Por Táta Nganga Kamuxinzela
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Pois os fantasmas [alma dos mortos] aparecem só aos crentes aos seres espirituais e não aos incrédulos, porque nisso nada aproveitam, ou antes, pelo contrário, recebem maldições. [...] Quando vos aparecer uma visão, não a esconjureis, porque então ela vos amaldiçoará, vos empecerá em todos os vossos negócios, e tudo vos correrá torto. [...] Se o fantasma for figura humana, não é demônio, mas sim uma alma [de um morto] que busca alívio as suas penas. Deveis logo fazer a oração que vai neste livrinho, porque não perdeis nada com isso, pois que aquela alma, que vós livrastes, será convosco sempre que a chamardes. [...] Orai por esses desgraçados espíritos e invocai-os em todos os vossos negócios e em tudo o que vos aprouver, que sereis bem sucedidos, eu juro.[1]
O Livro de São Cipriano em suas diversificadas edições tornou-se um guia para feiticeiros que desejam adquirir o Conhecimento & Conversação com o gênio familiar ou espírito tutelar sob o disfarce do pacto com o diabo. Este pacto com o diabo tem sido difundido pelas apologias cristãs desde a Antiguidade e Idade Média, onde nasceram os mitos de São Cipriano e Fausto, escondendo a doutrina do espírito tutelar que tanto protege quanto ensina o mago, além de servir a deificação de sua alma. No texto A Doutrina Soteriológica do Paredros, que disponibilizei no segundo volume do Daemonium: a Quimbanda no Renascer da Magia, nós estudamos que o espírito tutelar possuía uma função escatológica e soteriológica para os magos da Antiguidade: a ele cabia a salvação e a deificação da alma, libertando-a do cativeiro do Hades e transformando-a em uma entidade daemônica, um espírito ancestral na legião dos mortos capaz de auxiliar outros magos ainda na legião dos vivos participando de uma família de espíritos tutelares. Essa crença permaneceu na tradição da magia até por volta do Séc. XVII e pode ser rastreada em feitiços da magia popular europeia que conjuram a alma de mortos que se acreditava terem sido magos e bruxas em vida como, por exemplo, Maria Padilha. As almas destes mortos que em vida foram magos, bruxas ou que de alguma maneira estiveram envolvidas com magia eram apresentadas no comando de uma legião de demônios. Acontece que essa tradição de feitiçaria ibérica cipriânico-necromântica influenciou profundamente o culto das almas – cativas, abandonadas, aflitas e benditas - na feitiçaria popular brasileira, dando forma ao trabalho da linha das almas na Macumba carioca e, posteriormente, na Umbanda e na Quimbanda. Daí que São Cipriano está conectado, na Quimbanda, ao Reino das Almas. E é interessante notar ainda que essa ideia soteriológica da deificação da alma sobreviveu em tradições de cabalá crioula no Brasil como a Quimbanda, onde um táta-nganga acaba por se tornar um Exu após a morte, participando da família de espíritos da casa no reinado do Chefe Império Maioral; ou o Catimbó, onde o pai acaba por se tornar um encantado por meio do espírito da Jurema.
A goécia como tradição viva na forma da magia cipriânica mantém esse relicário soteriológico da deificação da alma e o próprio São Cipriano tornou-se uma alma deificada, um espírito ancestral e patrono espiritual dos feiticeiros. Em A Confissão de São Cipriano o Diabo lhe promete torná-lo um governante após sua morte,[2] quer dizer, uma alma deificada capaz de prestar auxílio a outros seres, estando no comando de uma legião de espíritos.
Cruzeiro das Almas no antigo templo da Cova de Cipriano Feiticeiro em Angra dos Reis, litoral do Rio de Janeiro.
São Cipriano ou Cipriano Feiticeiro é uma interface direta com o Reino das Almas – ou mundo dos mortos. Por esse motivo na goécia ele é sempre convocado primeiro para atuar como um agente mercurial universal, i.e. um espírito limiar, mensageiro ou intermediário, possibilitando a comunicação entre o feiticeiro e as almas dos mortos; estas, por outro lado, foram associadas a demônios no desenvolvimento da teologia cristã desde o fim da Antiguidade. Daí que seu culto não é só necromântico, mas também nigromântico. Na Quimbanda, a associação entre os Exus e os demônios ou diabos pessoais também é uma herança dessa antiga crença que associa as almas aos demônios. Em um ritual de magia cipriânica conhecido como A Estrela da Kalunga, que tem em sua abertura uma convocação a Lúcifer, Beelzebuth e Ashtarot, seis demônios do Grimorium Verum são alocados como um hexagrama ao redor do Cruzeiro das Almas, na intenção de comandarem as almas ali convocadas.
NOTAS:
[1] São Cipriano. Sobre os Fantasmas em Humberto Maggi. Thesaurus Magicus, Vol. II. Clube de Autores, 2016, pp. 89.
[2] Humberto Maggi. Thesaurus Magicus. Vol. II. Clube de Autores, 2016.
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