O DIABO PESSOAL
- Fernando Liguori
- 20 de mar.
- 14 min de leitura

Série: Teurgia & Cabalá Crioula
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @hermakoiergon | @goeteia.com.br
Após escrever o texto A Função do Daimōn pessoal na Quimbanda, muitos adeptos da Cova de Cipriano Feiticeiro enviaram dúvidas diversas sobre o tema. O texto que segue é um Suplemento de Estudo ao ensaio anterior para esclarecer muitas das dúvidas enviadas. Inicio com uma breve introdução sobre a noção grega de daimōn no período clássico, em seguida faço o mesmo com o hermetismo e com o platonismo teúrgico, para então entrar no tema do daimōn pessoal na Quimbanda, quando ele se torna diabo pessoal.[1] É necessário fazer essa contextualização histórica da evolução do conceito de daimōn desde o Mundo Antigo até a contemporaneidade.

O daimōn na Grécia antiga
O conceito de daimōn (δαίμων) na filosofia e mitologia grega representa uma força que provoca crises internas na alma e que precisa ser pacificada para que ocorra o desenvolvimento espiritual. O daimōn pode ser entendido como um agitador da alma e é essencial para a evolução psicológica do indivíduo. O filósofo grego Platão (427-347 a.E.C.) e outros pensadores do período antigo atribuíram ao daimōn um papel fundamental na jornada da alma, influenciando não apenas as ações humanas, mas também a maneira como os indivíduos se relacionam com o divino e com seu próprio destino.
Como um agente moralizador, o daimōn não é meramente um espírito auxiliar ou protetor, mas sim um agente que provoca sofrimento psíquico e existencial, despertando a alma para sua verdadeira jornada. Esse sofrimento, muitas vezes representado por figuras mitológicas como Dionísio ou Tifão, força a separação entre a razão e a mente. Como exemplificado pelo poeta sufi Rumi (1207-1273), as dores da alma são mensageiras que guiam o indivíduo rumo à clareza espiritual.
No pensamento grego, o daimōn é aquele que causa mania, um estado de intensa experiência emocional que pode ser interpretado como uma forma de loucura inspiradora levando à eudaimonia (felicidade interior e realização plena). Segundo Platão, a mania divina era essencial para a verdadeira sabedoria e inspiração, o que se relaciona diretamente ao papel do daimōn como mediador entre o mundo dos deuses e os homens.
Como um guia que sussurra sua voz interior, o termo daimonion (δαιμόνιον), utilizado por Platão e por Sócrates (470-399 a.E.C.), refere-se a um espírito divino ou voz interior, uma força que sempre proíbe, mas nunca ordena. No pensamento socrático, essa voz representava a sabedoria superior que advertia contra decisões erradas, ajudando o indivíduo a desenvolver discernimento e autoconsciência. Esse conceito está diretamente ligado ao entendimento do daimōn como uma força moralizante e disciplinadora, um agente de purificação espiritual, que hoje conhecemos pelo termo voz da consciência.
O filósofo Heráclito (535-475 a.E.C.) enfatiza essa ideia ao afirmar que o caráter de um homem é o seu daimōn, ou seja, o desenvolvimento do caráter é a manifestação direta da influência do daimōn na vida de um indivíduo. Assim, o daimōn não apenas provoca crises e desafios, mas também direciona a alma para a autoconsciência e para o desenvolvimento da virtude.

Como um agente de inspiração divina, o conceito de mania na tradição grega está profundamente relacionado ao daimōn. Mania, derivada da mesma raiz que mantis (vidente), implica um estado de loucura profética ou inspiração divina. Em outras palavras, a experiência da loucura divina era vista como um portal para a verdade e a deificação espiritual. Algis Uzdavinys (1962-2010) descreve a mania benéfica como um tipo de loucura inspirada pelos deuses, que separa a mente (autor do pensamento) da razão (capacidade de julgamento lógico). Essa separação permite que o indivíduo tenha visões da Verdade, ou seja, insights que revelam a natureza real da alma e do Cosmos.
Platão, no Fedro, enfatiza que não há verdadeira eudaimonia sem mania, ou seja, a realização plena da alma só pode ocorrer quando ela passa por estados de crise e transformação intensa. Dionísio, associado à loucura e ao êxtase, desempenha um papel fundamental nesse processo, pois representa o abandono das amarras racionais e a entrega à experiência mística.
Como um agente soteriológico da alma, o daimonion funciona como uma voz interna que guia o indivíduo para além das ilusões do Ego e das limitações da mente condicionada. Ele representa um processo de purificação, no qual os elementos destrutivos do caráter são eliminados para permitir a ascensão da alma. Esse processo pode ser entendido de duas formas principais:
Inspiração – O daimonion inspira o indivíduo a buscar a verdade e a transcender sua condição limitada.
Purificação – Através das crises provocadas pelo daimōn, ocorre a purificação da mente e o abandono das ilusões e padrões negativos.
Essa dinâmica é expressa na filosofia do platonismo teúrgico, especialmente na obra de Jâmblico (245-325 d.E.C.), que enfatiza que a alma só pode ser libertada do destino material se estiver alinhada com seu daimōn pessoal.
Platão e seus seguidores descreveram o daimōn como uma entidade intermediária entre os deuses e os homens. No Banquete, a sacerdotisa Diotima ensina a Sócrates que Eros é um daimōn, pois não é um deus, mas uma força intermediária que liga os mortais ao divino.
Já no Apologia de Sócrates, Platão relata que Sócrates afirmava ter um sinal divino (daimonion) que o advertia contra erros, demonstrando que o daimōn poderia ser entendido como um guia moral e intelectual.

Jâmblico expande essa ideia ao afirmar que cada alma recebe um daimōn pessoal no momento de sua descida ao mundo material. Esse daimōn rege o destino da alma e pode ser elevado a um nível superior através da teurgia, permitindo a ascensão da alma e sua reintegração com o divino.
Conclusão:
O conceito do daimōn na filosofia grega e no platonismo teúrgico pode ser resumido como: i. um agitador da alma, que provoca crises para estimular o crescimento espiritual; ii. um guia interior, que orienta a alma rumo à verdade e à autoconsciência; iii. um agente de purificação, que remove ilusões e padrões negativos da mente; iv. um intermediário entre os deuses e os homens, facilitando a comunicação entre o mundo material e o espiritual.
O estudo do daimōn na tradição filosófica e esotérica revela seu papel fundamental no desenvolvimento humano e espiritual, sendo uma ponte entre a consciência terrena e o divino.

O daimōn no platonismo teúrgico
Nessa seção vamos explorar a concepção do daimōn pessoal na obra De Mysteriis, de Jâmblico um dos principais filósofos do platonismo teúrgico e defensor da teurgia como meio de alcançar a união com o divino.
Jâmblico responde à carta de Porfírio (234-305 d.E.C.) – seu mestre e crítico – sobre os rituais politeístas e suas práticas mágicas. Ele argumenta que o objetivo final da teurgia é transcender a condição humana, elevando-se ao reino inteligível dos deuses. Esse processo não pode ocorrer de forma direta, exigindo intermediários, como anjos, daimones e heróis, que facilitam a ascensão da alma.
Na hierarquia cósmica elaborada por Jâmblico, os daimones desempenham um papel essencial. Eles atuam como agentes divinos, exercendo influência sobre porções específicas do Cosmos e cumprindo a vontade dos deuses. O daimōn pessoal, nesse contexto, surge como um supervisor do destino humano, regulando as escolhas e ações da alma corporificada.
De Mysteriis enfatiza que o destino humano (heimarmenē) está diretamente ligado aos astros e ao daimōn pessoal. Assim, é pela interação com as influências celestes que o processo de divinização pode ser desencadeado. Porfírio buscava identificar o daimōn pessoal por meio da Carta Natal, calculando o oikodespotēs (senhor da casa), um planeta dominante no mapa astral do indivíduo. Jâmblico critica essa abordagem, propondo a teurgia como um método superior, pois permite evocar o daimōn a partir de princípios mais elevados, transcendendo a mera observação astral.
Apesar de rejeitar a astrologia técnica como meio exclusivo para acessar o daimōn, Jâmblico ainda reconhece sua importância como um conhecimento divino transmitido aos homens. Ele faz distinção entre: i. astrologia técnica (genethlialogia): baseada em cálculos e adivinhação; ii. astrologia teúrgica: um meio de contemplação e integração ao divino.
Jâmblico ainda incorpora um conceito presente na tradição hermética e em Platão, que distingue duas almas no ser humano: i. uma alma inteligível, proveniente do reino divino; ii. uma alma astral, vinculada às esferas planetárias e ao destino. O daimōn pessoal está associado a essa segunda alma e age como executor do destino estabelecido pelos deuses astrais. Ao mesmo tempo, ele permite que a alma se liberte do ciclo da geração, desde que esta se alinhe com os princípios divinos.

Mas o daimōn pessoal não apenas guia a vida humana, também serve como elo entre a alma e os deuses. Jâmblico descreve um processo em que o daimōn auxilia a alma até que esta, por meio da teurgia, estabeleça um deus como seu supervisor e guia supremo. Nesse momento, o daimōn pode: i. retirar-se em deferência à divindade; ii. submeter-se ao deus, auxiliando sua orientação sobre a alma. Esse processo reflete a doutrina do platonismo teúrgico da ascensão da alma, onde o ritual permite ao iniciado superar seu destino astral e alcançar a deificação.
O daimōn pessoal desempenha um papel crucial na transmissão de princípios inteligíveis à alma, permitindo sua compreensão da ordem cósmica e do divino. A comunicação entre daimones e deuses ocorre através de sinais divinos (sunthēmata), que podem ser: i. pedras e ervas sagradas; ii. substâncias aromáticas; iii. textos rituais e composições musicais. Os daimones servem, assim, como mediadores entre a humanidade e os deuses, facilitando tanto a compreensão dos desígnios divinos quanto o acesso ao conhecimento oculto.
Cada daimōn pessoal está subordinado a um deus astral, que governa seu destino. Proclo (412-485 d.E.C.) e outros teúrgos platônicos afirmam que as almas e seus daimones pertencem a diferentes correspondências planetárias: i. almas guerreiras pertencem à esfera de Ares; ii. almas sábias pertencem à esfera de Hermes; iii. médicos e videntes estão sob a regência de Apolo etc. Ao se alinhar com seu deus regente, a alma pode transcender sua condição corpórea e se tornar parte do princípio divino que governa seu destino.
Jâmblico também argumenta que cada alma humana possui um veículo sutil (ochēma-pneuma), feito de substância etérea, que a conecta ao Cosmos. Esse veículo é esférico e se move em círculos, imitando o movimento dos astros celestes. Durante os rituais teúrgicos, a alma pode purificar esse veículo, permitindo que seu daimōn pessoal a alinhe com seu deus regente. Esse processo resulta na deificação, onde a alma deixa de ser guiada pelo daimōn e passa a ser diretamente conduzida pelo deus astral ao qual pertence.
Os rituais teúrgicos de invocação do daimōn pessoal envolvem a intercessão de um deus superior, que governa os daimones. Jâmblico sugere que esse deus pode ser Hélios (o Sol), que ocupa uma posição central na hierarquia cósmica. O método de invocação descrito por Jâmblico segue uma estrutura hierárquica:
A invocação do deus que rege os daimones.
A revelação do daimōn pessoal do praticante.
O alinhamento da alma com seu deus astral regente.
A divinização da alma, superando a influência do destino.

Esse processo simboliza uma transição do praticante de uma condição subordinada ao daimōn pessoal para um estado de união com os deuses, permitindo que ele transcenda a limitação imposta pelo destino.
Conclusão
O conceito do daimōn pessoal em Jâmblico representa um dos pilares da teurgia, sendo um agente intermediário entre a alma humana e os deuses. Embora esteja ligado ao destino e às esferas astrais, o daimōn também permite que a alma alcance a libertação espiritual, desde que o praticante siga um caminho de purificação e ascensão ritualística.
A visão de Jâmblico sobre o daimōn pessoal influenciou séculos de tradição esotérica, impactando desde o hermeticismo renascentista até práticas contemporâneas de Ocultismo. No contexto da Quimbanda, essa estrutura pode ser reinterpretada na relação entre o kimbanda, seu Exu tutelar e os Exus de legião, onde o daimōn pessoal pode ser integrado ao culto e à iniciação.

O daimōn pessoal no hermetismo alexandrino
O conceito de daimōn era amplamente aceito no mundo greco-romano como um espírito ou gênio que influenciava o destino dos seres humanos, muitas vezes associado à sorte ou infortúnio. No entanto, o contato do judaísmo com o dualismo persa e, posteriormente, a influência do cristianismo deram à palavra uma conotação negativa, associando-a exclusivamente a espíritos malignos.
Os gregos antigos utilizavam a palavra daimōn para se referir a criaturas espirituais que exerciam influência sobre o destino humano. Esses seres podiam ser considerados intermediários entre os deuses e os homens e não eram vistos exclusivamente como maléficos. Em textos como a Ilíada e a Odisseia, o termo podia ser usado para descrever deuses de forma genérica, sem a necessidade de especificação. Além disso, daimōn era empregado para descrever forças divinas que governavam o destino, muitas vezes sendo intercambiável com a palavra tyche (sorte ou acaso).
Além de serem personificações do destino, os daimones também podiam ser entendidos como espíritos protetores de indivíduos ou famílias. No contexto dos cultos domésticos gregos, os daimones eram frequentemente identificados com os espíritos dos mortos (manes, lares ou genius no contexto romano). Estes eram ancestrais divinizados que exerciam influência sobre seus descendentes, protegendo-os ou punindo-os conforme a devoção recebida.

Durante o período helenístico, o judaísmo reinterpretou o conceito de daimōn sob a influência do dualismo persa do zoroastrismo. O judaísmo passou a descrever os deuses estrangeiros como daimones malignos, incorporando-os a um esquema demonológico. Essa mudança pode ser observada na Septuaginta, onde daimōn e daimonion passaram a ser traduzidos como espíritos impuros ou entidades inferiores.
No cristianismo primitivo, essa visão se consolidou, e daimōn tornou-se sinônimo de demônio, um ser maligno contrário à vontade de Deus. Essa interpretação, no entanto, diverge da tradição hermética, que mantinha a concepção de daimōn como uma força intermediária que poderia ser benéfica ou maléfica, dependendo do contexto.
O Corpus Hermeticum preserva a visão tradicional do daimōn, evitando a influência negativa que o termo adquiriu no judaísmo e cristianismo. No hermetismo, os daimones eram agentes dos deuses astrais e desempenhavam um papel fundamental na organização do destino humano. Cada pessoa recebia um daimōn no momento do nascimento, sendo este responsável por administrar sua sorte e destino conforme determinado pelos astros.
A relação entre os daimones e os astros é crucial na cosmologia hermética. O destino (heimarmenē) era visto como uma força governada pelos deuses astrais, e os daimones eram intermediários que asseguravam a execução desse destino na vida humana. O ser humano, ao nascer, recebia as influências dos astros, sendo moldado por essas energias ao longo da vida. No entanto, o hermetismo defendia que era possível transcender essa influência astral através do conhecimento (gnōsis), permitindo que a alma escapasse das restrições do destino e ascendesse ao divino.
No Corpus Hermeticum, os daimones não são meros espíritos passivos; eles interagem com os humanos e podem influenciar suas ações e emoções. Por meio da prática espiritual e da compreensão das leis cósmicas, um iniciado poderia aprender a lidar com seu daimōn, dominando sua influência e usando-a para alcançar a apoteose.

No hermetismo, o ser humano era visto como um microcosmo que refletia o macrocosmo. Isso significava que as forças cósmicas estavam presentes dentro de cada indivíduo, e a jornada espiritual consistia em superar as limitações impostas pelo destino para retornar à unidade divina. O Corpus Hermeticum descreve essa jornada de libertação, na qual a alma deve se desvencilhar das influências astrais e transcender os daimones para atingir um estado de divinização.
Essa ideia é ilustrada no mito de Poimandres, que narra a descida da alma através das esferas planetárias, onde ela adquire qualidades e paixões, e sua posterior ascensão, onde deve se libertar dessas influências para retornar ao divino. Durante essa jornada, o daimōn pessoal desempenha um papel fundamental, auxiliando ou dificultando a ascensão da alma, dependendo de sua inclinação e nível de desenvolvimento espiritual.
Conclusão:
O estudo do daimōn no Corpus Hermeticum revela uma visão complexa e sofisticada, que contrasta fortemente com a demonização do termo no judaísmo e cristianismo. No hermetismo, os daimones são forças intermediárias que governam o destino humano, mas também oferecem a possibilidade de transcendência através do conhecimento espiritual. Essa compreensão oferece uma perspectiva rica sobre o papel do daimōn na filosofia hermética e sua relevância para a jornada espiritual do ser humano.
Aspecto | Cultura grega | Platônica/Neoplatônica | Hermética |
Natureza do Daimōn | Espírito intermediário, não necessariamente pessoal. | Guia pessoal da alma, associado ao destino. | Regente do destino, ligado às esferas planetárias. |
Papel na Vida Humana | Inspiração, proteção, ou influência do destino. | Orientação moral e intelectual, ligação com o divino. | Determina o destino, mas pode ser superado pela gnōsis. |
Ligação com o Destino | Daimōn e destino são forças interligadas. | O daimōn impõe o destino, mas pode ser transcendido pela teurgia. | O daimōn administra o destino, mas pode ser purificado. |
Possibilidade de Ascensão | Nenhuma. | Através da filosofia e teurgia. | Através da gnōsis e ascensão espiritual. |
Dessa forma, enquanto a tradição grega vê o daimōn como uma força que governa o destino sem uma função iniciática clara, o pensamento platônico e teúrgico transforma o daimōn em um guia pessoal que conduz a alma para a deificação. Já no hermetismo, o daimōn assume uma função mais cósmica, sendo o administrador do destino que deve ser superado para que o iniciado possa transcender a materialidade e alcançar o divino.
Em suma, todas essas tradições concordam que o daimōn tem uma relação direta com o destino humano, mas diferem no grau em que esse destino pode ser modificado e no papel da iluminação espiritual nesse processo.

O daimōn pessoal na Quimbanda: o Diabo pessoal
Na Quimbanda, o Exu tutelar é um espírito-guia-ancestral, um morto glorificado como divindade ctôniana que vitaliza a vida e provê virilidade mágica ao kimbanda, responsável pelo seu direcionamento espiritual e pela condução de seus trabalhos mágicos; responsável pela deificação de sua alma e superação de seu destino. É a divindade ou inteligência terrestre que rege os caminhos do kimbanda.
Por outro lado, do platonismo teúrgico e de suas recessões renascentistas, iluministas e românticas, aprendemos que o daimōn pessoal é o Eros que nos une ou nos permite acessar/comunicar com outros espíritos, criaturas espirituais de todo tipo, encantados, ancestrais ou mortos sem descanso (égún obsessores) etc. O daimōn pessoal é, portanto, um elo intermediário entre o kimbanda e seu Exu tutelar, facilitando o processo de incorporação das forças telúricas e ctônicas do Exu no ochēma-pneuma do kimbanda.
O ochēma-pneuma conecta o kimbanda ao Cosmos e, portanto, ao daimōn pessoal. É por meio do ochēma-pneuma que o daimōn tem total acesso ao campo de destino do kimbanda, senda capaz de influenciar diretamente todas as suas ações, todas as suas escolhas. Como estudamos anteriormente, é por meio do ochēma-pneuma que a alma se alimenta e é, através dele, por tanto, que ela recebe toda sua programação.

Todas as criaturas espirituais do Cosmos têm ochēma-pneuma; isso significa que tanto o Exu tutelar quanto o daimōn pessoal têm seus respectivos ochēma-pneuma individuais. É através deste veículo pneumático da alma que os três se influenciarão. Ao ser iniciado na Quimbanda, o daimōn pessoal do kimbanda se conecta imediatamente ao Exu tutelar. Isso significa colocar a cargo do Exu tutelar as rédeas do cavalo do destino, que é o daimōn pessoal. Toda interação entre o kimbanda e seu Exu tutelar passará, portanto, por intermédio do daimōn pessoal. E é por isso que ter essa Ciência é tão importante: a qualidade do daimōn pessoal implicará na qualidade de comunicação com o Exu tutelar. E como esse vínculo pode ser fortalecido? Através de:
Rituais de sagração para a fusão da energeia (atividade) do daimōn com a dýnamis (potência) do Exu tutelar. Isso se dá construindo um assentamento ou uma telestikē do daimōn como um diabo pessoal sob a autoridade do Exu.
Oferendas específicas que alinhem o daimōn pessoal com o Exu tutelar.
Trabalhos de convocação e alinhamento utilizando as assinaturas astrais (exós) do daimōn e os do Exu tutelar.
Divinação por meio do uso do oráculo.

Em Jâmblico, a teurgia permite que o daimōn pessoal seja substituído por um deus superior, possibilitando à alma se conectar a esferas mais elevadas. Na Quimbanda, essa lógica se aplica no contexto da iniciação, onde o daimōn pessoal do adepto se submete ao Exu Tutelar, permitindo que este seja o novo guia espiritual do kimbanda através dele.
Cada daimōn pessoal carrega em si uma assinatura astral única, que define as características do indivíduo e sua vocação espiritual. No contexto da Quimbanda, esse conhecimento pode ser explorado para potencializar práticas mágicas:
Rituais direcionados ao campo de atuação do daimōn (i.e. um daimōn venusiano reforça a magia amatória; um daimōn marcial fortalece demandas de ataque).
Identificação da regência planetária do daimōn pessoal, utilizando-a em trabalhos de feitiçaria direcionados à prosperidade, proteção ou destruição. É neste processo que a astrologia fará sentido na Quimbanda.
Uso da influência astral do daimōn na escolha de Exus auxiliares nos trabalhos, que vibram na mesma frequência e podem atuar como reforços mágicos.
O vínculo com o daimōn pessoal, por outro lado, aumenta quando a ele é associado um culto particular, como se faz ao Exu tutelar nos orôs semanais e mensais. Isso é a Quimbanda potencializando os vínculos com o daimōn pessoal. Práticas regulares de contemplação e evocação do daimōn, seja por meio de meditações, sacrifícios ou oferendas; seja por meio do uso de oráculos e divinação para compreender as mensagens do daimōn e alinhar suas direções com as estratégias do Exu Tutelar; e até a construção de um espaço de culto ao daimōn, onde oferendas e trabalhos específicos possam ser feitos, reforçando sua conexão com os Exus da Banda etc. Tudo isso reforça a qualidade e as conexões com o daimōn pessoal na força da Quimbanda.

Conclusão
Embora a Quimbanda não possua em seu corpo tradicional o conceito do daimōn pessoal conforme encontrado no platonismo teúrgico, ela pode assimilar e ressignificar essa estrutura dentro de sua lógica própria. O daimōn pessoal, ao ser submetido ao Exu tutelar, passa a operar como canal de potência, ligação e especialização mágica, potencializando a carreira mágica do kimbanda.
Dessa forma, a Quimbanda não apenas mantém sua essência como feitiçaria ctoniana, mas também se expande como um sistema vivo e dinâmico, capaz de absorver e transformar conhecimentos antigos dentro de seu paradigma demonológico afro-brasileiro.
NOTA:
[1] Em minha literatura, o termo diabo pessoal pode estar associado, a depender do contexto, a: i. o Exu tutelar; ii. o demônio associado ao Exu tutelar; iii. o daimōn pessoal regido pelo Exu tutelar; iv. qualquer espírito tutelar.
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