, porque pude aplicar as técnicas da Quimbanda a convocação dos poderes da terra, os demônios conjurados através das quadraturas mágicas disponíveis no grimório. No texto A Goécia de Abramelin, eu faço uma introdução concisa sobre o grimório.


A goécia europeia, a convocação de demônios, é uma prática associada a Quimbanda, mas pelos métodos da Quimbanda, e é importante compreender isso! Significa que você não encontrará os métodos da goécia tradicional na Quimbanda; mas que você convocará os demônios da goécia tradicional pela arte e ciência da Quimbanda.


Na Quimbanda o espírito assistente não se trata de um anjo de Deus, mas de um ancestral, o Exu tutelar, que trabalha para o Diabo, o Chefe Império Maioral. É através do Exu, de seu poder e autoridade espiritual, que os demônios das quadraturas mágicas de o Livro da Magia Sagrada de Abramelin, o Mago são convocados, assim como todos os demônios tradicionais já associados ao Povo de Exu, àqueles do Grimorium Verum e o Grand Grimoire.


Através dos métodos e autoridade da Quimbanda é possível convocar qualquer critura espiritual além de demônios: os espíritos dos ambientes internos das casas e construções diversas;[5] uma miríade de espíritos da natureza, cultura e folclore de um povo ou região;[6] toda sorte de espíritos dos mortos, fantasmas, kiumbas etc.[7] O renascer da magia moderno trata-se de um retorno da visão daemônica, a consciência mágica de interação com todos os espíritos ao redor do mago.



NOTAS:


[1] O nome original deste ensaio foi Um Mundo Povoado por Espíritos. Ele passou por diversas formatações, assim como todo o livro, em um período de três anos.

[2] Por isso muito da feitiçaria brasileira, inspirada e enriquecida com a tradição da feitiçaria ibérica, sincretiza cristianismo e magia popular, criando tradições como a Umbanda (moderna/pós 1930) e o Catimbó.

[3] Veja Aaron Leitch, Secrets of the Magickal Grimoires. Llewellyn Worldwide, 2005.

[4] Veja Humberto Maggi, Thesaurus Magicus, Vol. III (2015); veja também Goetia: História & Prática (2020). Clube de Autores.

[5] Veja Claude Lecouteux, The Tradition of Household Spirits: Ancestral Lore and Practices. Iner Traditions, 2000.

[6] Veja Claude Lecouteux, Demons and Spirits of the Land: Ancestral Lore and Practices. Iner Traditions, 1995.

[7] Veja Claude Lecouteux, The Return of the Dead: Ghosts, Ancestors, and the Transparent Veil of the Pagan Mind. Iner Traditions, 1996.



 
 
 

Comentarios


bottom of page