
Por Táta Nganga Kamuxinzela
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O herói icônico desta obra é também São Cipriano. Nos meus dois livros anteriores, o terceiro volume do Daemonium e o Wanga: o Segredo do Diabo, São Cipriano é apresentado como o ideal da alma glorificada no Inferno, a deificação catabática, e um símbolo do espírito tutelar, um limiar entre o mago e o mundo dos espíritos. Aqui São Cipriano é apresentado como a imagem do teurgo ideal, o arquétipo do teurgo – um operador que transcendeu os limites da feitiçaria popular para acessar os mistérios mais profundos do Cosmos. Suas práticas segundo os mitos, foram influenciadas pelo platonismo teúrgico e pelo cristianismo, e integram a visão de que o divino pode ser experimentado diretamente através do rito, do conhecimento esotérico e da devoção. Mas para entendermos São Cipriano como um teúrgo, é necessário falar da miscigenação cultural que o influenciou.
Antióquia, uma das cidades mais importantes do mundo antigo, foi um ponto de convergência cultural, religiosa e filosófica que moldou profundamente o desenvolvimento do pensamento esotérico e teúrgico na Antiguidade. Fundada em 300 a.E.C. por Seleuco I, um dos generais de Alexandre (356-323 a.E.C.), a cidade rapidamente se tornou um núcleo de interação entre tradições gregas, romanas, persas, egípcias e judaicas. No auge do período helenístico e ao longo do domínio romano, Antióquia abrigou uma diversidade de correntes espirituais que fundiram práticas mágicas, cultos religiosos e filosofias, estabelecendo um ambiente ideal para a emergência de figuras como São Cipriano, cujo papel como teurgo é central para compreender a teurgia nesse contexto miscigenado de culturas.

Antióquia, situada estrategicamente na rota comercial entre o Mediterrâneo e o Oriente, tornou-se uma cidade de intensa miscigenação cultural. A influência grega trouxe a filosofia platônica e o pensamento místico do orfismo, enquanto os cultos romanos enriqueceram as práticas rituais. Da Pérsia, a cidade recebeu elementos do zoroastrismo e da magia dos caldeus, marcando profundamente o desenvolvimento da astrologia e da demonologia. Do Egito, chegaram os mistérios herméticos associados a Hermes Trismegisto, que complementaram o crescente interesse pela alquimia e teurgia. As comunidades judaicas da cidade introduziram conceitos cabalísticos e apocalípticos, contribuindo para a visão hierárquica do Cosmos.
Dentro desse caldeirão cultural, São Cipriano emerge como uma figura única e multifacetada. Nascido na Antióquia do Séc. III, assim se referem os mitos, ele simboliza a síntese entre diversas tradições mágicas e espirituais que circulavam pela cidade. Antes de sua conversão ao cristianismo, Cipriano foi profundamente influenciado pela teurgia platônica e pelas práticas mágico-místicas herméticas, demonstrando uma habilidade extraordinária para integrar rituais e simbolismos de diferentes origens.

Como teurgo, Cipriano não era apenas um operador ritualístico; ele encarnava o ideal do sábio que transcendia as barreiras religiosas e culturais. Sua prática teúrgica combinava elementos da magia ritual da Caldeia, como o uso de palavras de poder e invocações, com o platonismo teúrgico que visava a henosis – a união com o divino. Além disso, Cipriano reinterpretou essas práticas sob uma ótica cristã nascente, adaptando o simbolismo da cruz e das hierarquias angélicas ao universo teúrgico.
O papel de Cipriano em Antióquia reflete a miscigenação cultural da cidade, onde a teurgia se desenvolveu como uma prática universalista, absorvendo e reinterpretando influências diversas. A prática de animar estátuas, o tema central deste livro, por exemplo, é um traço teúrgico central que Cipriano adotou, unindo os princípios herméticos da telestikē com o conceito cristão de objetos sagrados. Ele também incorporou os princípios astrológicos do Oriente Médio, alinhando rituais com as posições estelares e utilizando amuletos que uniam o simbolismo greco-romano e egípcio.
A teurgia de Cipriano em Antióquia revela uma interação única entre espiritualidade prática e filosofia mística. Seus textos, como O Livro de São Cipriano, misturam invocações cristãs, técnicas de purificação de origem caldeia e o uso de hierarquias espirituais oriundas do hermetismo e do platonismo teúrgico. Esses elementos, amalgamados em uma visão sincrética, o posicionam como um teurgo que mediava não apenas entre o humano e o divino, mas também entre as diferentes tradições culturais de sua época.
Antióquia, com sua riqueza de influências culturais e espirituais, foi o cenário perfeito para a emergência de uma figura como São Cipriano. A cidade não apenas permitiu a miscigenação de tradições mágicas e religiosas, mas também proporcionou o ambiente necessário para que Cipriano se tornasse um teurgo singular. Sua habilidade em integrar práticas e filosofias de diferentes origens, reinterpretando-as à luz de sua própria experiência espiritual, destaca seu papel como mediador cultural e espiritual. Assim, Cipriano representa o auge da miscigenação cultural de Antióquia, ao mesmo tempo em que estabelece um modelo de prática teúrgica que transcende as barreiras temporais e culturais.

São Cipriano emerge como o espírito patrono da cabalá crioula por sua trajetória e essência sincrética, simbolizando a convergência cultural e espiritual que define esse conceito. Como mago, feiticeiro e teurgo, São Cipriano atravessou tradições e cosmologias distintas, integrando práticas mágicas gregas, orientais e judaico-helenísticas antes de sua conversão ao cristianismo. Sua figura personifica a união entre a magia ancestral e a espiritualidade adaptativa, características centrais da cabalá crioula, que celebra a fusão de saberes africanos, europeus e ameríndios.
Na Quimbanda, São Cipriano é frequentemente reinterpretado como Exu Cipriano Feiticeiro ou Cipriano Feiticeiro das Almas, uma manifestação ctônica que incorpora o arquétipo do guia espiritual e catalisador das forças mágicas. Como Exu, ele transita entre mundos, ligando o visível ao invisível, e reflete o espírito transformador da cabalá crioula. Ele atua como um mentor espiritual que ensina a utilizar a feitiçaria para transformação pessoal, proteção e conexão com as raízes ancestrais. O sincretismo de São Cipriano, como um personagem que absorve e ressignifica saberes de múltiplas tradições, é um espelho direto da flexibilidade e adaptabilidade da cabalá crioula, que unifica práticas de diversas origens em um sistema mágico poderoso e dinâmico.
A cabalá crioula encontra em São Cipriano um exemplo vivo de resiliência e criatividade cultural. Ele simboliza o poder de transcender fronteiras religiosas e culturais, trazendo um espírito universalista que ressoa com tradições mágicas como os Papiros Mágicos Gregos, o platonismo teúrgico e o tantrismo śaiva da Caxemira. Como espírito patrono, São Cipriano encarna a essência da miscigenação cultural e a celebração do segredo, da iniciação e da ancestralidade, pilares centrais da cabalá crioula.
Esse texto é um excerto do livro em produção, Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula.
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